Entrevista de 2001, ao El Cultural - «Em literatura gosto de sentir o sangue»

Uma entrevista com treze anos, dada a um jornal espanhol, nunca publicada aqui, mas que agora passa a fazer parte do nosso acervo. António Lobo Antunes falava de temas de que viria a voltar em entrevistas posteriores (até mesmo nas mais recentes), mas é curioso ler da sua posição iberista versus a europeísta; da sua parca experiência como candidato comunista; da sua conhecida obsessão em desmitificar o papel do escritor, e também dos prémios literários, como o Nobel; da sua paixão pelos clássicos; e, enfim, da sua irreverência em pequenos detalhes que muito gostaríamos de ver reunidos num suposto livro de memórias suas. Posições e afirmações em (quase) oposição ao que tem proferido em entrevistas recentes. 



«Em literatura gosto de sentir o sangue»

El Cultural
Entrevista de Martín López-Veja
07.11.2001


Lobo Antunes escreve com esferográfica. Pousa-a no papel e pelo rio de tinta navegam as personagens de um mundo ora real, ora ficcional, um mundo de trágicos dias em Angola e nos trilhos de Benfica que levam sempre às mesmas pessoas.

Deixou a psiquiatria (sua anterior ocupação principal) a partir do momento em que pode viver da literatura. No entanto, continua passando pelo seu consultório de um hospital lisboeta onde trabalhou. Foi ali que conversámos com ele, interrompidos apenas pela sua filha. «Nunca cá vem, mas viu o meu carro estacionado e veio dar-me um beijo». Em Portugal publica agora o seu romance Que Farei Quando Tudo Arde? e, em Espanha, na semana que vem, será publicado o livro de entrevistas de María Luisa Blanco, Conversas com António Lobo Antunes.


O seu novo romance acrescenta certas novidades à sua obra.
Acha? Aprofunda o trabalho com a prosa que tenho vindo a fazer com os anteriores. É o livro que me parece mais bem acabado, o que mais gosto até hoje. Este mês comecei outro romance, que continua nessa procura da linguagem. Talvez seja novidade pelo tema em si, pelas personagens (trata do tema do travestismo), mas é a mesma procura.

O título vem do verso de um soneto de Sá de Miranda, que falava de um amor contrário à razão.
Nunca tenho um título antes de terminar um livro, e ao terminar este apareceu o maravilhoso soneto de Sá de Miranda. A ideia é: não somos mais do que um desejo intenso. Desde que o homem existe, as perguntas, os problemas, são sempre os mesmos. Por isso são tão actuais Quevedo, Cervantes, Camões.

As perguntas são as mesmas mas, de vez em quando, somos sacudidos com acontecimentos como o atentado em Nova Iorque.
Um acontecimento trágico, sem dúvida, mas enquanto vivemos, os bombardeamentos continuam, e tão violentos que de alguma forma nos afectam. Tudo isto é extremamente complexo para nós, ibéricos, que tanto devemos aos árabes. Exerce em nós uma terrível divisão interior. Não é agradável ver bombardear um país onde quase todos são inocentes.

Homens à medida de Deus

Tudo isto tornou necessária a reposição do papel do escritor na sociedade actual?
O escritor deve dar a sua opinião como cidadão, e escrever.

Há uma dimensão ética na sua literatura.
Sim, claro. Faz uns dois anos, na Feira do Livro de Madrid, que veio ter comigo um homem para que lhe autografasse um livro. Quando lhe perguntei o nome, disse: «Miguel de Unamuno». Fiquei perplexo, claro. Era um neto. Unamuno é o melhor exemplo de dimensão ética da literatura. Não apenas os seus livros, também a sua vida. O seu discurso em Salamanca perante Millán Astray é um grande exemplo. De vez em quando, Deus faz homens à sua medida.
Se fores um bom escritor deves ensinar os teus leitores a ler; se dizes algo novo, ao princípio vai haver uma resistência natural por parte do leitor, o que é preciso é vencê-la, é preciso seduzir o leitor: a literatura é a arte do rigor. Pouca vezes falei mal de outros escritores: quando o fiz foi porque lhes senti uma ausência de sentido ético na sua forma de escrever. Não podes dedicar-te a repetir uma fórmula de êxito: cada novo livro deve ser um desafio novo. É a única maneira de seres honesto para contigo mesmo, e para com os leitores.

