José Alexandre Ramos: opinião sobre Comissão das Lágrimas
«A única solução é apagar o passado»
Será ingénuo o leitor que, tomando Comissão das Lágrimas para ler, pensar que vai encontrar o mesmo António Lobo Antunes (ALA) de livros, pelo menos, anteriores a Eu Hei-de Amar Uma Pedra. Muito mais ingénuo será o leitor se for apenas conhecedor das crónicas encantadoras do escritor e julgar vir a sair da mesma forma encantado com a leitura deste livro de difícil catalogação (chamar-lhe simplesmente romance não é justo, seja no bom ou no mau sentido). Isto quer dizer que ler os livros mais actuais de Lobo Antunes, ou este em concreto, tornou-se quase impossível? Depende do leitor: sim, se for um dos ingénuos que atrás referi, porque é preciso estar preparado; e não, se já conhecer bem a arte do escritor e tiver capacidade para se conduzir nas curvas e contracurvas do discurso sem se despistar em qualquer capítulo. Mas é o mais difícil de todos, do meu ponto de vista. A não ser que eu não tenha estado tão preparado como julguei. A eficácia de um livro também depende da preparação do leitor para o receber.
Pessoalmente, como leitor de todos os livros de ALA e grande apreciador da sua escrita, desta vez, com este Comissão das Lágrimas, não saí convencido de ter lido uma obra-prima. Não creio que seja livro de que vá recordar-me, ou acompanhar-me durante semanas, como aconteceu com outros (Fado Alexandrino, a título de exemplo e indo buscar um dos mais antigos, já lido há anos). O doseamento das palavras, o encaixe das vozes sobrepostas, continua sendo de mestre (que eu ainda não encontrei em qualquer outro autor até à data), mas, dando razão a algumas críticas que já li, este livro, com um título tão sugestivo (ao qual só os mais distraídos se mostrarão indiferentes) necessitava que desta vez António Lobo Antunes se desmarcasse da sua obstinada pretensão de não contar uma história (na realidade ele conta imensas em cada livro, ou no mínimo sugere a maior parte delas) e engrossasse este Comissão das Lágrimas com um fio narrativo mais consistente, para que nada fugisse ao leitor. Pegando nas palavras de Clara Ferreira Alves, em crítica ao livro publicada no Expresso, ALA “sabe do que está a falar e quem está a falar, os leitores não. O escritor deixa os leitores à porta”. Nem todos os leitores, mas a maioria acredito que sim. Se não sabemos o que veio a ser esta Comissão das Lágrimas – um episódio político na história de Angola após a independência, que não vou explicar, os interessados podem pesquisar na web – teremos mais dificuldade em entrar nas várias narrativas. Assim, nada se perdia se o autor desta vez tivesse introduzido nas suas vozes alguém que explicasse, mesmo que muito sumariamente, o porquê deste título ou desta “comissão” que surge várias vezes ao longo do texto. Dir-me-ão porventura que pode ler-se nas entrelinhas. Também, mas o que se espera de um livro com título tão sugestivo? E só aprendemos as entrelinhas se soubermos o que foi a Comissão das Lágrimas como facto histórico, de outra maneira ficaremos com uma ligeira impressão de que será alguma coisa política e aterradora, com a ajuda de alguns fragmentos apanhados do discurso, mas nunca com uma noção clara do que se trata: ao longo de todo o livro, é a razão para o discurso das vozes que habitam a narração.
E que vozes são estas? Podemos dizer que é apenas uma voz interpretando tantas quantas Cristina, a personagem narradora, se quisermos assim, terá no interior da sua mente esquizofrénica. Nascida e vivendo em Angola até aos seis anos, é filha de uma portuguesa bailarina (prostituta?) de cabaret de gosto duvidoso e de um ex-padre, angolano preto, que acaba por ser um dos comissários dessa inquisição que torturava e matava. Mas será esta criatura, branca como a mãe, verdadeiramente filha do comissário angolano a quem chama pai? A subtileza das palavras que ALA deixou neste livro pode levar-nos a outra interpretação (leiam para saber), bem como da veracidade do que ali é relatado, tanto a nível do que o leitor poderá imaginar o que terá sido a Comissão das Lágrimas, bem como de toda a informação das personagens (vozes) sobrepostas: o que dizem, o que fazem, o que sentem, o seu passado. A duvidosa veracidade destes factos é sugerida ao longo do texto, em afirmações que são negadas pela voz interveniente, ou mesmo quando nos damos conta que, estando Cristina narrando, o discurso resvala para outros tempos, outros espaços, outras circunstâncias, a diegese altera, e linhas ou páginas adiante é Cristina que retoma, e isto sem haver, estruturalmente, qualquer pausa, qualquer parágrafo ou mesmo ponto final (a pontuação gráfica é basicamente feita com pontos de interrogação e vírgulas, os pontos finais só figuram quando termina cada capítulo). É como se a voz de Cristina se engasgasse, como se o seu pensamento fosse tomado, ou ela entrando em transe, repentina e repetidamente, para dar vez a outras vozes que se impõem. Tudo a uma velocidade tal que é compreensível que o leitor, se não desistiu nos primeiros capítulos, tenha de voltar atrás, e mais atrás, e reler, para não perder-se neste emaranhado. É o que de mais negativo encontro no livro, estruturalmente: é muito emaranhado, nenhum capítulo dá descanso ao leitor; e, de resto, o que dizem as vozes, acaba por ser redundante com o que já lemos de outros livros do autor.
Resumindo o livro em duas palavras, para nos centrarmos no que, na minha opinião, é o tema da narrativa e o que incomoda as suas personagens: culpa e arrependimento. Está absolutamente carregado de culpa, por acções e decisões tomadas, pelo que poderia ser feito, pela inércia, pelo medo de. Arrependimento é o que resta a estas três pessoas tão sós (pai, mãe e filha, que acabam por trocar Angola por Portugal e não têm parentes ou amigos), a olhar uma réstia do Tejo através das janelas de um apartamento tacanho, recuando no passado como peçonha entranhada nas suas almas. Ou afinal que é Cristina apenas que delira e então acabamos por não saber nada do que foi, se o foi, se o é. Só ela, só ela – a voz – e o escritor que desta vez deixou os seus leitores à porta. A única solução, como diz nas suas últimas linhas o livro, é apagar o passado. Apagar o passado, ultrapassar a culpa e deixar-nos entrar, António.
(Nota: escrever sobre este livro foi muito mais difícil do que lê-lo. Não quis falar mais a fundo das personagens e do seu papel na narrativa por achar que ia acabar por abordar apenas uma história – ou um lado dessa história – e o livro contém muitas, todas inacabadas, fragmentadas. Quem não entendeu o que escrevi não leu o livro. Leia, então, mesmo ficando à porta, e depois regresse contando a sua experiência como leitor.)
José Alexandre Ramos
30.10.2011
Comentários
Enviar um comentário