Mário Santos: «O regresso de António Lobo Antunes. Em força» - crítica a A Outra Margem Do Mar

É o trigésimo romance de António Lobo Antunes. É um regresso a Angola. E em força.


O regresso de António Lobo Antunes. Em força.


A guerra colonial que Portugal travou em África e que António Lobo Antunes (Lisboa, 1942) experienciou em primeira mão enquanto alferes miliciano médico, entre 1971 e 1973, foi substantivamente tematizada nos primeiros romances publicados pelo escritor — Memória de Elefante, Os Cus de Judas (1979), Conhecimento do Inferno (1980) e Fado Alexandrino (1983) —, aflorou intermitentemente na sua obra como um trauma fundador e volta a ser central em A Outra Margem do Mar. N[este] livro [...], o escritor recua até ao início da guerra em Angola, em 1961, com a sublevação dos trabalhadores das plantações de algodão da Baixa do Cassanje, a leste da cidade de Malanje, inspirados pelo pregador cristão dissidente António Mariano.

Os acontecimentos são narrados fragmentariamente por várias vozes que se sobrepõem, interrompem e se espelham, e que, acabando eventualmente por se revelarem enquanto personagens difusas, não deixam de suster um mesmo timbre que se (con)funde no magma da voz autoral. Assim, e à medida que vamos lendo, vamos individualizando, extraindo-as do labiríntico nevoeiro textual em que entrámos, dois oficiais do Exército português, um chefe de posto administrativo, a filha de um fazendeiro, etc. E todas as vozes perguntam, num espanto que não terá fim: O que fazemos aqui? Em diferentes tempos e lugares: O que faço eu aqui?

Interroga-se, muitos anos depois, Domingas, a negra que toda a vida tomou conta da filha do fazendeiro da Baixa do Cassanje, ambas transplantadas na metrópole, para escaparem da guerra. Simetricamente, na solidão à beira do deserto, no Namibe, interroga-se o antigo chefe de posto, um pobre-diabo português, filho de pobres-diabos portugueses, que fora para Angola “por causa das pretas” e em busca de fortuna. Para fugir, certamente, à “melancolia cinzenta” deste “logradouro de pobres” que é Portugal. O avô sempre lhe dissera que ele havia de ir longe “e mais longe não existe, isto é o fim do mundo” (p. 301). Interroga-se, com particular pungência, a filha do fazendeiro — lembrada do pai “aprendendo a morrer num cubículo sujo” na “rua das putas” em Malanje, lembrada talvez dos “gritos fosforescentes dos morcegos” nas mangueiras — pois, nascida em Angola e expedida para Portugal, ficará para sempre aprisionada num duplo desenraizamento. Não sabe, literalmente, de que terra é. E sempre a cantilena, numa reiteração rítmica: “Tem duas margens o mar”. Terá? Quantas margens tem o mar?

A ficção pós-traumática de Lobo Antunes evoluiu, genericamente, no sentido de uma expansão e de uma intensificação obsessivas e metódicas das possibilidades narrativas da “corrente da consciência” e do monólogo interior. Em A Outra Margem do Mar a técnica do fundido-encadeado das várias vozes concorrentes é levada mais uma vez até ao limite da sua sustentabilidade, até ao limiar da desarticulação do discurso.

No abismo voraz da consciência a galope, a montagem paralela dessas vozes agarra-se a imagens ínfimas, infinitamente perecíveis, “porque as coisas importantes não se pegam à memória, é óbvio, são as de cacaracá que não nos largam nunca”. Como “as gotas de água a tremerem no rebordo das telhas a seguir à chuva” (p. 116), “uma torneira que pinga insónias às duas da manhã”, ou um “helicóptero que despenteava o capim”. Na “prateleira mais alta da boca”, suspendem-se, as vozes, de pedaços de frases, de palavras cindidas pela presença simultânea de vários planos temporais e espaciais.

Só aconselhável a leitores fortes e que não sucumbam à sentimentalidade, a prosa de António Lobo Antunes entranha-se-nos na alma, se a tivermos, e nunca mais nos larga. A rememoração a que as personagens se entregam incessantemente amargura, desespera passivamente. E nenhum gesto, nenhum desejo, nos pode resgatar. É a prosa mais triste que há em Portugal. É outra loiça.


por Mário Santos
em Ípsilon, Público
21.11.2019

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