«Na literatura actual até os tops são pagos»


Jornal de Notícias - entrevista de Sérgio Almeida
20 Janeiro 2008



Nobel à parte, não há muitos prémios ou condecorações que ainda faltem no currículo de António Lobo Antunes. Com 65 anos, o autor de romances essenciais como "Manual dos inquisidores" ou "Não entre tão depressa nessa noite escura" diz-se cada vez mais grato aos leitores portugueses por permitirem que viva unicamente dos seus livros. "Algo que nunca imaginava no início", desabafa.


A inquietude que sempre caracterizou António Lobo Antunes ainda não se extinguiu. De momento, é a recente mudança de mãos da editora que ajudou a tornar uma das mais fortes em Portugal o que mais parece preocupar o laureado romancista. Por isso, admite todos os cenários. Até mudar-se para uma pequena editora...

Admitiu a hipótese de deixar de publicar cá, dada a indefinição na Dom Quixote. Agora que o grupo Leya já se apresentou, mantém essa intenção?
Não li o que disseram. Vou reunir-me com eles para a semana. Que intenções revelaram?

Pelos vistos, pretendem criar o maior grupo editorial em língua portuguesa.
E não duvido que o consigam. Mas, vejamos: quem são, neste momento, as editoras que editam bons livros? São as pequenas. Há a Assírio & Alvim - dirigida por Manuel Rosa, um homem excepcional por quem tenho o máximo respeito -, a Caixotim, a Cavalo de Ferro…

Teme que a Dom Quixote perca a sua identidade?
O problema não é recente. A Dom Quixote segue há anos uma política editorial errática. Não há uma orientação definida. Falta um director editorial.

A saída de Nélson de Matos marcou a viragem?
Com todas as qualidades e defeitos que tem, é um editor. E um líder. Isso é indiscutível. Com a sua saída, a editora deixou de ter uma política definida. Uma vez, o editor Christian Bourgois disse-me que é mais difícil encontrar um grande editor do que um grande escritor. Para ficar, quero determinadas garantias. Senão, vou embora. Posso publicar cá através do Brasil, por exemplo.

A que garantias se refere?
Questões de ordem editorial. Dizer que querem criar o maior grupo é vago. É preciso haver maior profissionalismo, que não há. Apesar de tudo, tenho tido a sorte de trabalhar na Dom Quixote com uma mulher excepcional, a Teresa Coelho. Os livros que faço exigem muita atenção e, como a Teresa tem estado doente, não sei como vai ser. Tirando este caso, não vejo lá mais ninguém em quem tenha confiança. Portanto, para que continue, quero que me assegurem um editor da minha confiança. Não sei se tal será possível, até porque não sou assim tão importante.

Admite passar a publicar por uma editora pequena?
Não tenho nada contra isso. O problema é que assinei há pouco tempo um novo contrato de dez anos com a Dom Quixote...

Desconfia por natureza dos grandes grupos?
A tendência para os conglomerados editoriais é cada vez maior. Claro que, para rentabilizarem o investimento, vão unir departamentos, do marketing à administração, e haverá certamente despedimentos, embora isso já não me diga respeito. Interessa-me apenas a parte da cultura. É por isso que admiro as editoras pequenas. As grandes, pelo contrário, são máquinas de fazer dinheiro. Publicam livros que daqui a dois anos ninguém lerá. Que queiram fazer o maior grupo editorial é-me indiferente. Embora o dinheiro seja importante, porque, na literatura actual, tudo é comprado. As montras são pagas, a exposição dos livros - que decide se eles ficam sentados ou de pé - também… Até os tops são pagos. Essa é a vantagem dos grandes editores: podem atirar o livro à cara das pessoas, enquanto os títulos dos pequenos editores, que não têm dinheiro para pagar às livrarias, ninguém os vê.

Esse desagrado não terá que ver com o facto de vir a pertencer ao mesmo grupo editorial de Saramago?
Não tenho nada contra o homem. Nem a favor. Nunca tive. Parece que ele tem um problema qualquer comigo, mas eu nunca tive. Acho que ele faz o melhor que pode.

Nos últimos anos, os tops literários foram arrebatados por figuras mediáticas exteriores ao meio literário. Sente-se cada vez mais desconfortável neste meio?
Não acho que o fenómeno seja recente.

Mas nunca como hoje a venda de livros esteve tão dependente do facto de os autores serem, ou não, figuras públicas.
Esses livros sempre existiram. E repare: quem é que lê hoje o Dan Brown? Ou até mesmo "O nome da rosa"? Não me preocupa nada que haja pessoas a vender 200 mil ou 300 mil livros. Ainda bem para eles. O que acho errado é dizerem - como ouvi há uns anos a uma senhora que publica livros - que puseram não sei quantas centenas de milhares de portugueses a ler. Não é verdade. Quando muito, puseram essas tais centenas de milhares a ler os seus livros.

Não acredita, então, que quem se inicia pela literatura "light" vai de seguida ler Tolstói ou Dostoievski...
Claro que não. Um exemplo: há uns anos, houve um concorrente do "Big brother" - julgo que era assim que se chamava o concurso - que publicou um livro. Fez uma sessão de autógrafos e vendeu imenso. Só que as pessoas rasgavam a página da assinatura e deitavam fora o livro. Isso também aconteceu na Dom Quixote. Se uma qualquer pessoa da televisão chegasse lá e dissesse que queria publicar um livro, eles fá-lo-iam na hora.

