António Sá: «Saudades & decadências (perspectiva sobre A Outra Margem Do Mar)»

Saudades & decadências (perspectiva sobre “A outra margem do mar”). António Lobo Antunes, A outra margem do mar, Lisboa, Dom Quixote, 2019, 368 pp.



Em história recente da aventura lusa por terras africanas, há esse inevitável, metafórico buraco-negro, o da Baixa de Cassanje, lugar concreto, situado no norte de Angola, datas concretas na agenda dos primeiros anos da década de sessenta do século XX. Dados a não obliterar, nem esfumar em inexistência, a não ser por feroz ironia ou sarcasmo. A Baixa de Cassanje é o lugar onde a suposta bondade do colonialismo português colapsa. Aí, a esse tempo, se desencadearam os ataques de indígenas sublevados contra o domínio colonial. Esta sublevação aconteceu num momento histórico que a propiciava, quando sopravam ventos independentistas na colónia europeia fronteiriça, o Congo Belga, cuja libertação do domínio belga ocorrera a 30 de Junho de 1960. Os amotinados tinham o exemplo e a cooperação activa de rebeldes congoleses e, em território angolano, a inspiração evangélico-telúrica de um iluminado caudilho, o equívoco herói António Mariano. Instigados por este, os trabalhadores nativos iniciaram uma greve a 4 de janeiro de 1961, e em breve a rebelião acelerou, com a chacina de famílias de fazendeiros, o incêndio de plantações de algodão e outras acções de destruição; de passo, amotinaram trabalhadores da administração colonial, tais como os sipaios, forças policiais integradas por negros. A estes ataques, o exército português respondeu com uma ofensiva militar de vertente etnocida, materializada em operações terrestres de massacre indiscriminado e raides aéreos com napalm. Estes eventos históricos constituem o núcleo, buraco-negro para onde convergem as linhas narrativas que tecem o livro A outra margem do mar (António Lobo Antunes. 2019).

Os protagonistas dessas narrativas são eles mesmos os narradores das suas situações passadas, presentes e futuras. Considerando presentes as situações ocorridas na Baixa de Cassanje a partir de 1961; passadas todas as que se reportam aos antecedentes dos protagonistas, desde a infância; futuras as que dão conta dos devires, já geograficamente distantes, de tais personagens, que alguma vez convergiram no tempo e no espaço, nesse ano-charneira do colonialismo português. Esta datação nunca é inscrita no livro, embora a temporalidade seja inequívoca, por se tratar de acontecimentos históricos; sendo pelo contrário a espacialidade recorrentemente referida e glosada, enquanto matéria mesma do magma textual.

São três os protagonistas que conduzem as suas próprias narrativas, embora pontualmente cedam lugar a intromissões de outros personagens secundários. Estes três protagonistas-narradores, em sucessivos capítulos atribuíveis à vez a cada um, são a filha de um fazendeiro, um chefe de posto e um coronel. Enuncio a seguir um repositório do discurso que “vai na alma” desses três protagonistas, por ordem de entrada.

1. A filha do fazendeiro.

Neste seu futuro, é uma idosa decadente, que nunca se narra na verdade enquanto mulher adulta, vendo-se enquanto criança e adolescente, para num lapso ver-se idosa e senil. Ainda jovem, o pai mandou-a de barco para Portugal, juntamente com Domingas, a ama negra. Vivem e envelhecem ambas indigentemente, neste futuro, numa casinha em acelerada entropia, sita em vila costeira algures no norte do país. A vizinhança estranha essas duas mulheres, a branca tisnada associal e a serviçal negra, estranheza prenhe de curiosidade, coexistente com retraimento, comentários malévolos, rejeição de tais corpos sociais, que se afiguram exóticos. Esta narradora, sempre “menina” da sua ama, mesmo já idosa e demente, quer voltar à sua fazenda de infância, espera alucinatoriamente que o pai lhe escreva uma carta a mandá-la regressar a Angola, vive imersa em saudades. Saudades de quê? Entre linhas e costuras que cosem a manta do texto, vêm esparsos os motivos de tais saudades, que serão: uma ideia de África em abstracto; a paisagem e a passagem de animais selvagens. Um exemplo: “(…) e depois África que perdi para sempre mesmo que lá continue, quem deixa África digam-me (…)” (225). E estoutro: “(…) enquanto as flores do algodão entravam e saíam pelas janelas abertas, brancas, cinzentas, secas, lembro-me do milho a restolhar no Cassanje, dos mandris que se aproximavam em silêncio, das noites opacas em que ferviam vozes, de nós duas [a narradora e a ama] nos compartimentos desertos quando o meu pai em Malanje, de António -Mariano a olhar para nós rodeado pelos seus discípulos de túnica, dos aviões que o procuravam, ora perto ora longe, girando em Cassanje (…)” (225-226). Neste fragmento acrescenta-se a emoção, muito adolescente, de encarar um personagem famoso, ainda que temível. E acrescento ainda este exemplo: “(…) lembro-me das mangueiras, dos remoinhos do cacimbo, das estrelas, tão diferentes destas, que iluminavam a noite, do macaco no seu poste que os discípulos de António Mariano mataram à catanada, das cabras que trotavam sanzala fora a escaparem-se deles, da aldeia dos leprosos que gatinhavam junto ao rio, dos mabecos que se aproximavam a pouco e pouco, do velho que uma fêmea abocanhou de repente jogando-o contra a erva sem que os outros leprosos se movessem sequer (…)” (176). É uma adolescente recluída, o pai proíbe-lhe a proximidade de rapazes, e que estudou, breve única referência, num “colégio de freiras”; no entanto tem visão de narradora omnisciente, e perscruta o horror nas sanzalas sob assédio e na “aldeia de leprosos”.

