PRÉ-PUBLICAÇÃO: CAMINHO COMO UMA CASA EM CHAMAS


O novo livro de António Lobo Antunes, Caminho Como Uma Casa Em Chamas, será publicado em Outubro deste ano pela Dom Quixote, duas semanas após a sua «estreia mundial», com a publicação pela editora holandesa AMBOS ANTHOS (com tradução de Harrie Lemmens). O livro, segundo havia adiantado o DN em 28.10.2013 (pela altura do dia do escritor no Centro Cultural de Belém - ler artigo), «passa-se num prédio onde os moradores, narradores solitários de si mesmos, são incapazes de compreender e de ser compreendidos».

O livro, o 25.º romance do autor, tem como fio condutor um prédio algures em Lisboa e as vidas das pessoas que nele vivem, mas este é apenas um pretexto para António Lobo Antunes nos maravilhar com a sua escrita única e a sua descida cada vez mais fundo ao que de mais íntimo há em cada um de nós.

Por sugestão e cortesia de António Lobo Antunes e da sua editora Maria da Piedade Ferreira (LeYa), foi-nos cedido o texto que abaixo citamos, como pré-publicação das primeiras páginas do primeiro capítulo deste novo título, o 30ª na bibliografia oficial.

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ANTÓNIO LOBO ANTUNES | CAMINHO COMO UMA CASA EM CHAMAS


Segundo Direito

     Não gosto do apartamento porque não me encontro, pequeno,a brincar na marquise, alugámo-lo ao casar e o resultado estes filhos, a tua asma, sobretudo eu tão desajeitado, tão fraco, em solteiro a minha mãe protegia-me não do meu pai que nem me via, das minhas irmãs e do meu irmão, gabava-me às visitas
     – Tira os óculos para a dona Adelaide reparar nesses olhos azuis
     o mundo uma névoa difusa, a dona Adelaide surpreendida
     – Quem havia de dizer que são lindos?
     e logo a seguir com dó
     – Que pena tantas dioptrias
     não gosto do apartamento nem dos móveis, a água da jarra mais murcha que as flores, gritos de obrancelhas rápidas na janela a que chamam andorinhas, a minha mãe de súbito nova
     – Primavera miúdo
     como se a primavera se visse, talvez um tinir de faiança nas folhas ou mais raparigas lá fora e eu inexistente para elas, as sobrancelhas do professor subiam do caderno até à minha cara sumindo-se a desprezarem-me nos telhados
     – Em cada frase três asneiras
     não gosto do quarto de que não tirei a poltrona na qual te sentavam com a máscara de oxigénio, um chinelo num pé, o segundo perdido, eram as tuas pálpebras que respiravam sobre a máscara, não os pulmões, as tuas pálpebras dois sapos com barrigas de pregas zangados comigo
     – Nunca valeste nada
     sob o cabelo também mais murcho que as flores, uns caulezitos cinzentos, umas pétalas húmidas, o pé do chinelo teu, o pé sem chinelo de uma estranha, durante meses a fio devolveste-me as cartas onde em cada frase três asneiras
     – Que teimosia escrever-me
     o pé sem chinelo desconhecido, vermelho, inchando e desinchando igualmente ao ritmo das pálpebras, o que não inchava e desinchava aqui, as paredes, a cama, os trinta anos que passámos juntos, escrevo-lhe porque aprecio a menina e não fui capaz de melhor que esta prosa idiota, não desejava ofendê-la, não gosto do quarto consoante não gosto do quarto dos meus filhos, foram-se embora e o contorno dos armários permanece no reboco, sinto-lhes e não lhes sinto a falta, não lhes sinto a falta, a janela deles para as traseiras, outrora um descampado com cordeiros a mastigarem o som dos badalos e agora um largo, a farmácia, Farmácia Salutar que nome, uma agência de viagens, o teu ombro num sorriso de troça
     – Se lhe apetece continuar a escrever é consigo
     de óculos como eu, nem sequer bonita, nem sequer simpática, o que achei em ti, não gosto do cão de loiça comprado num armazém de velharias no meio de estribos, lanternas, aparadores, foste direitinha ao animal
     – Que giro
     e embora não fosse giro calei-me, calei-me sempre, a cabeça do bicho a acenar
     – Palerma
     desde o primeiro dia até hoje
     – Palerma
     um buldogue com as bochechas pendentes da dona Adelaide, no caso de lhe perguntar
     – Disseste o quê?
     uma pausa perplexa, o queixo que hesita, reflecte, se decide por fim
     – Palerma