Portugal  é sempre o cenário da sua obra: a Revolução dos Cravos, a Guerra de Angola, a história íntima do bairro de Benfica… Mas sempre com uma perspectiva crítica. Até mesmo o título de O Esplendor de Portugal é muito irónico. O que entende por ser português?
Precisava de um cenário para ambientar os meus livros, inventar uma língua. O meu país não é esse chamado Portugal. O meu país é o país de Tchékov, de Beethoven. Em Angola, na guerra, senti na minha pele todos esses substantivos elevadíssimos, Pátria, Honra, Identidade… Merda, esse é que é o verdadeiro sentido dos nacionalismos. Não acredito em nacionalismos. Amigos meus espanhóis vêm a Portugal e dizem: «É igual a Espanha». A mim também me parece. Torga, de quem tenho imenso respeito, insistia nessa ideia: eu sinto-me, como ele, ibérico. Em Madrid, na Galiza, sinto-me como que em casa. São bairros da minha cidade. Mas já não sinto o mesmo na Alemanha ou em Inglaterra. Por essa razão me inquietava o fraco êxito dos meus livros em Espanha; porque sempre me pareceu que o público espanhol faz parte do meu público natural.
Graças a Deus que não sou político. Só posso dizer uma coisa: do mesmo modo que afirmo que me sinto ibérico, posso afirmar que não me sinto europeu. Quando estive em África, sentia-me mais próximo daquelas gentes do que quando estive na Suécia. No europeísmo há uma certa tendência de menorizar o que fazemos. Iremos falar todos inglês daqui a 50 anos? Soa a exagero, mas quem sabe… Da mesma forma que há que evitar os nacionalismos estéreis, há também que saber valorizar o que fazemos. Creio que o nível médio da poesia e romance que se escrevem em Espanha está acima do que tem vindo a ser feito no resto da Europa, qualquer país gostaria de ter um Javier Marías, um Marsé, uma Ana María Moix. E tem excelentes pintores, arquitectos. Eu sinto-me como parte disso, muito mais do que se passa em outros países.

Antes africano que europeu.
Dumas questionava por que é que há tantas crianças inteligentes que acabam por se converter em adultos imbecis. É o resultado de uma castração educativa tipicamente europeia que impõe tantas proibições que acaba por fazer paralisar.

A dignidade e a guerra

As suas personagens vêem-se enredadas nos becos da História portuguesa.
Sim… Mas eu escrevo romances, “epopeias líricas”, como alguém disse. Os meus romances estão cheios de erros, de lapsos históricos, mas isso não me importa. Dá-me medo cair no documentário, na reportagem: isso é coisa para gente sem talento.

Não gosta de falar da sua experiência na guerra de Angola.
Sabe o que é que mais me espanta? Não ter qualquer sentimento de culpa pelas coisas horríveis em que participei. Questiono-me muitas vezes e não o entendo. Uma vez, na Alemanha, um jornalista perguntou-me o que tinha sentido ao matar gente e se não sentia vergonha por isso. Nessa noite tive pesadelos. Mas só nessa. Gostava daquele povo, não entendo por que é que não sentia algo de mal.

Uma vez referiu-se à sua relação com Ernesto [Melo Antunes], o seu capitão em Angola, de que a filha dele vos dizia: «Como podem dois amigos passar o dia sem dizerem nada um ao outro?»
O Ernesto era um homem realmente admirável, o mais corajoso que vi debaixo de fogo, o único capitão que era contra a guerra, o único que foi candidato contra as listas da União Nacional. «A revolução faz-se por dentro», dizia. Partilhámos muitas coisas, entre elas o amor pela literatura. Era um modelo de coragem, de dignidade. Pouco antes de morrer, disse-me: «Esta noite acordei mijado. Não me deixes morrer sem dignidade».

Nunca falavam da guerra?
Nunca, jamais depois de regressar de Angola.

Nunca?
Mais só no fim, quando o cancro já o tinha tomado. Mas depois vinha a sua mulher e então dizia: «Não falemos mais». Jogávamos xadrez, conseguíamos passar muitas horas sem trocar uma só palavra. Às vezes a amizade é tão perfeita que não faz falta falar para que se diga tudo.