No entanto, não é de crer que lhe suscitasse saudades o filme de terror da infância e adolescência vividas na Baixa de Cassanje. Não terá saudades do pai fazendeiro, de quem foge, lembra-o de chibata e espingarda, a ele está associada a macabra “caveira de hipopótamo”, que guarnece a entrada da casa. Homem violento, casara com uma prostituta elegante achada na “rua das putas” em Malanje, a qual tem escondidas relações extramaritais com, entre outros, o “preto da espingarda”, homem-de-mão do marido, e o “belga da Cotonang [companhia que explorava a produção algodoeira] ”. Esta última relação, de contornos passionais, desperta no marido um ciúme assassino, que o leva a emboscar e a comandar o assassínio, pelo seu homem-de-mão, do “belga da Cotonang”. Acontece que o agente da execução, o “preto da espingarda”, mantém relações sexuais com a mulher, “essa puta”, como diz o marido; tratou-se de um assassínio cometido na estrada, mas a filha do fazendeiro, sempre omnisciente, parece estar lá, visualizando o guião exacto da sequência. Este pai violento também assassinará esse homem-de-mão, o fiel “preto da espingarda”, não por este fornicar com a mulher, deslealdade que ele não desconhece, incitando-os até a manterem relações sexuais na sua presença, numa sanha de sadomasoquismo destinada a humilhá-la e assustá-la, mas pelo facto de o dito negro não ter acatado o seu interdito de se aproveitar sexualmente da Domingas quando jovem. Deste pai, a filha omnisciente traça o perfil grotesco, anotando os desvarios a que se entrega, após ser abandonado pela “puta” que é sua mulher. Nessa tal “rua das putas”, embriagado, ele quer tê-las todas consigo, “— Todas numa só cama comigo”; é levado a braços para casa; tropeça no mobiliário, cai e fere-se. Relevo este passo: “(…) o meu pai descuidado, indiferente, passava os domingos na varanda, armado de uma garrafa de marufo, a deslocar-se quase de gatas frente às mangueiras ou a disparar a pistola aos morcegos sem acertar em nenhum, acertou no macaco do poste e manteve-o ao colo até o bicho morrer (…)” (275). Como o bicho também foi morto à catanada pelos discípulos de António Mariano, é caso para dizer que o “macaco do poste” teve duas vidas.

Não terá também saudades da mãe, que a negligencia, pretere em relação a uma anterior filha, falecida em tenra idade. Esta mulher, prostituta resgatada, está refém da relação insustentável com o fazendeiro, que odeia. É recursivamente vista a pentear os cabelos e, temendo ser assassinada, acabará por abandonar filha e marido.

Menos saudades ainda terá de um obsceno vizinho, “fazendeiro velho”, que abusa dela sexualmente. Leva-a, com assentimento do pai, a passar a noite na sua fazenda. Este pai, que a proíbe de frequentar rapazes, não põe obstáculos a que ela, sendo menina de treze anos, seja assim abusada; displicentemente sabe que é assim mas, por misteriosas razões, permite que isso aconteça.

Esta filha do fazendeiro narradora ficará solteira, com infeliz memória dos seres humanos, “(…) acho que não gostei de ninguém até hoje (…)” (118), dependente dos cuidados da fiel ama negra Domingas. Vive os seus últimos dias em demência senil, vendo perpétuas, ameaçadoras invasões de caranguejos, mas é narradora à qual é atribuída a criação do livro. Reproduzo em série brevíssimas passagens que o testemunham: “(…) isto sou eu a imaginar (…)” (9); “(…) isso conto depois, não conto, pode ser que conte (…)” (16); “(…) julgo que me enxotaram para aqui [Portugal] porque não existe Angola nem as mangueiras nem os morcegos, é uma espécie de sonho que vos estou a contar (...)” (226); “inventei África, as plantações a arderem, inventei este livro, inventei as palancas a trotarem sem fim, as narinas delas abertas, aqueles olhos enormes, um bando de leopardos ocultos no capim à espera, nada do que digo é verdade, estou realmente a contar um sonho (…)” (227); “(…) eu para a senhora da casa a seguir à nossa [em Portugal] / — Nada do que lhe contei é verdade percebe / os meus pais, o fazendeiro, a Domingas, os discípulos de túnica (…)” (234); “(…) isto não é um livro, palavra de honra, é a vida (…)” (274); “(…) a tua filha [diz um farmacêutico ao pai da narradora] já pouco mais tem a dizer neste livro (…)” (277); “ (…) os morcegos a gritarem de súbito junto ao portão, lembro-me de um deles, não estou a inventar, com uma cria de rato, mentira, estou a inventar, apetece-me inventar, nas unhas, por exemplo a presença do preto ali inventei-a agora e por isso é autêntica (…)” (280). Nestas passagens ocorre a alusão a elementos da paisagem, incluindo fauna e flora, animais vistos em zoom aproximado, “narinas (…) abertas”, “olhos enormes”: aqueles elementos que lhe suscitariam as tais saudades puramente espaciais. E a alusão aos odiados pais e ao “fazendeiro velho”, e ainda à ama negra que a acompanha desde sempre. E uma vez que terá inventado o livro, este particular livro, ela terá inventado os outros narradores. E há um tópico que se reitera, o de uma “verdade” quanto ao narrado: “isto (…) é a vida”; ou da ausência dela: “nada do que digo é verdade”. Deslindando estas injunções, considere-se que há uma “verdade” inerente ao narrado, o qual constituiria, por sobreposição, a vida mesma. Mas é uma “vida”, ou uma “verdade”, que só o é por ser inventada: “inventei este livro”; “a presença do preto ali inventei-a agora e por isso é autêntica”. Verdade inventada esta que condena África à inexistência: “porque não existe Angola (…) é uma espécie de sonho que vos estou a contar”. Extrapolando este conceito para o domínio genérico da criação literária, todo este livro será “verdade” enquanto decorrente do inventado, ou seja, do imaginário atribuível a esse narrador-supremo, qual seja António Lobo Antunes. “Verdade” enquanto coisa mental, glosando, por outras palavras, a frase de Dante Alighieri.