     sacudia-se a barriga oca e um parafuso a tilintar enquanto a água da jarra murchava, animava-se com o sol e tornava a murchar, não gosto do apartamento à noite porque tenho a certeza de ir morrer sozinho, o meu filho mais velho exige dinheiro que não há, a impressão que a minha mãe a chamar-me num agosto de outrora, no norte
     – Joaquim
     os meus cunhados na varanda, depois da varanda a vinha a descer, troçavam-me
     – Tótó
     e o meu pai não os desmentia, nos bolsos dele dúzias de palitos, a minha mãe indignada
     – Qualquer dia não te sobra um dente na boca
     e não me recordo de lhe assistir a um sorriso, lia o jornal o tempo inteiro ou seja na minha opinião não lia nada, não conversávamos ele e eu, a vinha e sem neblina os candeeiros de Manteigas ao longe, conversar de quê, tão parecidos, desajeitados, fracos, o que fez você de útil pai, o que se aproveita, o que fiz eu de útil pai, o que se aproveita, fitamo-nos e vazio, se ao menos a gente, para quê dizer, não interessa, moro neste segundo direito desde que casámos, a minha mulher sem óculos a descer as escadas da igreja agarrada ao meu braço
     – Há mais algum degrau?
     na sala o tapete que vai perdendo a cor, o sofá que me crava molas nas costas e a bandeja de cobre para o correio na arca da entrada, a lua de mel numa hospedaria em Sintra com estrangeiros para cá e para lá no corredor, a vergonha dos meus ossos saídos
     – Não repares em mim
     Sintra à noite, Manteigas à noite, o meu cunhado arquitecto
     – Não é Manteigas é Seia
     a minha mulher admirada
     – Afinal é só isto?
     apanhando os óculos da mesinha de cabeceira
     – Só isto?
     a camisa de dormir com laçarotes e rendas que a tua mãe te obrigou a dobrar na bagagem
     – Os homens pescam-se com truques assim
     e pescar-me-ias se eu um homem a sério, pernas em excesso que me embaraçavam, um botão solto
     – Só isto?
     pronto a esconder-se numa frincha e uma lasca de madeira a enterrar-se-me na palma, tiraste-a com a pinça dos pêlos
     – Não sejas maricas não dói
     de mistura com o
     – Não sejas maricas
     os estrangeiros sem descanso no corredor, Seia ou Gouveia, o meu cunhado médico
     – Pelos meus cálculos Gouveia
     e tu
     – Não pode ser só isto
     a cuba puxada do poço junto à cozinha, o bule de prata com pega de mogno e três malmequeres em relevo por cima, a minha mãe de mão na pega e o indicador da outra mão na tampa
     – Mais chá senhor Fonseca?
     chá para eles, leite para mim, o pires de biscoitos
     – Não te sirvas antes dos crescidos
     a minha palma
     – Uma lasca que mal se nota não sejas maricas
     a retirar-se amuada, quando segredos com as amigas e eu entrava a minha mulher
     – Vamos mudar de conversa
     e soslaios de escárnio
     – Não é homem não é homem
     a água, então viva na jarra, a espreitar-me como elas, ao despedirem-se gargalhadinhas no patamar, suspiros da minha mulher antes de mais gargalhadinhas
     – Tomara eu
     a minha mãe pronta a pegar-me ao colo salvando-me
     – Joaquim
     dizer
     – Mãe
     e continuar a dizer
     – Mãe
     até adormecer num divãzito que não existe mais, abraçado a um leão de pano a que faltava uma orelha e mesmo sem orelha me defendia do mundo, o meu cunhado médico para o meu cunhado arquitecto
     – É capaz de ser Seia
     candeeiros não fixos, indo e vindo, como o norte respira, uma via láctea de grilos campos fora cada qual com uma lanterna invisível de som, Gouveia ou Seia, grilos ou ralos, os sons alcançam distâncias infinitas nas trevas, olha a Beira Alta inteira a cantar, olha o cajado do louco de capote a quem os cães ladravam mais escanzelados que eu, comem galinhas, coelhos, Salazar não foi um ditador, foi, no vestíbulo um par de apliques de velas tortas, endireitava-as e inclinavam-se de novo, foi um patriota que pôs este país na ordem, em Portugal precisamos de um governo firme, não se tratava de eu haver perdido o emprego, com os funcionários do ministério a insultarem‑me
     – Fascista fascista
     tratava-se do abandono de África entregue de mão beijada aos comunistas, o teu pé sem chinelo de outra pessoa, a ausência de patriotismo, o desrespeito, a anarquia, por sorte os meus pais não assistiram
     – Porque teima em escrever-me?
