Da apresentação de Não É Meia Noite Quem Quer na Livraria Arquivo de Leiria em Novembro de 2012


Citado do Jornal de Leiria, edição on-line do dia 22.11.2012:

António Lobo Antunes: "Não gosto de livros fáceis como não gosto de mulheres óbvias"

O público presente na Livraria Arquivo fez de entrevistador, numa conversa que publicamos.

António Lobo Antunes (ALA) esteve n[o passado dia 16 de Novembro de 2012] pela quarta vez na Arquivo Livraria, em Leiria, para apresentar o [...] livro Não É Meia Noite Quem Quer. A sala encheu para ouvir um dos nomes cimeiros da literatura mundial e, como é habitual, a intensidade das suas palavras provocaram, por vezes, um ambiente denso,  introspectivo e de reflexão. Desta vez, no entanto,  houve também espaço para momentos de humor mordaz que provocou fortes gargalhadas no público. Sem “papas na língua”, Lobo Antunes falou de tudo sem o menor pudor, sem tabus, provando que, como ele próprio referiu, vive sem gavetas, não escondendo nada. 

Depois de algumas, poucas, palavras sobre o livro, que disse já estar um bocado longe por já ter sido acabado há cerca de dois anos, mas que foi especial de escrever, desafiou o público para uma conversa, não sem antes ter criticado os jornalistas/entrevistadores: “Aquilo que interessa ao entrevistador, normalmente, não me interessa a mim. Sobretudo quando é imprensa escrita, eles cortam e só põem o que acham que interessa aos leitores ou aquilo que de alguma maneira confirma a ideia que têm na cabeça deles acerca de mim. Os pensamentos saem sempre trocados, os pensamentos saem sempre truncados, o que se diz é sempre alterado. Além disso, toda a reprodução daquilo que nós dizemos, sobretudo quando é parcial é injusto”. Desta vez, o papel de entrevistador coube ao público, se bem que a parte mais ingrata ficou para o JORNAL DE LEIRIA. De facto, não é fácil passar para o papel as suas palavras, tantos são os desvios que vai fazendo ao longo da conversa e as histórias que, aparentemente vindas do nada, vão surgindo. Esperamos que estas páginas não sejam mais uma razão para Lobo Antunes criticar a imprensa escrita...

O mote foi dado pela escritora Sílvia Alves: Arriscando o seu mau humor...
(ALA interrompe) Eu não tenho mau humor. Está aqui este senhor [José Francisco Feição] que pode dizer que eu sou doce, agradável e simpático. 