2. O chefe de posto.

“(…) eu que desde a reforma vivo no Namibe (…)” (90) — este é o seu futuro. Vive com uma albina de etnia negra, comprada ao respectivo pai, dir-lhe-ia o tio que “uma albina preta é uma aberração”. Sobrevive gerindo um “cafezinho da praia”, numa paisagem desolada, areal onde “(…) se eu cavar um bocadinho a areia com as mãos, por exemplo, encontro logo ossos antigos, devem trazer os velhos e os animais que não servem, cabras, cachorros, para morrerem aqui (…)” (296). Praia onde a espécie humana rareia: para além da população nativa das sanzalas, há “(…) um mestiço, reformado dos caminhos de ferro” (141), que bebe marufo com eles, e que entretanto morre; e um indiano ou timorense, “(…) sempre tive dificuldade em distinguir raças estranhas (…)” (189), que lhe propõe a cedência da albina por umas horas, em troca de “(…) fuba, um garrafão de marufo e dois pacotes de liamba (…)” (189), cujo consumo lhe produz alucinações povoadas de gente.

Tal como a filha do fazendeiro, também ele manifesta saudades, mas em duplicado. Estando em África, neste seu último futuro, no Namibe, de onde sabe que não sairá, ele sente saudades de Angola, da Baixa do Cassanje, região onde foi chefe de posto; mas também sente saudades do seu Portugal de origem. O livro documenta estas duas fontes de saudades, de que se seguem alguns exemplos.

Para as saudades de Angola, retiro este passo: “(…) falta-me Marimba, faltam-me os jacarés do Cambo, falta-me a jangada que atravessava o rio, faltam-me as noites da Baixa do Cassanje que murmuram, murmuram (…)” (192). No entanto, estas serão umas saudades deterioradas, se se atender ao contexto onde esse tempo presente foi vivido. De facto, todas as circunstâncias que decorrem da acção narrada, relativamente à Baixa de Cassanje, lhe foram dramaticamente desfavoráveis. As plantações de algodão incendiadas; o seu negócio de angariação de contratados suspenso; a debandada dos sipaios, que seriam a sua salvaguarda, entretanto sublevados: tudo acontece como resultado da insurreição conduzida por António Mariano e seus discípulos. O clima que se vivia, nesse presente, era aterrorizador, com o assassínio de famílias de fazendeiros e de comerciantes; mas os rebeldes poupavam-no, enquanto chefe de posto, embora aparecessem ameaças de morte escritas a sangue de cabrito nas paredes da casa. Foi-lhe poupada a vida mas, após o controlo da insurreição pelas tropas lusas, o governador de Malanje deu-lhe contundentes descomposturas pela inacção e brandura, sugeriu-lhe ir-se dali embora, para não ser alvo de represálias da Cotonang, e enfim despediu-o, para desgosto da secretária do governador, “feia coitada” com a qual ele mantinha uma cínica relação. Antes de abandonar o seu posto, este narrador pegou fogo à casa, a que chama “barraco”. Mesmo assim, já no Namibe ele receberá uma carta do governador, convidando-o a regressar ao posto, visto haver quebra de funcionários da administração colonial, mas hesita em aceitar, já não parece motivado a sair do seu pouso no Namibe.

Tendo assim saudades da Baixa de Cassanje, a que não vai voltar, tem-nas também, mais insistentes, do Portugal da infância e da juventude, a que por vezes sonha regressar, saudades coincidentes com as do coronel, mas em sentido inverso ao das saudades da filha do fazendeiro. Das saudades do passado do narrador chefe de posto, retiro o seguinte fragmento: “(…) e eu com saudades de Lisboa, gaivotas, gaivotas, dos meus pais e das tardes de verão, ao domingo, quando ao fim do dia vinha à janela olhar a paz da rua com os automóveis de todos os vizinhos estacionados lá em baixo, homens de casaco de pijama a conversarem à porta do cafezito fechado, dois miúdos com um triciclo no passeio, o cachorro que demorava séculos diante de cada cheiro, preocupadíssimo (…)” (38-39). Saudades de elementos heteróclitos, ocasionais, que constituem uma paisagem urbana povoada, e onde se engasta a alusão aos pais. Mas em relação a estes, como a todos os outros familiares, o narrador apresenta-os de modos ora patéticos ora grotescos. O pai irrita-se com a mãe, quando ela se inquieta com os medos nocturnos da criança; o sexo entre os progenitores, à distância percebido, tem contornos de caricatura; desentendem-se, a mãe tem ciúmes de uma farmacêutica, enfurece-se quando o marido põe em dúvida que a criança seja seu filho. Enfim, o pai é um “idiota”: “quando não lhe interessava nem meia ver-me, [ao personagem-narrador] foi modo que ele arranjou, o idiota, de disfarçar o medo, nada sobrava já de mim na sua cabeça a não ser a vaga ideia de uma criatura calada” (89). Em desvario da imaginação, o narrador concebe uma intoxicação colectiva por gás, na casa paterna; noutro momento, vê a mãe enquanto figura de bestiário: “(…) a minha mãe a interrogar-se em pânico para dentro / — Vou acabar como as vacas? / sentindo o corpo a esvaziar-se e um duplo queixo pendente, moscas que tentou sacudir com a cauda até compreender que a não tinha (…)” (343). Mas são pais solidários, dispõem-se a ajudá-lo com as suas economias, se a aventura angolana não lhe correr bem; no entanto, risivelmente, uma prima descobre que eles tinham as economias guardadas numa “lata de açúcar”. Há ainda um avô femeeiro, que tem uma trombose e é grotescamente retratado na sua invalidez. Também há um tio alcoólatra e picaresco, que o considera “parvo” e o condena por ter emigrado para Angola. E ainda uma madrinha pobre, velha aleijada, que diz esta originalidade: “— Quando me dá a fome vêm-me ganas de me comer a mim” (26); e sobre cujas “histórias intermináveis” o narrador criança comenta: “(…) queria era o chocolatito no fim, não me interessava um tusto a sua vida (…)” (30). Para além desta gente da família, surge uma “antiga namorada”, da qual lembra momentos de embaraço no “desvestir”; ela tê-lo-á esquecido e casado entretanto; e o narrador perspectiva-a negativamente, em contraste com a albina com quem vive. A “antiga namorada” caprichosa e mandona, a albina calada e submissa: “[a albina] sentada sobre os calcanhares sem me olhar, nunca me olhou, aceitava o facto de a ter comprado ao pai e bastava-lhe, (…) a namorada que tive em Lisboa começava logo a crescer no caso de lhe pedir fosse o que fosse / — Mas desde quando é que tu mandas aqui? / com as pessoas na rua a medirem-nos, as famílias não as educam para serem o que devem ser, em lugar de obediência um risinho de troça só com metade da boca, o resto da cara sem me ligar sequer, o nariz distantíssimo de mim / — Olha-me este” (196-197).