     quando em cada frase três asneiras, aquilo em que esta terra se tornou, a tua família mais modesta que a minha, um dos meus avôs general, os teus não me contaste, a tua mãe a que a minha chamava senhoreca, mínimos em argola encaracolando-lhe os gestos, instalava‑se na borda das cadeiras cerimoniosa, lenta, a escolher palavras difíceis, os meus cunhados em coro Susana se sair saia só sim? Sou só seu Serafim Sá Sousa e eu envergonhadíssimo, a dona Susana numa amabilidade furibunda
     – Que divertido
     enquanto pelo ângulo da boca
     – Parvalhões
     idêntica ao meu filho mais velho se não lhe dou dinheiro
     – Parvalhão
     de modo que eu não em Lisboa com vocês, na varanda do norte agarrado ao leão, o marido da dona Susana de chapéu com peninha, palavra de honra, a partir de certa altura as árvores não verdes, azuis e após a linha do comboio, no início da encosta, quase negras, o café num cruzamento, a merceariazita, a estação e de repente surgiu-me
     na cabeça o setembro das gralhas, não supunha que os eucaliptos, a minha mãe para a tua, não uma senhora, uma senhoreca e a filha daqui a vinte anos a mãe chapadinha
     – Os meus genros adoram brincar conhece algum homem que tenha crescido não ligue
     não supunha que os eucaliptos, o avô general de condecorações na moldura, importantíssimo
     – Uma senhoreca sem cura e a tua noiva uma senhoreca também
     aguentassem dúzias de gralhas, centenas, milhares que não imitam só os outros pássaros, nos imitam a nós, no setembro das gralhas eu ainda mais desajeitado e elas a macaquearem-me
     – Mamã
     não
     – Mãe
     como as minhas irmãs e o meu irmão
     – Mamã
     um senhoreco perfeito, de quem foste herdar isso, moro num segundo andar pretensioso, sem gosto, os azulejos da cozinha atrozes, por baixo um casal de judeus emigrados não sei de que sítio de um lado e um bêbedo com a família do outro, no terceiro uma actriz idosa, de que lugar vieram as gralhas expliquem-me, um prédio sem
     elevador nem garagem e a minha mãe obrigada a subir aquilo aos setenta e seis anos no seu luto de viúva
     – Dão-me setenta e seis anos vocês?
     implorando que lhe adiássemos a morte
     – Não aguento a ideia do fim
     o lábio a tremer, as pupilas misturadas, a mão das alianças corrigindo as feições conforme corrigia os retratos dos netos na camilha, Irina Jorge Sebastião e o abajur de pergaminho contra a parede de modo a que se notasse menos o buraco do cigarro
     – Dão-me setenta e seis anos a sério?
     que preferíamos nem sonhar quem o fez, não gosto do apartamento, gralhas a espiarem os sermões do senhor vigário e o chiar das carroças a espiarem a minha mãe
     – Dão-me setenta e seis anos?
     na hospedaria em Sintra a semana inteira o mesmo arroz de pato e o mesmo pudim servidos pela mesma empregada de alpercatas estalando contra os calcanhares, as almofadas húmidas, um cinzento constante, no caso de avançar a perna o teu tornozelo inerte nos lençóis fingindo que dormia e eu a sabê-lo desperto, se me aproximava um protesto na fronha
     – Queres que eu caia no chão?
     e o vento mudando o sentido da chuva, uma tarde uma gaivota num feto, a gerente com uma mancha vermelha na bochecha
     – Tiveram azar com o tempo
     
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Comentários

  1. É voltar a um mundo de que sinto saudades e me dá mais um filme que falta na vida que percorro... os livros deste autor dão-nos imagens, cheiros ... o gosto que tinha pelo cinema, cada vez mais é substituído pelo das suas palavras .

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  2. Sempre o meu escritor preferido.Bem haja, que o Nobel que já há muito devia ter não continue a fugir por politiquices.Para os seus fiéis leitores é e será sempre o maior e o melhor escritor de Portugal e não só.

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  3. Olá!
    Gostaria de saber a partir de que data poderemos encontrar esse novo livro de ALA nas livrarias em Portugal?

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  4. http://aliastu.blogspot.com/2014/12/um-pais-como-uma-casa-em-chamas.html

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  5. Obrigado Rui Fonseca, a sua opinião entra no nosso acervo. Bom Ano 2015, com bons livros :)

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