ALA that jazz, por António Bettencourt (*)


Você era de certeza o único pai que pregou no quarto de um filho o retrato de Charlie Parker.”
 (“Você” in Terceiro Livro de Crónicas)


Memória da infância, presença assídua na obra, o retrato de Charlie Parker terá sido talvez uma das primeiras imagens do jazz na vida de António Lobo Antunes (ALA). Um retrato que o pai decidiu colocar no quarto dos dois filhos mais velhos, como um profano crucifixo 



(“E os olhos de Charlie Parker tristíssimos nas fotografia.”)

Charlie Parker uma e outra vez, insistentemente repetido nos romances e nas crónicas, como variações de um mesmo tema: 

“Charlie Parker interrompeu uma vez uma gravação atirando com o saxofone aos gritos
-Já toquei isto amanhã
e ninguém foi capaz de convencê-lo a continuar.”

Também esta convergência dos tempos (amanhã igual a ontem) preenche a quase totalidade dos romances do escritor.

António Lobo Antunes será porventura o escritor português que mais referências ao Jazz faz na sua obra, um género musical que acompanha de perto a sua vida e a sua escrita. Ambicionou sempre ”escrever como Charlie Parker tocava, à custa do mesmo sofrimento, a fim de oferecer prazer e alegria aos que lêem”, pois para ALA, como constantemente afirma, também a escrita é fruto de um processo doloroso mas afinal gratificante, um sofrimento que se torna júbilo.

“O Charlie Parker fraseava maravilhosamente, aprende-se muito a ouvi-lo”

Desde as primeiras obras, e sobretudo nessas, as referências jazzísticas são inúmeras. Logo em Memória de Elefante o autor/narrador menciona o arrepio que sente nas costas sempre que escuta “o saxofone de Lester Young em These Foolish Things, correndo ao longo da música à maneira de dedos sábios por nádega adormecida” e cria uma imagem que, pelo seu arrojo, o leitor não espera, num tipo de figura estilística que se tornará característica dominante dos seus romances. O mesmo Lester Young e a mesma composição “onde cada nota parece o último suspiro de um anjo iluminado”serão referidos em crónica publicada muitos anos mais tarde.




Ainda neste romance, referindo-se à angústia existencial, o omnipresente “saxofone de Charlie Parker, a crucificar-nos de súbito num solo desesperado que resume toda a inocência e todo o sofrimento do mundo no sopro lancinante de uma nota”.

Em Os Cus de Judas, ao chegar a África, terra matriz do jazz, e perscrutando ao longe Luanda, ainda no navio que o transportava para a guerra, os negros no cais “observando-nos com a distracção intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que se encontra nas fotografias que mostram os olhos voltados para dentro de John Coltrane quando sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bêbedo, e eu imaginava adiante dos beiços grossos de cada um daqueles homens um trompete invisível…”

Já no mato, no cenário de todos os horrores, “os batuques dos Luchazes eram concertos de corações pânicos, taquicárdicos”. Os Luchazes cujo “riso súbito e orgulhosamente livre… estala junto de mim como o trompete de Dizzie Gillespie, esguichando do silêncio num ímpeto de artéria que se rasga.

Essa mesma África cuja “inesgotável vitalidade” do povo contrapõe a uma Europa agonizante. Uma vitalidade que “entrevira, anos antes, no trompete solar de Louis Armstrong, expulsando a neurastenia e o azedume com a musculosa alegria do seu canto.” Ou nos soldados acocorados “a conversarem numa esquisita linguagem que eu entendia mal mas se aparentava ao saxofone de Charlie Parker quando não grita o seu ódio ferido pelo mundo cruel e ridículo dos brancos”.

A dimensão racial do jazz é também, algumas vezes, explorada por ALA: “Bessie Smith. Lady Day. Bessie Smith de novo. Morreu à porta de um hospital: não a deixaram entrar por ser preta. Iluminou-me a vida. Continua a iluminá-la”.



Além deste tipo de referências, o jazz serve também a ALA para comparações audaciosas e paródicas tal como quando chega ao Chiúme “uma companhia inteira de negros pequeninos e cabeçudos, de lenço vermelho ao pescoço, cujos bigodes por ajardinar lhes conferiam a aparência falsamente intelectual dos saxofonistas do Festival de Jazz de Cascais, génios da semifusa que o mínimo Ben Webster excomungaria”.



Com o amadurecimento literário e consagração do escritor, os romances vão abandonando as referências a escritores, músicos, pintores, etc. e, como tal, as referências ao jazz irão também rarear. É nas crónicas, textos muitas vezes menosprezados pelo autor, que continuaremos a encontrar inúmeros momentos em que o jazz é aludido ou mesmo tema central. No entanto, há uma outra dimensão em que os romances continuam a jazzar. É precisamente no coração da escrita de ALA que podemos encontrar processos próximos da composição e improvisação jazzística:

“Julgo que para um miúdo que resumia toda a sua ambição em tornar-se escritor Charlie Parker era de facto a companhia ideal”. Porque foi “com o que aprendi com os saxofonistas de jazz, principalmente Charlie Parker, Lester Young e Ben Wesbster” que me achei “capaz de compor por conta própria”. É com Ben Webster que “se entende mais sobre metáforas directas e retenção de informação do que em qualquer breviário de técnica literária”. E Lester Young, “esse, ensinou-me a frasear”.

A polifonia (muito apontada por críticos e especialistas como uma das características fundamentais do discurso de ALA, onde a cada momento emergem vozes), o ritmo sincopado, as repetições, a variação, a improvisação, no fundo muito daquilo que faz a essência do jazz, são também os registos da escrita e da enunciação de António Lobo Antunes. A ruptura do Bebop na história do jazz é semelhante à ruptura de ALA na história do romance português.

Quando, na comemoração dos 25 anos de vida literária, o interrogaram sobre quem gostaria que estivesse presente na festa, António Lobo Antunes solicitou Thelonious Monk, Charlie Parker e Lester Young.



  “Cresci com um enorme retrato de Charlie Parker no quarto.” Como evitá-lo, se Deus é afinal um apreciador de jazz?


por António Bettencourt
Publicado originalmente em Jazz.pt, nº30
Maio/Junho de 2010


Bibliografia:

Romances: Memória de Elefante, Os Cus de Judas, Conhecimento do Inferno.

Crónicas: “De Deus como apreciador de Jazz”, “Você”, “Virginia Woolf, os relógios, Claudio & Bessie Smith”, “Já escrevi isto amanhã”.

Outros: “Arte”, in Maria Alzira Seixo (dir.), Dicionário da Obra de António Lobo Antunes, vol. II, Lisboa, INCM, 2008, Catarina Vaz Warrot, “António Lobo Antunes: da escrita romanesca à enunciação musical – o texto como tecido sonoro e visual” (comunicação apresentada na Jornada Comemorativa dos 30 anos de Memória de Elefante).

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(*) António Bettencourt é o actual revisor filológico dos livros de António Lobo Antunes, na continuidade da edição ne varietur da obra.

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