A mão de Lobo Antunes

«Escreve-se, quando o pensamento desce para a mão.»



Encontrarão esta belíssima definição do trabalho do escritor, no primeiro número da «Entrevista», um passeio inspirado nalguns dos melhores artistas da actualidade, que lançam luz quer sobre a sua arte, quer sobre a nossa época.

E quando a mão é feliz, ela move-se sozinha, encontra o seu caminho, escapa-vos e acaba por fazer o que ela entende. O escritor não é tanto aquele que conta histórias estruturadas por intrigas encarnadas pelas personagens, mas antes esta mão feliz que ouve vozes e tacteia no escuro. As vozes chegam, a mão move-se e o escuro torna-se menos escuro. O pensamento prolonga-se no gesto, dá lugar à escrita, um dom indefinido que dá vida àquele que oferece e existência ao que a recebe.  

«Escrever é como escrever, não é propriamente a intriga ou a história, é antes o modo a partir do qual tudo isso é feito e em que todo o bom livro se revela a nós próprios», esclarece António Lobo Antunes.

Os seus títulos são lendas de quadros, fragmentos de sonhos, lengalengas de crianças,  “Que Farei Quando Tudo Arde?”; “Eu Hei-de Amar Uma Pedra”; “Ontem Não Te Vi em Babilónia”; “Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo”;“ Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?”; “Sôbolos Rios Que Vão”. Por vezes, eles assumem a brutalidade exaltada dos tratados antigos ou dos sermões místicos medievais, “A Ordem Natural das Coisas”; “Da Natureza dos Deuses”; “Conhecimento do Inferno”; “Explicação dos Pássaros”; “Exortação aos Crocodilos”; “Manual dos Inquisidores”. Alguns parecem ter saído directamente dos bons velhos romances picarescos, “Os Cus de Judas”; “Auto dos Danados”; “As Naus”.

“ O escritor não é tanto aquele que conta histórias, mas antes o que ouve vozes ”

“Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água” será, sem dúvida, o título da sua próxima obra.

Eduardo dos Santos, que reina sobre Angola há trinta e sete anos, país onde Lobo Antunes cumpriu serviço militar como médico, durante a guerra da descolonização, nos anos 70, acaba de colocar a sua filha, um dos seus irmãos e uma das suas irmãs em lugares-chave do poder, respectivamente, a chefiar a companhia petrolífera pública, a gerir os fundos de investimento financiados com dinheiros públicos e a presidir ao comité do MPLA. Estes três, donos pelo seu poder dinástico de 26 milhões de angolanos, lêem talvez aquele que foi médico e psiquiatra, antes de se tornar escritor. Mas não é certo que assim seja.

Eduardo dos Santos e Lobo Antunes têm exactamente a mesma idade, 74 anos. À sua morte, o primeiro será mais chorado que o segundo, mais chorado, mas menos lamentado. Foi preciso haver guerras, lágrimas e sangue para estabelecer o poder de um, e quase nada para estabelecer o poder do outro. É preciso muito pouco para fazer brilhar um idiota, já que é assim que Lobo Antunes classifica o escritor. Outros escritores amados contra quem se escreve para se desfazer dos seus sortilégios, algumas frases soltas que mudam a vossa experiência de vida, numa luta encarniçada contra a sua própria língua, nada mau no que diz respeito a solidão e mais ainda de trabalho.  

O idiota brilhante

O português encontrou o seu caminho, pensando no ténis.

Ao ler por acaso uma crónica desportiva num jornal americano, António Lobo Antunes depara-se com uma explicação da superioridade de Borg: enquanto os outros jogadores jogavam ténis, o sueco fazia outra coisa. Não jogava ténis. O escritor apoderou-se imediatamente da lei de Borg: “ Tinha de encontrar o meu caminho; dizia para mim mesmo: não tens de escrever histórias, precisas de encontrar outra coisa.” Assim, pôs-se a ouvir vozes em vez de encadear narrativas, fazendo, deste modo, do texto um espaço estereofónico sem princípio nem fim, em vez de uma pequena bobina que desenrolasse o fio das histórias. Tinha nascido o idiota brilhante, e com ele o homem que ouve, em vez de falar, que segue de perto a presença das coisas sob o véu da linguagem, que capta na mais minúscula das experiências a unidade da vida por completo, deixando fluir o pensamento para a mão. E de seguida? Quase nada, uma vez que tudo estava colocado. Algumas frases felizes como em Tchékhov: “Desce, desce para onde se encontram os outros e posiciona-te entre eles”.

“Borg não jogava ténis; fazia outra coisa. E o escritor apoderou-se imediatamente da lei de Borg”

Ou com Dickens, em “Tempos Difíceis”: há uma passagem, extraída de um diálogo entre o filho e a sua mãe moribunda. “Estás a sofrer, querida mãe?” E a mãe respondeu-lhe: “Tenho a impressão que há um sofrimento no meu quarto, mas não sei se me pertence.” Acredita-se em tornar o mundo mais claro, colocando-o em palavras: ilusão da inteligência da qual o idiota brilhante não está enganado.

“Escreve-se sempre no escuro; é-se completamente cego. Julgamo-nos lúcidos, dotados de inteligência. Talvez não sejamos senão a criança que sempre fomos, a criança que, às apalpadelas, procura traçar um caminho no mundo que desconhece completamente, que o surpreende a cada passo dado, que pode fazê-lo rir ou chorar a qualquer momento.

A palavra silêncio

Quanto mais o pensamento desce para a mão, menos a mão interfere nas coisas. Estas diluem-se em palavras que, por sua vez, se diluem em música. “Na escrita, a música está em primeiro lugar. Toda a arte tende para a música e a música tende para o silêncio. A tendência é para o silêncio, procurando expulsar as palavras dos livros. Atrás das palavras, e entre as palavras está a palavra silêncio. Como nos quadros de Vermeer. O   tempo infiltra-se através das fissuras dos quadros de Vermeer como um mistério noutro mistério.”

A entrevista termina. Por um instante, fez-nos esquecer o ruído das bombas lançadas sobre Aleppo, os miados dos gatinhos que vão esfolar-se para as primárias de esquerda, os ruídos das botas dos novos cow-boys americanos e o fim do reinado da dinastia Eduardo dos Santos.


Paul-Henri Moinet
20.12.2016

traduzido por Olga Maria Carvalho Santos Fonseca

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