A propósito de ter dito que há dois meses que não escreve, era capaz de imaginar o momento em que decida mesmo não escrever? 
Eu nunca pensei publicar livros na minha vida. Nunca. Eu quando tinha três anos tive uma tuberculose e fiquei na cama durante muito tempo. A minha mãe tinha-me ensinado a ler. E como estava ali o dia todo, comecei a escrever. Era muito engraçado e muito divertido para uma criança porque punha as palavras umas a seguir às outras e aquilo fazia sentido. E então, aí com dez anos já tinha uma obra considerável. Deitava aquilo tudo fora ou queimava na figueira do quintal. Nunca tinha pensado publicar nada. Uma vez um amigo meu, o Daniel Sampaio, viu lá um monte de papéis e perguntou o que era aquilo. Era a Memória de Elefante, que não se chamava assim. E ele perguntou se podia levar a uma editora. Levou à Bertrand, em que directora editorial é a minha editora agora. Nem houve resposta e andou durante dois ou três anos em bolandas de editora em editora. Até que apareceu uma editora pequenina chamada Vega que o publicou.. Tinha um editor que eu nunca tinha visto que tinha uma característica que eu pensava que fosse única mas é comum a muitos editores: apareciam muitas raparigas para editarem poesia e ele desde que dormisse com elas publicava. E soltava a grandeza da alma de um editor e a sua seriedade profissional. A mim nunca me convidou para dormir, o que me desiludiu. Queria que eu mudasse o nome, retirando o Antunes porque era feio. Obrigou-me a mudar o título, que era comprido. Entretanto eu ia escrevendo livros. Tinha lá um livro que depois se veio a chamar os Cus de Judas que se chamava Memória de Elefante e transferi o título para o primeiro. Fui de férias e quando voltei aquilo tinha vendido não sei quantas edições. Foi uma loucura com aquele livro. Como o segundo já estava pronto, saiu em Outubro. Estávamos a vender muito, com o terceiro vendemos ainda mais, e eu recebi uma carta de Nova Iorque de um agente que na época trabalhava com grandes escritores latino-americanos. Achei que era uma piada nem respondi. Ele mandou uma segunda carta e achei que era chic ter um agente em Nova Iorque e respondi. Mas, passou-se o mesmo que se passou em Portugal, ninguém queria o livro. E um dia ele telefona-me e diz para ir a Nova Iorque porque uma grande editora iria editar o livro. Cheguei a Nova Iorque e fomos ao editor. Ele disse-me: vou publicar o seu livro. E eu cheio de esperança perguntei: gostou? “Nem li”, respondeu. Então porque é que vai publicar? “Porque se o livro tiver má critica não compro mais nenhum livro a este agente”. O livro saiu e nós conseguimos sair na primeira página do New York Times, do Washinton Post, do Los Angels Times e do Chicago Tribune. Conquistámos o Mundo naquele momento. E entretanto começam a aparecer editoras por todo o Mundo. Eu não estava preparado para isso e de repente fiquei rodeado de agentes, editores, tradutores, jornalistas, todo aquele Mundo um bocado a parasitar, cheio de competição, de intriga, de inveja que é o Mundo dos livros. Eu tinha uma ideia completamente romântica. Pensava que houvesse uma grande fraternidade entre os artistas, mas não há. Há mesquinhês, inveja, competição.... De uma maneira geral era muito mau para o que eu estava à espera de encontrar. Então sou preso por aquela engrenagem. Por exemplo, em França assinei por uma editora que começou a comprar-me livros que eu ainda não tinha escrito. E de repente tinha montes de massa, tinha editoras por todo o lado, tinha críticas por todo o lado, e fico preso naquela engrenagem. Eles já me tinham comprado três livros e eu tinha que os escrever. Isto foi sendo assim, os prémios foram aumentando, havia prémios por todo lado, doutoramentos honoris causa, aquela porcaria toda, condecorações. Era muito estranho, de repente pagarem-me por aquilo que eu pagaria para fazer. Lembro-me de ter assinado para um livro em Espanha por um milhão de euros. Deu para comprar uma casa e um Volvo que era uma coisa... Último modelo que não havia outro em Portugal... sentia-me o Cristiano Ronaldo. E depois isto começou a cansar-me a partir de certa altura. Os convites estão a aparecer constantemente. Convidam-me porque escrevo livros, mas se aceito todos os convites não tenho tempo para escrever nada. Então comecei a sair muito menos. Agora saio muito pouco, duas três vezes por ano. Cada vez gosto mais de estar em Portugal. Sinceramente já estou cansado disto tudo.