Outro grande amigo seu era o escritor José Cardoso Pires.
Outro homem duro, que sofreu muito durante o fascismo. Ligava-me todas as manhãs e passados cinco minutos voltava a ligar e dizia-me: «Que se passa contigo? Pareces-me triste». Eram homens muito másculos sem vergonha de mostrar o seu lado feminino, o seu lado maternal. Na amizade não há ciúmes, não há inveja, não é como no amor. Aceito a infidelidade no amor, mas nunca a aceitaria na amizade.

O poder e a literatura

Esteve metido na política, inclusive foi candidato pelo Partido Comunista.
Sofri uma grande desilusão. O Partido Comunista carecia de democracia interna, havia por todo o lado um certo espírito conspirativo. Foi como com a literatura: tinha uma ideia muito romântica e descobri que, por dentro, todos os partidos são execráveis. Só existem projectos de poder pessoal, um jogo de partidas e contrapartidas. Chegaram a dizer-me: se ajudares o partido, o partido apoiará a tua carreira literária. Mas o escritor deve ser sempre um contrapoder. Gostava de ser do Partido Comunista, mas para mim era impossível. Há um lado eclesiástico no partido que me repugna.

Parece muito empenhado em desmistificar a figura do escritor.
Sim, desde cedo. Repugna-me a ideia do escritor como entidade superiora, por muito talento que tenha. Conta-se da actriz Sarah Bernhard que ia certo dia pela rua e um homem a interpela. «Você é Sarah Bernhard?», ao  que ela terá respondido: «Serei esta noite, quando subir ao palco». Celaya dizia num poema da importância que é estar no meio das pessoas, mas também só às vezes.  Eu sou António, e, somente nos livros, Lobo Antunes. Claro que nem sempre são maus os efeitos secundários de ser-se um escritor. Um amigo meu dizia: fiz-me escritor para estar rodeado de mulheres bonitas. Porém, as mulheres bonitas acabam sempre preferindo os banqueiros ricos e barrigudos.

Converteu Lisboa, nos seus romances e nas suas crónicas, num “território literário”: Lisboa aparece muito diferente depois de lê-lo, mais verdadeira, mesmo que, se calhar, a sua opinião seja diferente.
[Risos] Bem, as ruas existem, não lhes mudei o nome, e aparecem tal como são, não mudei as casas de sítio. Há uns anos, apareceu na Alemanha um livro intitulado Geografia de Lisboa no qual se reconstruia, através dos meus romances, a cidade. Já lhe disse, ruas, casas, tudo é, geograficamente falando, precisamente igual, nos meus livros. Outra coisa é o que ocorre nesses ambientes, inclusive que o espírito das minhas personagens seja realmente o da cidade. Mesmo assim, é claro, tudo isso, sendo talvez ficcionado, não é mais que o resultado do que a vida  deixou em mim, a vida em Lisboa.

Mas você conhece bem Lisboa.
Não, não acredite nisso. Eu cresci em Benfica, uma bairro periférico que no tempo dos meus pais nem sequer fazia parte de Lisboa. Eu ia estudar para a cidade. Benfica era um microcosmos diferente. Ia-se ao cinema a Lisboa, à discoteca com os amigos quando havia dinheiro, às livrarias… Em Benfica conhecia-se toda a gente. Passava a linha do comboio e parecia que se encontravam as mesmas pessoas. Como se fosse um cenário, seguindo um caminho circular onde estavam os mesmos actores ou figurantes. Lisboa é uma palavra muito grande. Prefiro falar de algumas ruas, de algumas esquinas…

Portugal visto por um português

Disse que detesta o fado, que não gosta de Pessoa… Não deixa um símbolo português de pé.
Estou farto do fado. Cansa-me o seu saudosismo, é reacionário. Era a canção do regime, e ainda é. Quanto a Pessoa, não negaria que é um grande poeta, mas não me maravilha. Prefiro Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto. Na literatura (e na arte em geral), gosto de sentir o sangue, e Pessoa era muito intelectual. A arte que é somente trabalho cerebral não consegue apaixonar-me.
Portugal é injusto. Cada século vão encontrando um poeta melhor que Camões.  Mas todos passam e Camões fica. Foi ele que inventou o nosso idioma, tal como o falamos hoje. Ele é o grande poeta português.

