Béatrice Putégnat sobre Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?

Leitura em apneia

Ao orquestrar o seu romance como uma tourada, António Lobo Antunes disseca o ritual da tradição portuguesa para contar a decadência e ruína de uma família de criadores de touros de lide. Os filhos aguardam a morte da mãe; vão abordando memórias. O desafio do presente? Saber do passado, talvez...

A princípio, abrir [este] romance de António Lobo Antunes é um pouco como mergulhar em apneia tendo como reserva de oxigénio apenas palavras, a escrita. Uma verdadeira experiência de leitura que nos leva ao profundo da mente humana, além da temporalidade, por lugares quase assombrados, povoados por objectos quotidianos aflorados como restos de vidas. Dito assim, o leitor suspirá dizendo para si mesmo: mais um romance ilegível ... Nada disso! A partir do momento em que mergulha de cabeça no livro, não mais o deixará. As vozes assombrosas das personagens levá-lo-ão por toda a parte. A construção é rigorosa. Assenta-se sobre a estrutura de uma tourada com sete capítulos: Antes da Corrida, Tércio de Capote, Tércio de Varas, Tércio de Bandarilhas, A Faena, A Sorte Suprema... Depois da Corrida. E, como nas touradas, tudo se resume a ferimentos, agonia e morte. Como a da mãe que se prevê na narrativa: num domingo de Páscoa, chuvoso, brevemente serão as seis horas, brevemente teremos a estocada final. Os seus filhos zelam, vigiam e dissecam interiormente os seus passados. As falhas, os segredos, vão sendo revelados manchando este fim da vida, o fim do reinado de uma família próspera feito por suas ganadarias. Até que tudo acaba e, em redundância, "como é triste esta casa às três horas da tarde". Ascensão e queda ... Por sua vez, durante cada fase da tourada, as personagens vão dedicando-se, por cada uma, de forma pratiamente ritualizada, aos seus motivos obsessivos. Como o ‘refrão infantil’ que dá título ao romance: "que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?". Ele assombra o discurso de Beatriz, a infeliz nos casamentos, a da incerteza e do pânico. Francisco, o filho rabugento, atormentado pela frustração e pelo ressentimento. Amaldiçoou o pai por desperdiçar a fortuna da família no casino. 17, número fetiche desse pai obcecado. Ana, a mais feia, vagueia pelos baldios em busca de sua dose de pó. João é consumido pela doença do amor por jovens rapazes. Finalmente, pouco a pouco, é revelado o segredo de Mercilia. Fruto do abuso sofrido pela sua mãe com o bisavô Marques. Tratada como criada, é ela quem conhece a intimidade das pessoas e dos lugares. Arrasta-se pela casa como uma sombra incómoda e indesejável. As narrativas sucedem-se dentro de um mesmo capítulo. Cada um dá livre curso ao seu delírio interior, aos meandros da sua memória. Como um marionetista, António Lobo Antunes agita os fios sob os olhos do leitor. Introduz-se no mesmo processo de escrita. Malicioso, conhece as personagens assim como estas o conhecem... Então deixo a Mercilia a palavra final desta história e deste artigo. Como um tributo ao seu criador ou provacação do autor para consigo mesmo: "o António Lobo Antunes esperando que as cheias do Tejo nos cobrissem a todos, sem ânimo de ler estas frases".


por Béatrice Putégnat
30.03.2014
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[traduzido do francês por Joana de Paulo Diniz]

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