E a sua vida privada?
A minha vida privada começou a tornar-se insuportável. Vou a qualquer lado é só fotografias, pessoas que vêm pedir autógrafos, amigos que não sei quem são. É horrível, a vida privada começa a desaparecer. Tirei o número de telefone da lista, não tenho telemóvel, como não tenho computador, como não tenho cartão de crédito, não tenho cartão multibanco nem nada. Ando com a massa toda no bolso. Estou farto de pensar em voltar para a Beira Alta,  ficar lá em paz e sossego e que se esqueçam de mim. Tem sido infernal. As minhas filhas protestam de todas as maneiras. Hoje uma delas disse-me: “o pai pensa que essas gajas todas andam consigo por o pai ser bonito?” Isso para a minha auto-estima foi horrivel. Então, só queria publicar mais um ou dois livros. Por exemplo, este ano com a história do Nobel, que é um inferno de há uns anos para cá, ligaram da embaixada sueca a dizer para no dia seguinte estar em casa. Respondi: “vão à merda que já é a terceira vez que dizem isso. Além disso têm dado a tão maus escritores que a mim não me dão de certeza”. Depois são as rádios, as televisões… é um inferno. Ao principio até era muito agradável, tem-se um cortejo de benesses. Não há bichas, o meu gestor de conta é um administrador do banco que vem a minha casa de chofer… essa parte é agradável, mas, por exemplo, se vou a um restaurante melhor, peço a conta e não é nada. Não volto àquele restaurante. Toda essa parte é horrorosa porque eu só escrevo livros, não sou nenhum Tony Carreira ou Júlio Iglesias (risos na sala). Eu gosto de Tony Carreira. Não é das músicas, é do homem. Ele deu uma resposta numa entrevista… perguntaram-lhe se ele não tinha pensado em ser francês, porque tinha vantagens como imigrante. Ele disse: “Não, adoro ser português, somos só dez milhões não é para qualquer um”. Eu gostei desta resposta. Um homem que fala assim não é parvo. Eu gostava de voltar a ter um bocado de privacidade e estar nos sítios em paz.

Conheço-o desde a Memória de Elefante. Para mim é o escritor mais importante de Portugal e dos outros todos… Fico muito furiosa por não ter tido o prémio Nobel.
Eu estou-me cagando para isso.

Mas eu gostava muito…
Agora tenho recusado tudo. Aqui há uns meses telefonaram-me a dizer que tinha ganho o Grande Prémio de Montreal e eu disse que não era piloto de Formula 1. Já estou farto disso tudo. Não torna os livros melhores ou piores; os prémios, no fundo, são um fenómeno mediático que dura até ao Natal. Quem é que se lembra de quem é que ganhou há três anos qualquer prémio? Não fique furiosa com isso, fique contente.

Acompanho-o desde sempre e achei que devia ganhar. Fiquei muito triste. Sempre que o leio penso no porquê dos títulos dos livros. E com este aconteceu-me o mesmo. Pode dar-nos uma explicação do porquê deste título?
Os títulos são um problema grande. Há pessoas que começam pelo título. Comigo normalmente os livros não têm título, aparece depois. Este é um verso de René Char, que é um poeta de que eu gosto muito e um homem que eu admiro. Combateu na guerra cívil espanhola, combateu na resistência, é um grande poeta e gosto muito desse poema. Esse título aparece também como uma homenagem ao Steiner. Eu tinha estado com ele e tínhamos falado sobre isso. É um homem que tem livros geniais, de compreensão do fenómeno literário, de compreensão da vida. Recebi uma carta dele há pouco tempo e ele está muito doente. Tinha saído do hospital e dizia-me sentir-se muito fraco. Fiquei preocupado, é um homem muito terno. Falámos de escritores e de livros. Uma vez eu estava dizer que gostava do Monte dos Vendavais e ele não gostava nada. Dizia: “Mas não acha um livro kitsch, não acha um bocado histérico?” E de repente dei por mim a olhar para as coisas pelos olhos dele. E ele tinha razão e eu não tinha. É óptimo não ter razão, eu gosto imenso. Às vezes trato mal este senhor, que é meu amigo [José Francisco Feição], e depois fico arrependidíssimo e peço desculpa. Então, é em parte uma homenagem ao Steiner que agora queria fazer um livro… eu ando cá com umas ideias ambiciosas que eu nem sei… assim um opus magnum para acabar, tipo os últimos 100 anos de Portugal através de uma grande família. Tenho pensado num título do Cícero que é Da Natureza Dos Deuses, que é um livro de que eu gosto muito. Eu acabo sempre por voltar aos autores latinos, são aqueles que eu gosto. E então tinha pensado fazer um livro para aí em três volumes, não sei. Estava a pensar começar a escrever para a semana mas não sei se sou capaz.