Que de toda esta gente tenha saudades, não o declara textualmente, embora manifeste, como já referi antes, saudades da povoada paisagem lisboeta, além de saudades quanto a objectos da infância: “ (…) tenho saudades de um prato de loiça azul com um castelo estampado, preso à parede por três ganchinhos, como tenho saudades da santa na cómoda, de pé numa nuvem de barro a olhar o tecto (…)” (78); “ (…) tenho ideia de um triciclo, tenho ideia de um baloiço, tenho ideia de ser mais alto que você [o pai] mas se calhar invento (…)” (78). Neste último passo, o pai aparece como um elemento mais da enumeração objectal.

Se a narradora filha do fazendeiro terá inventado este livro, o narrador chefe de posto ter-se-á inventado a si mesmo, ou seja, inventou a sua circunstância africana, bem como o seu passado familiar, decorrendo tudo de um estado febril da infância: “(…) que fantasia sem nexo, claro que não existe África senhora [a mãe], é a febre da gripe consoante é a febre da gripe imaginar os meus pais” (194).

3. O coronel.

“Como nunca regressei a Angola estou aqui em paz, julga a minha mulher, a gozar a reformazinha em Lisboa, depois de quarenta anos no Exército, no apartamento que em má hora herdámos dos meus sogros, com uma clarabóia lá em cima suja de pombos e nuvens” (95). Este é o futuro do coronel, o terceiro narrador. A mulher crê que está “em paz”, mas não, ele vive assombrado com o apartamento que habitam, e sempre desgostado com ela, tudo o que ela é e faz o enerva, vê-a irreconhecível. No final de uma enumeração dos gestos que nela o enervam, perfila-se a figura do sogro: “(…) o teu cotovelo esquerdo sempre em cima da toalha enervava-me, a dentadura postiça do teu pai a estalar se jantássemos com ele, e jantávamos com ele aos domingos, até os dedos dos pés me fazia dobrar, arrepiados, se suspeitava que ia rir-se encolhia-me todo porque me acotovelava e detesto que me acotovelem (…)” (98). A mulher aflige-se em silêncio, percebe o mal-estar do marido, teme em imaginação que ele o assassine, mas é só imaginar, e enfim o sogro “(…) desamparou-nos a loja há que tempos, ocupado a babar-se num lar, com um chinelo que o encanta a desfazer.se na mão (…)” (99). Tal como em Malanje recorria à “rua das putas”, o coronel agora reformado em Lisboa recorre a “senhoras”, que acompanha a pensões discretas, mas constata, como acontecia já em Malanje, a sua relativa inoperância sexual, apesar da insaciável apetência pelo sexo feminino. Dá-se conta também da sua decadência mental, “(…) já estou tantã coitado (…)” (166).

Por vezes, estabelece paralelos entre a paisagem africana e a paisagem lisboeta, e neste contexto, simetricamente às saudades do chefe de posto narrador, ocorre uma manifestação de saudades de Angola: “(…) nunca pensei vir a ter saudades de Malanje e a sério que tenho, meu Deus a falta que me faz o cheiro das mangueiras, caminhar pela avenida sem que os ossos dos joelhos tropecem uns nos outros nem as costas me doam neste sítio ao fundo da espinha (…)” (99). Saudades ambíguas, mais feitas de saudades de si mesmo, quando mais vigoroso e jovem. Mas neste Malanje de saudades, bem como no Luso, o coronel viveu os piores anos da sua vida. Se não, leia-se este auto-enquadramento: “(…) no caso da minha mulher demoro séculos a pegar fogo, com a amiga do general ainda nem risquei o fósforo e já ardo que é uma beleza, estávamos nesta vidinha quando principiaram as maçadas na Baixa do Cassanje, os pretos e os plantadores de algodão às turras e desafios e ameaças e pontes destruídas e sanzalas desertas e os armazéns em chamas e os brancos a amontoarem-se em Malanje (…)” (44). Estava ele a cumprir serviço militar em Angola, sem muito ânimo sexual com a mulher, mas muito animado com a “amiga do general”, “amiga” enquanto eufemismo, sendo ela amante de ambos — estava “nesta vidinha”, quando principiam aquelas displicentes “maçadas”, que são o início da chamada Guerra do Ultramar (1961-1974). Este início tem momentos que, no livro, se podem delimitar deste modo: sublevação dos trabalhadores “pretos”; repressão pelas forças militares e morte do líder António Mariano; controlo militar e regresso à normalidade, com renovadas plantações sobre o “napalm”, sarcasmo do narrador. Neste contexto, o dito general sonha, em clave de frustração e histeria, uma cena de massacre apocalíptico das populações das sanzalas. E é em contexto de guerra que o coronel narrador desvaria, dispara indiscriminadamente sobre civis, lança uma granada a uma nativa em fuga, e enfim recobra o autocontrolo: “o capitão ao meu lado / — Não avance mais meu coronel / uma granada de napalm à esquerda, uma granada de napalm à direita, uma outra a fender-se de alto a baixo, numa cabeleira de chamas, o torresmo de um pássaro grande que me tombou aos pés, o capitão com o qual a amiga do general se encontrava / — Meu coronel / de súbito diante de mim a olhar-me, ainda levantei a arma e ele calado, quieto, a entender e quieto, a aceitar e quieto, a consentir e quieto, ele agora baixinho / — Meu coronel / e eu a esquecer a arma, a largar a arma, a subir para a camioneta (…)” (219-220). Recobra a razão face ao seu subordinado, em relação ao qual teria intenção assassina, por ciúmes de este ser um amante mais desejado da “amiga do general”.

