Mário Santos: «O regresso de António Lobo Antunes. Em força» - crítica a A Outra Margem Do Mar
É o trigésimo romance de António
Lobo Antunes. É um regresso a Angola. E em força.
O regresso de António Lobo Antunes. Em força.
Os acontecimentos são narrados
fragmentariamente por várias vozes que se sobrepõem, interrompem e se espelham,
e que, acabando eventualmente por se revelarem enquanto personagens difusas,
não deixam de suster um mesmo timbre que se (con)funde no magma da voz autoral.
Assim, e à medida que vamos lendo, vamos individualizando, extraindo-as do
labiríntico nevoeiro textual em que entrámos, dois oficiais do Exército
português, um chefe de posto administrativo, a filha de um fazendeiro, etc. E
todas as vozes perguntam, num espanto que não terá fim: O que fazemos aqui? Em
diferentes tempos e lugares: O que faço eu aqui?
Interroga-se, muitos anos depois,
Domingas, a negra que toda a vida tomou conta da filha do fazendeiro da Baixa
do Cassanje, ambas transplantadas na metrópole, para escaparem da guerra.
Simetricamente, na solidão à beira do deserto, no Namibe, interroga-se o antigo
chefe de posto, um pobre-diabo português, filho de pobres-diabos portugueses,
que fora para Angola “por causa das pretas” e em busca de fortuna. Para fugir,
certamente, à “melancolia cinzenta” deste “logradouro de pobres” que é
Portugal. O avô sempre lhe dissera que ele havia de ir longe “e mais longe não
existe, isto é o fim do mundo” (p. 301). Interroga-se, com particular
pungência, a filha do fazendeiro — lembrada do pai “aprendendo a morrer num
cubículo sujo” na “rua das putas” em Malanje, lembrada talvez dos “gritos
fosforescentes dos morcegos” nas mangueiras — pois, nascida em Angola e
expedida para Portugal, ficará para sempre aprisionada num duplo
desenraizamento. Não sabe, literalmente, de que terra é. E sempre a cantilena,
numa reiteração rítmica: “Tem duas margens o mar”. Terá? Quantas margens tem o
mar?
A ficção pós-traumática de Lobo
Antunes evoluiu, genericamente, no sentido de uma expansão e de uma
intensificação obsessivas e metódicas das possibilidades narrativas da
“corrente da consciência” e do monólogo interior. Em A Outra Margem do Mar a
técnica do fundido-encadeado das várias vozes concorrentes é levada mais uma
vez até ao limite da sua sustentabilidade, até ao limiar da desarticulação do
discurso.
No abismo voraz da consciência a
galope, a montagem paralela dessas vozes agarra-se a imagens ínfimas,
infinitamente perecíveis, “porque as coisas importantes não se pegam à memória,
é óbvio, são as de cacaracá que não nos largam nunca”. Como “as gotas de água a
tremerem no rebordo das telhas a seguir à chuva” (p. 116), “uma torneira que
pinga insónias às duas da manhã”, ou um “helicóptero que despenteava o capim”.
Na “prateleira mais alta da boca”, suspendem-se, as vozes, de pedaços de
frases, de palavras cindidas pela presença simultânea de vários planos
temporais e espaciais.
Só aconselhável a leitores fortes
e que não sucumbam à sentimentalidade, a prosa de António Lobo Antunes
entranha-se-nos na alma, se a tivermos, e nunca mais nos larga. A rememoração a
que as personagens se entregam incessantemente amargura, desespera passivamente.
E nenhum gesto, nenhum desejo, nos pode resgatar. É a prosa mais triste que há
em Portugal. É outra loiça.
por Mário Santos
em Ípsilon, Público
21.11.2019
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