Comece, comece…
Mas não era para publicar. Até porque teria razões para não publicar esse livro, pois tenho uma filha que do lado da mãe pertence a uma dessas grandes famílias e sei que ia magoar a miúda. Tem vinte e poucos anos e ia ficar magoada. Não sei. Sei que para o ano, que é aquilo com que eu me comprometi, sai um livro de crónicas e em 2014 um outro livro. Depois não sei, logo se vê. Talvez continue a publicar no estrangeiro, não sei. A distância toma o lugar do tempo. É mais fácil ser-se entendido em França ou na Alemanha do que… há muito ruído aqui…

Não gosto nada desses planos…
Oiça, é para os portugueses que eu escrevo, quer dizer… eu escrevo porque se não escrevesse… eu não tenho depressões porque não tenho tempo, mas as alturas de desespero são horríveis, os intervalos dos livros… fico cheio de cães pretos que se devoram. Depois sinto-me culpado, fico insuportável quando não escrevo.

[José Francisco Feição] Quando não escreve o António fica um bocadinho irrascível...
Eu dantes fazia planos e eu trabalho sem planos agora. Tenho uma ideia… nem é uma ideia… é… Estou cheio de problemas técnicos e é muito difícil. Nunca se fala nisso mas isto é um ofício como outro qualquer e os problemas técnicos para mim são muito grandes.

Descomplique…
Escrever é muito difícil. Eu acho extraordinário a quantidade de livros que se escrevem. Mandam-me muitos livros, mas são tão maus… Eu digo às vezes que este livro tem que ser trabalhado e a pessoa aparece no dia seguinte a dizer que já está. Eu tinha um grande amigo, que me faz muita falta que é o José Cardoso [Pires], era um irmão mais velho para mim e líamos os livros um do outro. Quando estava a escrever o Fado Alexandrino não havia maneira de ele me dar uma opinião do livro. Até que, por fim, perguntei: então o que é que achaste? “Não sei. Ainda só li três vezes”. Cada vez que se lê um livro ele é diferente. Descobrimos coisas novas. 