Assim a vida activa do narrador, neste seu presente, terá sido pautada por esta guerra, estando sob as ordens desse general da “amiga”, personagem enfático, recursivamente medicado para salvar uma paródica impotência sexual. General que o condecora e elogia pelas estratégias de ataque adoptadas, o destaca mais a norte para o Luso, cidade em cujos arredores se centra a rebelião, e enfim lhe adia o curso, em Lisboa, que o elevaria a general, posto sobre o qual o narrador coronel desenvolve um devaneio megalómano.

Nestes seus atribulados tempos, enquanto operacional do exército português, o narrador explica e pormenoriza as suas tribulações sexuais. Em relação à mulher, que conheceu num baile de cadetes, dificilmente poderia desenvolver um discurso mais misógino, ao ponto de se enjoar com uma etapa biológica como a menopausa. Mas, em frequente hipérbato, a sua mulher é assimilada a todas as mulheres após o casamento: “(…) a minha mulher não percebe, quer dizer se fosse minha amiga em lugar de esposa aposto que percebia, mal se casam desaprendem a maneira de pôr a gente a ferver, o descuido do cabelo, a roupa a trouxe mouxe, o pedregulho do calcanhar apoiado na nossa rótula a esmagar-nos para a massagem do joanete / — Olha-me esta miséria / e o joanete, vá lá, a desinchar coitado, um dia inteiro com o nosso roupão / — É mais confortável desculpa / que cheira a homem e a cigarro frio, o pobre, e desanima a boa vontade que vai murchando com os anos, uma cabeça cheia de rolos, por exemplo, assusta mais do que anima, a cera das pernas aplicada com uma espátula e puxada entre gemidos de extracção de queixal empurra-nos contra a janela porque as torturas arrepiam (…)” (45). Da sua individual mulher, o narrador passa ao plural: “mal se casam desaprendem”. Variadas e muitas são as razões de queixa contra a mulher, assim tipificada, distribuídas ao longo do texto. Tanto, que ele sonha com a possível morte da mesma, aquando de eventual doença cancerígena, que não se confirma; sonha que, falecida a mulher, poderá quando reformado reencontrar a “amiga do general”, que provavelmente estaria em Esposende, seu local de origem. Esta “amiga do general” estabelece o contraste com a mulher: frívola e leviana, ela representa a fêmea de corpo elegante, desejável. Entretanto, o leitor acompanha, com alguma linearidade sequencial, a discreta relação lésbica que envolve as mulheres do general e do coronel: os encontros, conversas e cumplicidade; o obstáculo que se perfila, decorrente da deslocação do coronel para o Luso, o que leva a mulher a falar horas ao telefone com a outra; por fim a viagem da mulher do general para Lisboa, por motivo de doença grave, de que virá a morrer. Mas o coronel é homem libidinoso, e a sua apetência sexual, com algumas dificuldades a nível da performance, leva-o a frequentar a “rua das putas” em Malanje, onde se terá acaso cruzado com outro frequentador coevo, o fazendeiro, pai da narradora nomeada no livro enquanto “filha do fazendeiro”. O chefe de cerimónias desta rua é um “cafuzo”, ou “mulato” e, por seu intermédio, o coronel conhecerá uma “indiana” e uma refinada “francesa”, além de algum “cafeco”, ou seja, rapariga indígena.

Justamente o que este narrador libidinoso retém de memórias de um seu tempo passado lusitano, quando infante, são as mulheres que o erotizavam: uma tia, uma italiana, uma prima, uma professora. Tem memória também de objectos da infância: um triciclo, uma pistola de fulminantes. Quanto aos progenitores, lembra sobretudo caricatas cenas de sexo mal adivinhado nas dobras do sono, muito perturbado por nocturnos terrores infantis, que eram o zelo da mãe, e que o pai impaciente aborrecia, tinha-o por “maricas”. O narrador não acredita que o pai se interesse de algum modo por ele, quando lhe manda “saudades” nas cartas que a mãe lhe escreve; e narra um episódio em que estava a espreitar a tia excitante, e esta o enxota, cuja sequência lhe permite dar uma ideia do seu transverso apreço pelos pais: “— Sai daqui o que é isso? / com os meus pais que assistiam a nós sentados num sofá a um canto, o meu pai para a minha mãe / — Se calhar não é maricas enganei-me / e a minha mãe, de prato de sopa ao colo, sorrindo aliviada, ambos velhos, coitados, de feições a transformarem-se pouco a pouco em caras de caixão (…)” (165). De uma exasperação amarga, visando o pai, é o seguinte depoimento: “(…) paizinho, paizinho, vou fazer-lhe uma confissão, a vida é uma merda ouviu bem, a vida é uma merda pegada, eu só major e você um espantalho, deviam empurrar-nos com a vassoura para o quintal das traseiras já habituado a receber o lixo, fixe bem o que eu digo e não torne a esquecer-se, a vida é uma grande merda, lembra-se de me pegar ao colo nos baloiços do parque, o seu cabelo preto, o seu sorriso, a tarde em que afastou com um pontapé de herói o cachorro que tentava farejar-me, eu agarrado à sua perna guinchando de medo e você numa energia fácil / — Não inquietes o menino meu idiota / cabrão do cão não é, você o meu herói, ainda hoje o meu herói, para sempre o meu herói (…)” (55-56). No entanto, contrabalançando os episódios de sexo caricato, há, no capítulo derradeiro, estando o pai em saída de fim-de-semana do hospital, uma epifania sexual dos progenitores, delirante motivo de orgulho universal do narrador.

Este narrador não inventa nem o livro, como a filha do fazendeiro, nem a sua vida, como o chefe de posto, mas, sendo um teorizador compulsivo do mundo seu, tem dele uma visão sumariamente niilista, como se leu no depoimento anterior: “a vida é uma merda”. E nas últimas páginas, ocorre a breve notação de um devir planetário que anula as geografias e a existência mesma: “(…) é tão rápida a vida, como tudo se desgasta e se distancia, mais uns anos e o mar nenhuma margem e pronto (…)” (359). Entendendo que, na geografia literária do livro, há duas “margens”, a “margem” portuguesa e a “margem” angolana — o tempo, que rapidamente decorre, as anulará “e pronto”, adeus planeta.

Aspectos comuns.

