Paulo Polzonoff Jr: «O elogio do silêncio alheio»

Uma das opiniões com quase (ainda mais um) anos que o nosso projecto, que comemora agora em Setembro o seu 10º aniversário, é este artigo do brasileiro Paulo Polzonoff Jr., que repescamos do seu site renovado:

O elogio do silêncio alheio

foto: Diário de Notícias
Julgam-me feliz: sou mouco.
(António Lobo Antunes)

Gosto quando livros me dão um tapa na cara. E não existe esbofeteador melhor, hoje, em terras portuguesas, do que António Lobo Antunes. Resolvi, não sei por quê, reler seu Livro de Crônicas (D. Quixote, 1998), que comprei na terra do escritor, em Lisboa. Talvez tenha me batido um banzo do Castelo de S. Jorge. Naqueles dias quentes de setembro, entrei na Fnac e me abasteci com uns cinco livros do escritor que ainda era desconhecido por aqui. Entre eles este volume de crônicas, muito diferente dos romances do autor. Em Lobo Antunes, sempre ranzinza, para minha surpresa sobre lirismo. 

A primeira vez que li o livro foi numa destas banheiras brancas, em mármore, num pequeno hotel em Lisboa. O dono do hotel se apresentara na estação de trem. Eu e uma amiga acabávamos de rodar por toda a Europa, falando somente inglês. Na verdade, a viagem para Portugal foi meio casual. Sobrou um tempinho e pegamos um trem (torturantes horas) para Lisboa. Porque estávamos há um mês falando somente inglês, não tivemos dúvida: em Portugal perguntamos sobre hotéis no idioma de Shakespeare. 

O homem cobrava razoavelmente barato por um quarto. Na verdade, em seu hotel havia somente um quarto com banheiro próprio. Viajamos na noite anterior com duas alemãs bonitinhas (fiquei apaixonado por uma durante as cerca de dez horas que separam Madri de Lisboa. Nunca imaginei que me fixaria em olhos azuis). Claro que eu esperava que elas fossem para o mesmo hotel que a gente. Preferiram um albergue, por uma diferença mínima de escudos. 

Isso, porém, nada tem a ver com o texto que pretendo escrever sob a epígrafe acima. O fato é que Lobo Antunes me abriu os olhos. Ou melhor, os ouvidos. Há muito tempo eu venho dizendo que preferia ficar em silêncio. Escrevi dois ou três textos sobre o assunto. Textos que, obviamente, vão direto para o lixo. 

A literatura tem destas coisas: nos grita na cara o óbvio. E nele nos embebedamos, se sabemos que é justamente o óbvio que precisamos ouvir. No caso, eu sempre fui uma pessoa atormentada com o fato de falar. E de escrever, claro. Sempre achei que isso fosse assim como uma danação. Eu falava (escrevia) e sofria. Porque, bem, escrevo com alguma fúria e humor que não agrada muito às minhas “vítimas”. 

Lobo Antunes foi médico durante a guerra entre Portugal e Angola, na década de 70. Sabe do que fala. Viu o sofrimento de perto. Gente miserável brigando uma briga que não lhes dizia respeito de fato. Depois, quando voltou para Lisboa, exerceu ainda a psiquiatria, ou seja, lidou com gente que por algum motivo perdeu o controle. O próprio António Lobo Antunes esteve em vias de perder o controle. E não dá para negar que sua literatura é um tanto quanto esquizofrênica, marcada por uma polifonia intensa. 

Ele sabe que a redenção para os tormentos da alma é a nostalgia e o silêncio. Ora, mas como expor a nostalgia, se o silêncio é um pressuposto? 

O erro, meu até agora, era considerar o silêncio como a não-expressão. Coisa simples: calar a boca. Quando o silêncio que me é necessário não é o meu próprio, e sim o dos outros. Por isso, ensurdeço à burrice, à ignorância, à demasiada seriedade. Sou feliz porque sou, doravante, mouco. 

Que sejam moucos também a mim os meus inimigos, desafetos ou simples opositores. Até porque um surdo geralmente fala mais alto que os seus ao redor.


por Paulo Polzonoff Jr.
02.07.2003

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