Que conselho ou conselhos daria a alguém que queira seguir uma carreira na escrita. A um jovem escritor?
O Mozart morreu com 35 anos e quando ele tinha vinte e tal apareceu um homem e disse: “mestre, eu queria escrever uma sinfonia”. E o Mozart disse: “ouça, uma sinfonia é um cabo dos trabalhos. Porque é que não começa por escrever um sonata ou um prelúdio?” O outro respondeu-lhe: “Pois, mas você escreveu uma sinfonia com oito anos”. E o Mozart disse: “de facto escrevi, mas nunca perguntei como é que se fazia”. Se uma pessoa precisa de conselhos, é porque não presta. Nunca dei conselhos nem nunca os aceitei. Nem na minha vida, que é uma das queixas da minha mãe. Gosto de fazer as minhas asneiras. Normalmente as pessoas chamam experiência à soma dos erros que cometeram, não é? Se for um escritor, se for um pintor ou outro artista, não precisa para nada de conselhos. Eu estava completamente seguro do meu génio quando tinha cinco anos e espantava-me ao andar na rua que as pessoas não olhassem para mim a pensar: “ele vai mudar o Mundo, ele vai mudar o Mundo”. Não vale a pena escrever para não ser o melhor. Tem que ter a certeza daquilo que faz. E depois tem que viver toda angústia e agonia da escrita sozinha, sem se queixar. Porque se o leitor sente o trabalho, o livro está falhado. Embora, normalmente, as pessoas vão à procura daquilo que conhecem. Isso explica o sucesso dos best sellers. Mas estou a falar mesmo de literatura, estou a falar de arte. Aí é diferente. Portanto, só pode aprender consigo mesma, à custa de fazer asneiras, de fazer erros, de escrever porcarias. Vai levar anos a fazer porcarias. E depois a tendência e o desejo que a gente tem de dizer tudo. Um livro não é uma coisa que nos fala, um livro é uma coisa que nos ouve. A maior parte dos livros começam quando a gente acaba de os ler, começam a fazer o seu caminho dentro de nós. Eu não gosto de livros fáceis como não gosto de mulheres óbvias, não sei se estou a ser claro. Quero que o livro me obrigue a uma luta com o texto, com as palavras com a reinvenção do Mundo. Ao princípio, quando comecei a ler grandes obras, tinha a sensação de não perceber nada, de caminhar no nevoeiro. Sabe, um grande editor é aquele que edita livros que o público não quer. Não é aquele que vai ao encontro dos gostos do público. O público a princípio vai rejeitar e depois aprende a ler. Todo o bom escritor tem que nos ensinar a ler. Os temas dos grandes livros são sempre os mesmos. Todos nos falam da mesma coisa, que é a angústia da pessoa no tempo. Os temas são sempre os mesmos. É o sentido da vida, o sentido da morte. E é sobretudo o fazer-nos aceder a um maior conhecimento sobre nós mesmos, dos outros e da vida. Muitas das minhas grandes alegrias da vida são passadas com a música, com os livros, com a pintura... e que depois nos voltam a dar uma dignidade enorme. Que nos fazem andar sobre as patas de trás. Projectarmos uma grande sombra. A gente vê, sei lá, uma estátua do Miguel Ângelo e fica reconciliado com a nossa condição. O Torga, que era ateu, dizia: “às vezes Deus faz homens à sua medida” e eu estou muito grato a essas pessoas todas que encheram a minha vida de beleza e da alegria que a beleza traz consigo. Shubert, Mozart, Bach, Velasquez, Camões... Um País mede-se pela sua cultura. E se antes do 25 de Abril a cultura assustava – aquele General do Franco dizia: “Sempre que ouço a palavra cultura puxo logo da pistola”. A verdade é que depois do 25 de Abril nenhum Governo, seja mais à esquerda seja mais à direita, se preocupou com a cultura. Se preocupou com os seus artistas. Nunca, nada. A cultura mete medo porque em si mesma é subversiva, no sentido mais lato, no sentido político. Porque as pessoas começam a exigir outras coisas. De maneira que a gente vai-lhes dando Big Brothers, Rodrigues dos Santos, essas coisas, novelas, onde tudo é óbvio, nada nos incomoda, nada nos estremece, nada nos faz exigir mais. Um povo culto é muito perigoso. Então, eu não daria nenhum conselho. Quando as pessoas têm mesmo talento não andam, a pedir conselhos a ninguém. Escreva e não pergunte nada a ninguém.

Eu pergunto ao António se quando faz estas apresentações espera ser surpreendido pelo público ou encara isto como uma obrigação.
Este senhor [José Francisco Feição] vinha a ralhar comigo porque eu já não me apetece ir a parte nenhuma. O lado de caixeiro-viajante não me interessa nada. Eu vinha um bocado pelos cabelos. Estava a chover, não me apetecia, ele [José Francisco] vinha a protestar que eu estou sempre em casa... apetece-me cada vez mais estar em casa. Bares não me apetece, discotecas fazem muito barulho, amigos tenho poucos, ando muito esquisito, percebe? Para além de coisas pecaminosas que não vamos falar aqui, apetece-me estar em casa. Vim também porque as vezes que aqui vim soube-me bem. Gosto da cidade, é bonita e as pessoas têm sorrisos agradáveis. 

António Lobo Antunes perde-se na conversa e [José Francisco Feição] relembra-lhe a pergunta...