Em primeiro lugar, convém observar que todos os protagonistas-narradores são omniscientes, aliás até com uma visão de acuidade apreciável. E muitos temas comuns percorrem paralelamente as suas narrativas. O mais nuclear deles é o da rebelião contra os fazendeiros brancos, eclodida na Baixa do Cassanje, o tal buraco-negro enunciado no início, e a referência em espiral ao iluminado António Mariano e seus discípulos, que crêem ser magicamente imunes às balas. Dispersas passagens impressivas são as que descrevem a sua morte, numa cadeia, como esta por exemplo: “(…) António Mariano deitado morto na cadeia em Malanje, de boca aberta na cela, a olhar a gente com os dentes como fazem os mabecos antes de saltarem sobre nós (…)” (133). Bem como impressivas são as passagens que relatam operações bélicas de massacre de populações civis das sanzalas.

Outro desses temas que se expande em todas as narrativas é o da decadência física, ressentida e vivida enquanto catástrofe, não só pelos narradores, mas por todos os personagens que os rodeiam e que eles retratam. Na filha do fazendeiro, esta decadência reveste a modalidade de demência senil: em Portugal, na sua vila costeira, ela alucina perpetuamente invasões de caranguejos, que sobem pela praia, pelas paredes, por ela acima. A sua ama Domingas morre, num capítulo derradeiro, e assume, enquanto morta, o papel de narradora, angustiando-se com a sua impotência para proteger a “menina” dos caranguejos; A mãe, ex-prostituta sempre a pentear-se à janela, lamenta-se a esta “menina”, sua filha, pelo facto de envelhecer e se sentir só; e o pai fazendeiro entra em decadência alcoólica, após ter sido abandonado por esta mulher. Quanto ao universo do narrador chefe de posto, abundam as decrepitudes; desde logo, ainda antes da sua partida para Angola, ele vê o pai já velho, e mais tarde não o vê, mas imagina-o “(…) coitado, tão magro agora, setenta e nove anos é obra eu que sempre detestei a velhice, sinceramente nunca me passou pela cabeça termos uma idade assim, é horrível vais ver, não é só a vida que se perde, é a surdez, o cansaço, todas as escadas centenas de degraus, uma súbita gratidão pelos corrimãos, um amor sem fim aos patamares (…)” (140). É este um exemplo típico de enumeração redutora, modo de estilo sistémico, dando ao livro um carácter de longa litania agónica. Ainda o chefe de posto, quando reformado no Namibe, lamenta o seu envelhecimento e pensa que o pai, por experiência própria, o compreenderia; dá conta também, mais lento, menos visível, do envelhecimento da albina com quem vive. Mas é do avô, que sofre uma trombose, que ele traça um retrato mais elaborado, com uso reiterativo de metáforas infantis na hora de lhe levar alimento à boca, “— Abra a garagem senhor que o popó quer entrar” (240); e ainda psitacismos por ele produzidos página após página como “grande gaita”, “rapaz”. É este um retrato da máxima decrepitude humana, que o narrador, acentuando-lhe o grotesco, completa com pícaras aventuras sexuais, que o avô teria mantido com uma acrobata de circo. Também se revela impressionado já não com a decadência, mas com a morte de uma tia idosa: “(…) feições que não lhe pertenciam, pertenciam a quem, ensinem-me a morte, a tentarem imitar as suas, que pessoa estaria ali, tão distante dela mas fingindo ser ela (…)” (246). No atinente ao coronel, há linhas pungentes sobre a dificuldade em subir escadas na sua velhice, em Lisboa. E alinha-se, como num relatório, uma galeria de lamentáveis decadências: a do sogro, que por fim “desamparou-nos a loja”, a ele e à mulher, indo para um lar; a dos progenitores, em Viseu, onde o pai passa por um internamento hospitalar acaso definitivo, mesmo se com gloriosa saída ao fim-de-semana; e enfim a da mulher de orientação lésbica que, ainda num tempo presente, começa a manifestar os sinais da idade: “(…) apesar de tudo a minha mulher não engordou muito com o tempo, (…) talvez a pele que já não se enruga somente, principia a estalar aqui e ali apesar do creme e os vértices do peito a olharem para baixo envergonhados de si mesmos (…)” (211). Para além da gente de família do coronel, há a considerar, neste âmbito, o superior hierárquico de que está dependente, o general, homem obsessivo e fátuo, muito em foco na acção em tempo presente, quer quanto aos aspectos operacionais da ofensiva contra os revoltosos, quer quanto aos aspectos relacionais: ele é o general da “amiga do general”, e não é visto num processo de decadência ou degradação física: é já um exemplar humano na sua consumada decadência, dando ao narrador a oportunidade de construir um pequeno retrato dantesco: “(…) o general para a amiga / — Deita-te aqui ao meu lado / as pernas dele um bocado esqueléticas da idade, os pêlos dele ralos, grisalhos, as costelas para cima e para baixo em desordem, os dedos que começavam a falhar as coisas / — Anda cá / (…) / — Boneco / a pensar no capitão porque de olhos fechados a gente consegue se não pensar no cheiro a velho, isto é se tapar o nariz com dedos invisíveis / — Boneco / satisfeito, claro, de queixinho idoso a tremer, com uma bolha de cuspo a aumentar-lhe nos lábios, tentando uma palavra que parecia vir e não vinha, quando muito um suspiro dando ideia que feliz” (215-216).

