Miguel Real: crítica a Comissão das Lágrimas


Singularidade absoluta

1) INTRODUÇÃO

Comissão das Lágrimas, último romance de António Lobo Antunes (ALA), mantém o conjunto de singularidades estéticas que tornou o seu autor um vulto ímpar nas letras portuguesas e internacionais.

Com efeito, descansado o exemplar do livro no braço do sofá, a conclusão é indeclinável: ninguém escreve ou escreveu como ALA. O autor é, de facto, uma mónada literária sem passado estético nem genealogia autoral no seio da história do romance português. Não existem mestres para este tipo de escrita e, certamente, não existirão discípulos (epígonos haverá muitos). Quem teriam sido os seus patriarcas da escrita em Portugal? Raul Brandão de Húmus, Ruben A. de Caranguejo, Ana Hartely de A Discípula, Nuno Bragança de A Noite e o Riso, José Cardoso Pires de O Delfim, Maria Velho da Costa deMaina Mendes? E internacionais? Faulkner, Joyce, Calvino, Kafka? Não.

Em absoluto: nenhum autor escreve como ALA. Certamente que terá havido influências - é impossível não havê-las. Porém, o importante não será a manta de retalhos de possíveis influências que uma especiosa tese de doutoramento detectará aqui e ali, mas, diferentemente, a concepção bem firme hoje da absoluta singularidade estética da escrita de ALA. Sim, todos os escritores possuem uma escrita singular (por isso são escritores, mas alguns são mais escritores do que outros. E ALA é-o em modo absoluto. O que significa dizer de um escritor que o é de um modo absoluto? Significa que os seus livros revelam uma nova dobra na língua portuguesa, um novo horizonte estético para esta, uma nova forma de combinação de palavras até então nunca descoberta. Por isso os romances de ALA confundem o leitor, habituado à gramática de mestre-escola [...]

Quer o leitor fazer a experiência? Leia em simultâneo Comissão das Lágrimas e O Cão que Pensava Demais, de José António Saraiva, publicado agora mesmo, e veja a diferença - no primeiro, os lugares sintácticos e morfológicos clássicos são amiúde alterados e as relações entre as palavras abrem novos campos semânticos, gerando uma outra figuração escrita da língua, que, sem dúvida, confunde e espanta o leitor; no segundo, da primeira à última páginas, toda a escrita se resume a um tradicional máximo denominador comum da língua, a gramática clássica ali depositada como um dogma de Deus, sorte de longa redacção de um bom aluno do 12º ano, compondo um romance profundamente conservador [...]

2) A ESCRITA DE ALA

Com efeito, por via de elisões, antíteses, paralelismos, sinestesias, reiterações recorrentes, por vezes sucessivas, metonímias frequentes, analogias inesperadas geradas por cruzamento de ideias ou frases, assíndetos (corte das adversativas), e outras técnicas estilísticas (certamente que espontâneas), a escrita de ALA cria uma cadência musical encantatória que atordoa o leitor, uma toada hipnótica (cf. Maria Alzira Seixo, As Flores do Inferno e Jardins Suspensos, 2010, p. 20, por exemplo) que o desorienta, não raro o confunde. O leitor busca uma intriga clara e consistente, pontos de apoio compreensivos no interior da história narrada (qual o papel do avô em Comissão das Lágrimas?, a mãe chama-se Alice ou Simone?, o pai preto violentou ou foi violentado ou as duas coisas na frequência do seminário?; a mãe trabalhou num escritório, numa fábrica ou numa modista?...), o leitor tenta refazer a cronologia da acção, não consegue à primeira, à segunda, espanta-se, hesita em pôr o livro de lado, sucumbe à leitura tão bela mas tão exigente, surpreende-se, agita-se, conclui conter Comissão das Lágrimas uma escrita diferente de todas as outras. Neste momento, o leitor ou abandonou a leitura (ao 3º, 4º capítulos, ansiando por romances transparentes como o de José António Saraiva) ou já foi projectado para dentro do romance, não é já um receptor passivo, um novo universo estético nasceu na sua mente, uma "pena gozosa" (Pe. António Vieira) penetrou-o, debate-se com a narração da história, tenta controlá-la, conclui ser controlado por ela e abandona-se à fruição do romance.

3) COMISSÃO DAS LÁGRIMAS: UM "INFERNO DOCE"

Assim, ler Comissão das Lágrimas é como se cada leitor reconstruísse dentro de si um novo "Guernica": corpos fragmentados, mentes estilhaçadas, sentimentos benéficos amarrotados, os "cães negros" do inconsciente maligno emergidos, soltos, situações sociais aterrorizantes - o terror em cada página (cf. p. 57, como exemplo), um inferno em forma de arte, ou como Vieira designava os engenhos de açúcar, mantidos permanentemente acesos pelo trabalho escravo, um "inferno doce", e Maria Alzira Seixo denomina por "flores do inferno". "Comissão das Lágrimas" designa o conjunto de elementos vencedores que, em 1977, em Luanda, seleccionaram os "nitistas" ou os "fraccionários" da revolta de Nito Alves e Zita Vales contra a fracção dominante do MPLA liderada por Agostinho Neto. Não houve piedade ética nem misericórdia cristã - após prisão e tortura, foram mortos milhares e milhares [...] de angolanos ao longo de dois anos: do sangue dos "fraccionistas", como outrora do sangue dos escravos nasceu o actual poder político angolano [...] e o "inferno doce" que é hoje Luanda.

Todo o romance, multiplicado por três espaços principais (Luanda, Quilala, Lisboa) e quatro tempos (Angola: 1967, 1974/75, 1977 e Lisboa, 2007), é atravessado pela recordação da tortura infligida a Virinha (terror puro e simples: pp. 35, 48..., personagem real sem nome no romance), o arrependimento do ex-padre preto, marido da mãe de Cristina, desaparecido em Almada aos 76 anos, sofrendo de arteriosclerose, o trauma infantil de Cristina, que houve vozes vindas de objectos (cadeiras, folhas, flores..., e porventura deitará fogo ao apartamento da família em Lisboa), a existência carregada de solavancos da mãe de Cristina, corista-bailarina frustrada devido a aleijão no joelho, explorada sexualmente à ordem do Senhor Figueiredo pelos brancos ricos.
 

Miguel Real
edição 1069 do Jornal de Letras
21.09.2011
[grafia revista para as normas antes do AO90]

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