Isabel Lucas: «António Lobo Antunes: com o fantasma de um herói, à procura da linguagem universal» - crítica a Diccionario Da Linguagem Das Flores

António Lobo Antunes: com o fantasma de um herói, à procura da linguagem universal

Júlio Fogaça é o pretexto para a busca de um modo certo de dizer em mais um livro de António Lobo Antunes. Que parece, cada vez mais, estar a escrever um livro único. É a vez de Diccionario da Linguagem das Flores.


A notícia de que o [36º] romance de António Lobo Antunes era sobre Júlio Fogaça, o histórico do Partido Comunista que o partido quis apagar da sua história, só podia ser um exagero. Ele é, de facto, o núcleo de Diccionario da Linguagem das Flores — assim se chama o livro —, mas recriado ao serviço das obsessões do escritor e um meio para prosseguir o seu retrato social, muito íntimo, do país, neste caso em meados do século XX, com a luta de classes, o pouco contraste entre a vida rural e a suburbana, a clandestinidade do combate ao regime, a decadência de uma certa aristocracia ou comportamentos ambíguos de uma sociedade beata cheia de pecadilhos e perversões. Isso sempre de forma pouco explícita, dado através do exercício de linguagem que parece ter transformado os últimos romances de Lobo Antunes num único livro, o do seu próprio questionamento acerca da vida, da identidade, da capacidade da linguagem para apreender um sentido nunca encontrado de outro modo.

Dividido em 24 capítulos, Diccionario da Linguagem das Flores reconstrói a figura e o percurso de Júlio Fogaça (1907-1980) através da sua teia de relações pessoais. Cada capítulo tem uma perspectiva, a começar pel’O Mecânico Amante Dele, e a seguir com Um Camarada Dele, A Irmã Dele, O Filho do Caseiro Dele, A Companheira Dele, O Pai Dele, etc. Todos, gente e lugares — um capítulo chama-se Tarrafal — definidos na sua função como o então elemento do Comité Central, mas cada um ao mesmo tempo numa existência autónoma em relação a ele, enquanto peças que no conjunto compõem a paisagem social do país mas também o fio do pensamento do escritor marcado por indagações sobre o passar do tempo, a doença, a velhice, uma ironia cheia de amargura, embirrações gramaticais e a procura da tal linguagem universal que parece estar nas flores e que surge como uma espécie de fio narrativo que une as pontas do espectro em que nos é dada a personagem de Fogaça. Tudo gira à volta dele sem que ele jamais se revele, sem que alguma vez nos seja permitido vê-lo, apenas adivinhá-lo na penumbra em que se movimenta no livro e aumentando o mistério à volta da sua biografia pessoal mais do que política.

«...não esperava uma pessoa assim, não era um camponês nem um operário, era um príncipe juro, um príncipe, alto magro, com dedos compridos, a boca de filigrana, os gestos tão lindos», sabemos da “companheira”, figura feminina destacada pelo Partido para partilhar com ele umas semanas da clandestinidade em Sintra que secretamente sonhava apresentá-los aos pais na aldeia do Rosário, junto ao Tejo, de onde tinha saído para se juntar à luta anti-fascista. Lá, nesse sonho de vida, teriam oferecido ao “príncipe” a única relíquia da família, «um livro antigo, encadernado, gasto, sujo que o meu pai descobriu ao substituir o chão de cimento por um sobrado de tábuas, chamado Diccionário da Linguagem das Flores e por baixo do título, a lápis, Este livro pertence a Maia Fernanda 1863, com um parágrafo que decorei e me comove ainda...»

A narrativa segue com variações sobre esse parágrafo, numa grafia antiga que o escritor trabalha, convocando a poesia de Sadi, o poeta iraniano, ou evocando Letters from Brussels in The Summer of 1835, de Anne Laura Thorold, numa apropriação livre: «O poeta Bonnefous entregou ao objeto dos seus amores duas rosas, uma branca e a outra do mais vivo encarnado, a branca para imitar a pallidez da sua tez, e a encarnada para pintar os fogos do seu coração; e ajuntou a este mimo belos e sentidos versos».

Está no capítulo chamado Tarrafal, entre relatos de crueldade e morte ou de superação, com ressalva para a palavra “relato” aplicada à escrita de Lobo Antunes: é mais uma sugestão feita de interditos, silêncios, expressões entrecortadas a não permitir fugas de atenção ao leitor para mais tarde o descansar explicando melhor a posição de Júlio Fogaça numa altura decisiva no Partido, a de disputar a liderança, aqui na fala de um camarada à companheira que terá a missão de esclarecer o grande tabu à volta do candidato, a sua sexualidade: «o problema consiste na escolha do novo secretário geral que tem de ser eleito o mais depressa possível para acalmar nervosismos e tu sabes como é porque conheces o Partido, as tendências, os desejos de poder, as invejas, as competições e daqui a nada a gente desata a apunhalar-se uns aos outros para além dos desvios ideológicos que não param de crescer e os soviéticos, claro, estão a perder a paciência (...) temos dois candidatos e os camaradas hesitam, por um lado o que está agora não satisfaz a maioria, demasiado autoritário, demasiado distante, falta-lhe calor humano entendes, falta-lhe humildade, o segundo discípulo favorito daquele que morreu no Tarrafal, mais aberto, mais simpático, mais humilde apesar de pais ricos, uma quinta enorme para os lados das Caldas, com uma sala de música e tudo onde a irmã toca piano enchendo-nos a alma de lágrimas felizes, a única questão, que faz hesitar as pessoas e temos de levar isso em conta, é que alguém pôs a correr no Secretariado que esse camarada uma característica, se assim me posso exprimir, que esse camarada uma espécie de vício escondido que o torna vulnerável à crítica para além de uma ameaça a espíritos menos evoluídos».

A heroicidade de Fogaça está implícita em múltiplos discursos, de amigos, família e de gente que tem a função de o perseguir: «nunca casou, nunca teve filhos, nunca teve mulher, não bufou nunca, aguentou-se, aguentou-se na estátua, aguentou-se no sono, aguentou-se na biliosa em silêncio, se calhar pensando no piano quando a irmã tocava ainda, podem tapar-se as feridas com música», ou «contam-me que o viam em Lisboa, num bairro de desgraçados chamado Pedralvas onde as caravelas da Índia sobem e descem os becos de Diu, misturadas com viúvas e rafeiros, para se encontrar não com uma mulher, com o mecânico de uma oficina de carros num quartito alugado», diz O Pai Dele, ou ainda «Até no Tarrafal estiveste preso e nunca soltaste um nome nem lhes abriste a caixa». E agora é O Amigo Dele, já no fim do livro, nos únicos momentos em que aparece o nome, Júlio, duas vezes pela mesma voz, mesma voz que escuta outra a tentar tirar-lhe a denúncia: «Sabemos que o camarada Júlio é homossexual». E a sombra de Júlio Fogaça persiste, intocável, aplicando-se-lhe a linguagem das flores, talvez segundo a interpretação d’A Madrinha Dele: «Para bom uso da linguagem das flores poucas regras bastam. A primeira consiste em saber que uma flor apresentada direita exprime um pensamento, e que basta invertê-la para que represente o contrário.»


por Isabel Lucas
em Ípsilon, Público
19.11.2020

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