Parece evidente que, com um repertório tão vasto de decadências físicas, assim oferecidas pelas narrativas dos três protagonistas, a sexualidade não seja das mais olímpicas. Comum aos três narradores é o infantil voyeurismo quanto às relações sexuais adivinhadas entre os respectivos progenitores, sempre entre o prosaico, o caricato, o grotesco, e que assumem um carácter de violência sádica no relato da filha do fazendeiro, e um carácter de epifania paródica no relato imaginário do coronel. No caso do chefe de posto, ele compra a albina negra, com a qual viverá no seu posto, na Baixa do Cassanje, e quando reformado no Namibe; ela segui-lo-á sempre fiel, calada, emanando seu mistério animal, e enfim manifestar-lhe-á apreço, sendo que ele experimentará um sentimento de fusão, no que constitui uma possível felicidade neste livro, em meio à indigência das suas vidas, na paisagem de praia e deserto; a albina, enquanto ser submisso e silencioso, servir-lhe-á de termo de comparação com a sua “antiga namorada”, em Lisboa, rapariga impositiva. Mas este chefe de posto, ainda quando em Angola, numa passagem por Malanje, vive, em clave cínica e misógina, um já referido caso com a secretária do governador, “feia coitada”, que decorre entre o caricato e o desastroso, porque no apartamento há uma tia com demência senil, mais outro caso de decadência, que repete a espaços o seu nome em voz alta, o que dificulta a concentração erótica do narrador. E ocorre observar que, tendo todos os narradores tanta memória de tantos familiares da linha ascendente, nenhum deles deixa descendentes; mesmo o chefe de posto, acaso tendo a oportunidade de ser pai, tal lhe foi subtraído por um parto induzido, à maneira indígena, pela albina; e a filha do fazendeiro, que acaba solteira em demência senil, nunca teve sequer namorado, que o pai agreste não deixava, ainda que, com verosimilhança ou sem ela, facilitasse os abusos sexuais do “fazendeiro velho”. De todos estes modos o sexo está omnipresente, ao correr das páginas, e dispenso-me já de reportá-los, porque isso já foi feito, quando me ocupei de cada um dos protagonistas-narradores em particular.

Um mundo animal pulula, capítulo após capítulo, com particular incidência nos capítulos da responsabilidade da filha do fazendeiro, enquadrado nas paisagens, e de que se depreendem valores simbólicos. As gaivotas, sempre exactamente dezassete gaivotas pousadas no telhado de um armazém, ocasionalmente contam-se trinta e cinco, são um leitmotiv que se infiltra no discurso de cada narrador-protagonista, e sinaliza Portugal, que é, com a “verdade” das gaivotas, a “única margem do mar”, essa de onde partem os navios para a aventura africana. De toda a restante animalia, algumas espécies têm mais relevo. Por exemplo, os caranguejos, que sobem desde o mar, invadem a vida, e sinalizam, na praia portuguesa, a degradação social e mental da filha do fazendeiro, aparecendo associados a uma nespereira que definha. Em contraposição, assinalando a terra angolana, aparecem os mandris, em tropéis, alguma vez atacando leprosos; em relação aos quais, o chefe de posto usa a expressão “mandris dos pretos”. Ainda em terra angolana, há os morcegos, aproximados aos revoltosos: “e depois das orações de António Mariano o batuque dos morcegos, apavorados, abandonando as mangueiras (…)” (30). Morcegos pululam nas mangueiras que circundam a casa da fazenda; um morcego, cena de predação que a filha do fazendeiro viu ou inventou, leva um rato entre as garras. Predação também, claramente situada em paralelo com uma escaramuça entre brancos nos jipes e negros de uma sanzala, é a perseguição que os mabecos movem às manadas de palancas, podendo ler-se nesta caça animal um simbolismo óbvio.

Uma teoria da memória.

Ao querer alinhar as suas memórias quanto a lugares da infância, o coronel hesita e comenta: “(…) por favor não me troquem a ordem das recordações na prateleira da memória que depois me vejo grego para alinhá-las como deve ser (…)” (44). Se ele gostaria mesmo de ter as suas memórias alinhadas, não as tem de facto, visto que no seu discurso se sobrepõem e misturam incessantemente situações vividas em todos os seus tempos de vida; e a mesma amálgama de memórias justapostas e sobrepostas caracteriza o discurso dos outros protagonistas-narradores. Na narrativa da filha do fazendeiro, lê-se um esclarecimento de como entender essas “recordações”: “porque as coisas importantes não se pegam à memória, é óbvio, são as de cacaracá que não nos largam nunca, o mindinho de um velho qualquer, palavra de honra ou as gotas de água a tremerem no rebordo das telhas a seguir à chuva (…)” (116). E o coronel, por outras palavras, já tinha adiantado tal clarificação: “(…) um triciclo e vermelho que sei lá porquê nunca me saiu da memória, como não saíram as serras da escola, Peneda Suajo Gerês Larouco Falperra e por aí fora, que baú esquisito a cabeça, o que ela abandona e o que ela armazena senhores (…)” (43). Assim as memórias não são feitas de “coisas importantes”, mas sim de coisas, ou melhor dito, de coisinhas “de cacaracá”, e este material psíquico heteróclito expande-se insidiosamente, de todo desordenado e fora das “prateleiras”, nas organizações mentais humanas. Este universal, que caracterizaria a estrutura mental humana, decorre do uso gramatical do pronome, “não nos largam nunca”: assim a nossa memória será só feita de coisas “de cacaracá”. Esta teoria da memória não será formulação espúria, pelo contrário, ela enforma e justifica a estrutura do livro, pese a que neste, a par de muitas coisas “de cacaracá”, e decerto mais substancialmente, se desalinhem “coisas importantes”. De facto, todos os protagonistas-narradores submetem o leitor a um discurso em espiral vorticista — todos eles obedecem ao mesmo mecanismo mental, que leva à produção de uma narrativa caótica, onde tanto convergem como divergem, em vaivém, os seus respectivos tempos vividos, que de início metodologicamente delimitei: passado / presente / futuro. Assim equivalem-se sem hierarquias, numa homogeneização sistemática, tempos e “coisas”, sejam “importantes”, sejam “de cacaracá”, numa sofreguidão de contar tudo ao mesmo tempo. Neste afã, a escrita segue o programa de um interseccionismo penitente, transportando para uma dimensão prosaica esse lateral movimento futurista que Fernando Pessoa inventou só para si, e a que deu forma em alguns poemas. Mas estes narradores levam às últimas consequências a estética interseccionista, dando curso a frases em que se verifica o atropelamento de um discurso por outro: “enquanto os ar, dezassete gaivotas, bustos principiavam a arder (…)” (82); “(…) quando me vim em, toma conta de mim, bora (…)” (101).