Eu sei lá. Estou aqui porque ele me trouxe. Eu tenho muita dificuldade em dizer não às pessoas de quem gosto. Porque as pessoas do nosso País têm sido tão generosas comigo que a maneira que eu tenho de agradecer é estar presente. E vou à feira do livro assinar autógrafos durante horas, horas e horas, e tiro as fotografias que as pessoas querem. Aquilo cansa que se farta. Mas acho que é a minha obrigação... Apareceu uma vez um senhor muito pobre com bastante idade e disse-me “gosto dos seus livros todos mas só posso comprar um que não tenho mais dinheiro”. Era camponês. Um senhor com a quarta classe. Há surpresas assim... Miúdos de 17 anos que leram quatro, cinco, oito livros meus, que estão horas na bicha, ao sol, a suarem, em pé pela merda de um autógrafo. E depois eu penso, o que os Governos fazem a este povo... Este povo andou nas caravelas. Não têm o direito de o tratar assim, não têm direito de nos desrespeitar. Eu estou zangado com este Governo pela insensibilidade, e com os outros também, claro! O nosso País é isto. Por muito estranho que lhe possa parecer é nestas alturas que gosto mais de estar perto das pessoas. Escrever é muito solitário. Estar a escrever para ninguém, não se sabe para quem, e nesta altura vejo as caras. É completamente diferente de estar na Alemanha onde vendo 200 mil, pareço o José Rodrigues dos Santos. Uns homens com uns pés enormes – se fosse mulher recusava-me a deitar com um alemão –, uns pés enormes lá no fundo da cama… e quando é no Verão, com sandálias, uns tipos com pés horrorosos… eu sou sensível a pés. E aquelas mulheres não se arranjam. Há tempos tiveram cá uns professores americanos e diziam espantados “as portuguesas arranjam-se imenso”. As Portuguesas arranjam-se muito bem. Como é que se pode comparar? Quando estava na América tinha uma namorada norueguesa [hoje está desbocado, diz José Francisco Feição] e na intimidade, nos momentos supremos, parecia que se estava a afogar na banheira: “borum, borum, borum”. Era uma coisa horrorosa e eu tinha saudades de Portugal porque ao menos gemem na minha língua. 

Como é que foi a sua experiência na Escritaria [Festa literária que aconteceu em Penafiel]?
Foi muito muito agradável. Não imaginava nada que aquilo fosse assim. Ia na rua e as pessoas vinham-me dar beijinhos. Fartei-me de dar beijinhos, infelizmente mais a velhotas. As pessoas foram de uma ternura, de um calor… foi muito, muito comovente. Estou muito grato às pessoas. Aquilo é feito com tanta dedicação, tanto amor… é bom a gente sentir-se amado. A nossas sede de amor é insaciável, a nossa sede de ternura é insaciável. Todos nós fomos mal amados em crianças. Uma vez um amigo perguntou ao Freud como é que devia educar o filho. “Faças o que fizeres está mal feito. De qualquer modo eles não vão gostar”. Se formos mais permissivos não vão gostar, se formos mais severos não vão gostar. Os pais servem em primeiro lugar para ser odiados e eles experimentam-nos, querem que a gente resista e que não fique destruído. Os filhos têm um pavor horrível que os pais sejam fracos. Nenhum filho quer mandar em casa. Nenhum filho quer que o pai seja amigo. Quer que o pai seja pai e que a mãe seja mãe. E nós temos tendência para nos demitirmos disso. 

A sua mãe quando olha para si e para a sua obra não tem nenhum sentimento de culpa em relação àquilo em que se tornou?
Eu demorei muito tempo a entendê-la, porque ela ao fim de 5 anos de casada tinha 4 filhos e tinha um marido que estava o tempo todo com um olho no microscópio. E a nossa infância passou-a na Alemanha. Então, estava sozinha com aquela filharada toda. Nós éramos bastante sossegados, mas era muito filho para uma mulher. Ela tinha 23 anos quando começou aquele trabalho.  O meu pai era um homem sem sentido de humor, era um homem violento, muito violento, mas que nos obrigava a ler, que nos obrigava a ouvir música, que fazia discursos intermináveis. Portanto era uma mulher que teve que aturar este homem, um homem complicado. Às quintas-feiras eu e os meus irmãos costumamos ir almoçar lá a casa - e nesta última quinta-feira ela, que nunca beijou um filho, disse-nos: “Vou ficar viva muito tempo, por muitas gerações porque estiveste na minha barriga”. E aquilo comoveu-me. Comoveu-me a solidão dela. Eu faço anos no Verão, nunca havia festa e este ano convidaram uns amigos e eu fiz um discurso que acharam muito agressivo em relação à minha mãe. Agradeci o facto de não me ter amado muito. Nuns certos aspectos tive uma infância miraculosa, mas dos meus pais nunca houve ternura, nunca havia beijos, nunca havia nada disso. Em férias o meu pai só lá ia ao fim-de-semana, chegava ao sábado estava logo doido para se ir embora, para se ver livre de nós. Eu pensava que ele andava aí numa malandrice, mas quando comecei a ter exames ficava em Lisboa e percebi que ele ficava a gozar a casa, finalmente sem filhos. Quem tinha que os aturar era a pobre da minha mãe. 