Como o livro "Eu, Carolina"
É-me indiferente. Uma vez, perguntei a um editor alemão por que publicava a Jackie Collins. "Para poder publicar o Malcolm Lowry", respondeu-me. A Dom Quixote, por exemplo, já publicou Faulkner ou Conrad, mas argumenta que não vendem. Mas pergunto: o que fizeram por esses livros? Trabalharam-nos? Fizeram-nos chegar ao leitores? Ou limitaram-se a pô-los nas livrarias? Esses livros precisam de ser apoiados. Por que não pedir a pessoas que escrevam sobre eles?

Acaba de sair uma colecção de clássicos em formato de bolso dirigida por si. Não é essa espécie de serviço público que defende?
Não sei se vai funcionar. As capas são bonitas, mas não gostei das fotografias da contracapa - sempre a mesma imagem do Tolstói com aquela barba... -, nem das biografias e muito menos da propaganda aos livros que a Dom Quixote está a editar noutra colecção.

Mas a lista de 50 autores que escolheu é insuspeita.
É um projecto muito antigo, que fui convidado a desenvolver até em Espanha: encontrar livros de autores que estejam no domínio público - de maneira a não pagar direitos de autor -, fazer traduções de qualidade e utilizar o meu nome como chamariz para atrair mais leitores. Mas não quero ganhar dinheiro nenhum com isso. Quero é que as pessoas leiam bons livros. No entanto, gostei bastante do grafismo. A nova geração pode não ter grandes escritores mas tem grandes fotógrafos, como o Augusto Brásio, que estão ao nível do melhor que se faz nos principais países. Na tradução, é igual. Há um punhado de tradutores portugueses de elevadíssima qualidade.

Nota-se nos últimos tempos um maior esforço da sua parte em esbater a imagem intimidatória que foi criada.
Acha mesmo? Nunca percebi por que motivo tentaram colar-me essa imagem de mal-educado. Não sou nada disso. É óbvio que ter passado recentemente por uma situação delicada de saúde alterou várias coisas. Estive de frente com a minha finitude. Quando me disseram: " Tens um cancro"... É uma violência atroz. Tive muita sorte.

Onde foi buscar forças?
Nas pessoas que me rodeavam. Quando ia aos tratamentos, vi como os portugueses são extraordinários. A dignidade com que as pessoas, conscientes de que iam morrer, se comportavam... Comovia-me a coragem desta gente de todas as idades. Gente pobre, porque os ricos não vão ao Hospital D. Maria.

Sente-se uma pessoa melhor?
Depois da operação, passei dois meses, sentado, a olhar para uma parede. Não era capaz de fazer nada. Estava completamente vazio.

Mais do que o terror da morte, tinha o terror de não voltar a escrever?
Isso ocorreu-me, mas a verdade é que voltei e acabei o livro. Terminei-o em Novembro e não voltei a fazer nada. Estou a pensar iniciar um novo em Fevereiro, mas não sei... Tudo isso aconteceu numa altura em que choveram prémios. Mas, depois de uma doença, isso deixa de ter importância. É importante escrever, não publicar. Comecei a publicar por acaso. Escrevia os livros e deitava-os fora...

Consegue encontrar quietude à sua volta?
Agora é uma maçada, porque as pessoas fotografam-me com os telemóveis e vão vender as fotos às revistas. Na primeira vez que saí, após o cancro, vi-me, sem o saber, numa dessas revistas de TV.

Ficou revoltado.
Com que direito fazem aquilo? Fotografarem um homem curvado, magro...

Mudou algo na sua rotina?
Não, continuo a trabalhar da mesma forma. Devia ter deixado de fumar, mas não deixei.

Escrever é uma actividade física esgotante, já disse. Agora, doseia esse esforço?
As minhas análises nunca foram tão boas. Há muitos anos, o Jorge Amado dizia que sentia inveja de mim, porque eu trabalhava 12 horas por dia e a ele bastavam quatro horas para ficar cansado. Agora, vejo que é verdade. Fico parvo quando vejo escritores que escrevem 30 ou 40 páginas por dia. Quando escrevo uma, é uma sorte.

É muito cioso sobre a vida privada. Por que decidiu revelar o seu problema de saúde?
A vida privada é a única coisa que tenho. Mas já estava tão farto dos boatos, que afectavam a minha família e amigos que entendi ser melhor contar logo.

Ao mesmo tempo em que é aclamado como um autor universal, a relação que tem com os portugueses parece mais forte do que nunca.
O André Gide dizia que "quando há unanimidade em meu redor, pergunto o que terei feito de mal". E, de facto, é um pouco inquietante, porque isso tem acontecido. Os portugueses têm sido de uma generosidade enorme para comigo.

Sente que a densidade crescente dos seus romances ainda não foi bem assimilada pela crítica?
Ainda é cedo para avaliar o que faço. A mim, pelo menos, há uma parte que escapa.

Não há uma vontade de provocar quando diz que ninguém lhe chega aos calcanhares?
Não estou a ser vaidoso. É a verdade. Todos escrevemos para mudar a arte de escrever. O Tchekhóv e o Conrad mudaram-na, mas há muitos mais. Não sou mais que um elo que começou muito antes de mim e acabará muito depois.



20.01.2008

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