Sendo autoconscientes e semeando dispersamente farrapos de auto-retratos, todos os narradores, em algum momento, passam por estados de confusão mental quanto ao espaço e ao tempo, o que condiz com o desalinho da memória e a vertigem do discurso. Assim eles cruzam a narrativa de acções e situações, homogeneizando os tempos, e na narrativa vão incrustando teorias, enunciadas pelos protagonistas e, em algum caso, por outros personagens, nomeadamente o general. Teorias de teor sociológico, dependentes de uma perspectiva epocal hoje caduca, entranhadamente misógina, lobregamente racista, socialmente conservadoras e preconceituosas. Quando não teorias e visões delirantes, como por exemplo a teoria dos pássaros, articulada pelo chefe de posto, onde se conclui que “(…) são os pássaros que governam o mundo (…)” (187); ou a teoria de que as pedras constituem famílias, defendida pelo coronel. Para além do repertório de teorias ora obsoletas ora abstrusas, também surgem incipientes incursões no domínio da etnologia, como a prática de abortos nas aldeias portuguesas, a propósito do aborto induzido pela albina; e os rituais de desvirginamento nas sanzalas.

No turbilhão discursivo de cada um, surde uma noção de inconsistência individual na relação com o lugar onde se encontram. Todos se indagam, com variantes, por que estão ali: “— O que faço eu aqui?” (233). Mas, enquanto o chefe de posto e o coronel se põem a pergunta em relação a Angola, que não ressentem como lugar a que pertençam, a filha do fazendeiro e sua ama Domingas, inversamente, põem-na em relação a Portugal, tendo ambas nascido em terra angolana.

No entanto, mesmo esta narradora, filha do fazendeiro, partilha com os outros dois narradores o sentimento da inexistência de África. Ela exprime-se assim: “(…) julgo que me mandaram para aqui [Portugal] porque não existe Angola nem as mangueiras nem os morcegos, é uma espécie de sonho que vos estou a contar (…)” (226). Ou isto: “(…) como posso ter medo de um sonho se África um sonho apenas, não existem mangueiras, não existe algodão, não existem pretos (…)” (233). O coronel também considera: “(…) que utilidade tem África, se eu fosse Deus, o mar só possuía uma margem [Portugal] e o mundo acabava em Lisboa, com este sol barato que se confia a qualquer vendedor ambulante, deixavam-se os angolanos aqui [em Angola], a morrerem de fome que é a ocupação deles (…)” (359). E enfim o chefe de posto: “(…) a senhora a duvidar / — Tens mesmo a certeza que África existe? / e se quer que lhe diga francamente não sei, se calhar estive este tempo todo em casa dos meus pais com um desses sonhos esquisitos das gripes (…)” (192-193); “(…) o mais certo, uma vez que me pergunta, é o mar a ter uma margem [Portugal] que principia nas dezassete gaivotas que se calhar são trinta e cinco e não acaba nunca (…)” (193). Ainda o chefe de posto: “eu vi matarem António Mariano na cadeia, já de pernas partidas, já de braços pendentes, sentado no chão a olhar para os guardas, com dois ou três discípulos ainda com ele, Angola, palavra de honra, cor de rosa no globo (…)” (244). Neste último fragmento, onde glosa a morte de António Mariano, que terá presenciado, ainda que hesite no número de discípulos presentes, o narrador joga com o sarcasmo da suave cor, atribuída ao convulso território angolano no globo geográfico do avô. Em outros passos, reitera este sarcasmo da persistência do cor-de-rosa para sinalizar Angola nos mapas.

Esta imaterialização do continente africano, em particular da terra angolana, corresponderá a um desejo frustre, que atravessa todas estas subjectividades narradoras, de anulação mágica desse território ou, talvez mais certamente, das histórias individuais vividas aí, ou até, por ambiciosa extensão narrativa, da história lusa que aí teve lugar, pelo menos a história recente desse buraco-negro que foi a Baixa do Cassanje, onde alguma vez os destinos dos três narradores se cruzaram — em todas as suas particulares narrativas ocorrem, ainda que fugazmente, referências cruzadas: o coronel conhece o chefe de posto e a albina numa viagem ao Namibe; o chefe de posto angaria trabalhadores negros para o fazendeiro; etecetera.

Mas este desejo colectivo de imaterialização, “África não existe”, é, como adjectivei antes, um desejo frustre, que embate nas memórias que se amontoam e contendem na psique de cada um. E tanto a narradora filha do fazendeiro, a eterna “menina” da sua ama Domingas, quanto esta, ilusoriamente anseiam voltar à Baixa de Cassanje, onde nasceram. No último da série de capítulos narrados pela filha do fazendeiro, é a Domingas que assume o papel de narradora mas, como já acontecera num romance de Machado de Assis, ela acaba de falecer, portanto é uma narradora póstuma. Tudo o que existe, e que ela continua a ver e perceber, lhe é motivo de atenção e preocupação, mas não pode reagir porque o seu corpo permanece imóvel; no entanto, dele alguma coisa imaterial se desprende e sobrevoa a terra, e nesse voo post mortem ela revê a região onde nasceu e viveu, a Baixa do Cassanje e a fazenda de algodão.

Assim Domingas sobrevoa o planeta, desde a “margem” que assinala, por sinédoque, Portugal, até à “outra margem”, que seria o continente africano. Neste contexto, o oceano aparece referido, por metonímia, enquanto rio: “Angola fica já ali na outra margem do mar que é como chamam a este rio com mais água e mais espuma que os outros (…)” (61). Jogando este jogo figurado, seria de considerar que, sendo o Oceano Atlântico o caudal do rio que o barco lusitano sulca, desde as dezassete gaivotas pousadas no armazém lisboeta até ao destino angolano, a “outra margem” houvesse de ser constituída pelas Américas, estando o continente africano na mesma margem das dezassete gaivotas ou trinta e cinco.

Mas quaisquer que sejam as margens de quaisquer rios metonímicos a delimitar quaisquer continentes, elas hão-de eclipsar-se, desaparecer no devir dos tempos, nos quais não existirão nem margens, nem nada: “(…) mais uns anos e o mar nenhuma margem e pronto (…)” (359).


por António Sá
em Dehesa - Repositorio Institucional
Limite Vol. 13.2 (2019)
Servício de Bibliotecas, Universidad de Extramadura

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