Estive a morrer
Os médicos agora dizem a verdade mas, às vezes, a verdade é muito cruel
Estive a morrer há cinco ou seis anos. Agora dizem-me que estou curado, mas estive a morrer com um cancro complicado. Não sabia se ia viver se ia morrer e os médicos também não, foi muito complicado. E recebi mais de cinco mil cartas. Recebi uma de um rapaz de 18 anos que dizia “Não admito que o meu ídolo se vá abaixo das canetas”. Isto deu -me uma força do “caraças”. Esta história no hospital é horrível. A gente a sentir que as pessoas estão a armar o sorriso no corredor e chegam lá e dizem: “Então? Estás com óptimo aspecto. A minha irmã teve isso e está óptima”. A única pessoa que me ajudou foi o Júlio Pomar, o pintor, que me disse: “Aguenta-te” e não disse mais nada. Foi a coisa mais importante que me disseram, ele não veio com paninhos quentes. Os médicos agora dizem a verdade, o problema é que a verdade é difícil de suportar, às vezes é muito cruel.

As mulheres têm que ter muita paciência
Todos os homens têm o complexo da castração
Uma vez perguntaram ao meu pai: “como é que a sua mulher que teve seis filhos tem tão boa figura?” e o meu pai disse: “É por ter boa figura que ela teve seis filhos”. Depois da morte dele perguntámos-lhe uma vez: como é que era com o nosso pai. Nós nunca tínhamos ouvido barulhos, nada. “Com 88 anos foi três vezes por semana – ela, coitada, cheia de osteoporose – fico cheia de dores”. Nós ficámos todos enternecidos, mas ela estava com um ar um bocado dorido. Mas ao mesmo tempo, ela tem 90 anos e diz-me: “Eu continuo a ter desejo”. Esta história das mulheres deixarem de ter desejo é uma treta. E os homens também. Eu acho que é preciso dessacralizar isto, é tudo tão natural. A minha mãe, felizmente para ela, teve até à morte do meu pai ali uma assistência… como de fosse um Mercedes. Mas depois continua a sentir falta. Mas não diz isto com ar provocante, nem atrevido, nem nada disso. Por exemplo, diz coisas assim do género: “Pela maneira como um homem nos toca sabemos logo como é o resto”. Quando me via fumar dizia: “Ó filho, tira o cigarro que ficas com ar de cama”. E eu tirava o cigarro. Tinha assim este lado. Aquilo que eram tabús ultrapassava com elegância e deixava de atribuir a isso a dimensão com este terror que os rapazinhos que estão a crescer têm relativamente a eles mesmos, em relação às mulheres, etc. Nós não tínhamos irmãs, vivíamos ali entre rapazes. Os liceus eram homossexuais, ou de meninos ou de meninas. Portanto, a descoberta da mulher foi feita através dela e mostrava a mulher como uma fonte de prazer e não como uma coisa de medos. A maior parte dos homens, eu notava isso quando era psiquiatra, é muito raro fazerem amor sem angústia. Têm sempre imensas dúvidas em relação ao pénis, à erecção, essas coisas. E as mulheres assustam muito os homens. Os homens têm medo das mulheres. E depois têm aquela coisa horrível que é o complexo da castração. Todos os homens têm isso, quando eu estou lá dentro já não tenho pirilau. Então todos os fantasmas – isto é o Freud que diz não sou eu – aparecem. Então a relação é sempre uma relação angustiante, as mulheres têm que ter muita paciência, que ajudar os homens, coitados.

textos de João Nazário
Jornal de Leiria
22.11.2012

imagem recolhida na web
adaptações ao texto por José Alexandre Ramos

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