Às vezes dá a impressão de que fala mais de futebolistas portugueses do que de escritores.
O desporto sempre foi muito importante para mim. Tinha um colega no liceu (hoje prestigiado crítico literário) a quem eu via com os seus amigos, muito inchados, falar de literatura enquanto eu jogava hóquei. Não faziam desporto, não iam a putas. Tinham uma vida asséptica. Não sujavam as mãos de merda, de esperma. Esse modo de vida nunca me interessou.
Lembro-me de ir patinar para o Jardim Zoológico, todas aquelas miúdas vestidas de branco, fazendo piruetas debaixo das árvores… Pareciam anjos.

Muitos defendem que o Nobel português devia ter sido seu.
Bom, há que desmitificar um pouco esse prémio. Não é Deus quem o atribui, mas uns quantos senhores que se reúnem uma vez por ano. Há tantos escritores de quem gosto (Tolstói!) que nunca o receberam… e depois há casos absolutamente ridículos, como o de Cela. Os prémios são agradáveis e aleatórios. Antes a minha vida era um tormento a partir de Setembro. Depois ficou mais sossegada, quando o deram ao Saramago, mas agora está a voltar o tormento. Não penso nisso. Foi divertido há três ou quatro anos, na Holanda. Estavam todos convencidos que me seria dado, e estava rodeado de jornalistas. Assim que se desfez o engano, desapareceram. Divertido e absurdo. Continuamos a ser o mesmo escritor com ou sem o prémio, não? Naipaul conheci em Londres. Não o admiro especialmente, na verdade. Mas o prémios… Coisas como o tema dos prémios Planeta, que levantam muitas reservas não só intelectuais, mas também morais.

Não se pode queixar, o seu êxito em Portugal foi rápido, mesmo sendo um romancista tardio.
Publiquei o primeiro romance tinha eu 37 anos, mas na altura já o haviam recusado vários editores e eu estava a escrever o terceiro. Após a queda da ditadura, toda a gente esperava a publicação das obras-primas que até então se julgava estarem escondias nas gavetas; mas essas obras nunca existiram. E depois, aqueles que escreviam submetidos à censura não superaram os vícios que foram adquirindo: narrativas situadas na antiguidade, em países imaginários. Não conseguiam falar sobre a actualidade. Penso que essa foi uma das razões para o meu êxito. Houve quem me elogiasse mas também quem me insultasse frontalmente, o que me pareceu bastante estranho. Era apenas um romance!

Mesmo assim, hoje existe unanimidade sobre a sua obra.
Em Portugal agora há um certo sentimento de má consciência a meu respeito, por certas atitudes do passado. Agora sou qualquer coisa assim como “o escritor”. Publicam-se estudos sobre mim, este ano sairá uma fotobiografia… Acaba por ser divertido, porque eu não mudei. No princípio, a minha atitude chocava. Lembro-me de uma entrevista na televisão. O apresentador dizia-me: «Natália Correia disse que a poesia serve para comer», ao que eu respondi: «Por isso ela está tão gorda». Coisas assim. Não era caso para tanto, mas vieram pedir-me contas. O meu prestígio em Portugal vem do meu prestígio lá fora. Nunca aceitei jogos com o poder, como os aceitou, e os aceita, Saramago…

Agora vai a Espanha para participar nas jornadas “Perfil de Portugal”, sobre o seu país. Parece-lhe necessário este tipo de jornadas?
Não. Aos escritores é preciso lê-los, não ouvi-los. A reputação de um escritor consegue-se publicando-o, lendo-o… Vou porque gosto de Espanha, porque me sinto como que em casa, porque sempre me receberam muito bem. Quem são os outros escritores? Carlos Reis é um pesado. E mais que escritores, há portugueses que apenas escrevem livros… Bom, será divertido.

Ainda se lembra daquele poema de Drummond que fala do envelhecimento?
Sim. Conhece-o?


«Talvez uma sensibilidade maior ao frio,
«Desejo de voltar mais cedo para casa». É muito bonito esse poema. A única coisa que me dá medo é não ter tempo para escrever o que quero escrever. Somente mais dois romances, dois, e estará tudo feito. Um sobre seitas religiosas e, finalmente, outro autobiográfico… E então partirei a esferográfica. Espero que pelo menos tenha tempo para isso…


07.11.2001
[traduzido do castelhano por Joana de Paulo Diniz]


nota de edição: apesar de estarmos a partilhar a entrevista após treze anos da sua publicação original, ela será indexada no nosso acervo de acordo com a ordem cronológica: portanto, entre as entrevistas que disponibilizamos do ano de 2001.

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