Jornal de Letras: a voz (interior) das lágrimas


Jornal de Letras - edição 1069
entrevista de Luís Ricardo Duarte
21.09.2011


Quatro andamentos para um pretérito presente


AQUI E AGORA
Tocamos à campainha do prédio onde mora, ao Conde Redondo, em Lisboa, e temos uma certeza: estamos a interromper o seu trabalho. Da editora demoraram a confirmar a data da entrevista precisamente porque António Lobo Antunes (ALA) está a acabar o seu novo livro, o que deve acontecer por estes dias. «Já não estou a escrever», revela assim que nos sentamos no sofá da sala. «Estou na parte mais maçadora, a da edição. Não tem nada de criativo. É como estar a corrigir testes de português mal escritos». O processo, no entanto, já vai muito avançado. De tal forma que é mais sobre este manuscrito que quer falar, deixando para segundo plano Comissão das Lágrimas, o romance que chega às livrarias no final deste mês. «Tenho de esquecer um livro para começar outro», salienta. «E do que agora sai lembro-me pouco». Não será, portanto, uma entrevista o que teremos pela frente. Antes uma conversa, em vários andamentos, sobre um mesmo tema: a arte da escrita.

25 DE FEVEREIRO DE 2010
Com medo que a fonte seque, ALA tem definido datas para começar a escrever novos romances. Como normalmente o processo de revisão termina no Outono, o Inverno traz-lhe o calor de um novo livro. Ou o frio, dado que, como nos diz, o trabalho é cada vez mais difícil. «Ao contrário da leitura, escrever é uma actividade que não associo ao prazer. As indecisões e angústias são tantas... E quando não estou a trabalhar sinto-me culpado». Acresce a este temor o receio de desiludir quem o lê, em particular figuras tão ilustres como George Steiner ou Harold Bloom, que não se cansa de convocar ao longo da conversa. O seu público, assegura-nos, é universal. «Escrever é muito difícil. Cada vez me dou mais conta disso».

A 25 de Fevereiro de 2010 lançou-se, metodicamente, às suas rotinas. Trabalhar de manhã, à tarde e à noite, com uma pausa apenas aos fins de semana. E aos poucos foi surgindo Não É Meia-Noite Quem Quer, título que reproduz um verso de René Char, na linha de uma apropriação poética já verificada em alguns dos últimos livros: Sôbolos Rios Que Vão, de Camões, Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?, inspirado num cancioneiro do século XIX, ou Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, a partir de Dylan Thomas.

«Este novo livro foi um milagre» - afirma, mais do que uma vez ao longo da conversa, Lobo Antunes. Já quando o entrevistámos a propósito de Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar? o escritor falou da sua criação como se ela resultasse de uma espécie de energia superior, desconhecida, ou de um outro estado de entendimento. «Durante muitos anos - diz - havia uma coisa que me intrigava: a sensação que temos, quando estamos entre o dormir e o acordar, de ter percebido o segredo do mundo. De que tudo é muito simples e claro».

O problema é que esse estado milagroso normalmente acaba quando se inicia o caminho do despertar. «Quando acordamos não temos nada». Levou tempo a descobrir a melhor solução para reproduzir essa condição híbrida. Encontra-a no "cansaço". «Normalmente, as duas ou três primeiras horas são perdidas. Só quando estou cansado e as defesas baixam o texto começa a sair». E o milagre acontece.

AQUI E AGORA
Qual foi o ponto de partida do livro que está agora a corrigir?, perguntamos, aceitando o seu jogo de falar primeiro do depois, para mais tarde irmos ao agora. «De início não tinha nada». No entanto, do abismo da página em branco uma voz surgiu.  «Ela falava, falava, falava e fui atrás dela», descreve ALA. «Só mais tarde percebi que ela se ia matar. O livro passa-se todo em três dias, sexta-feira, sábado e domingo». E como se desenvolveu essa voz?, insistimos. «A minha ideia era pegar numa pessoa com esquizofrenia paranóica que, em delírio, ouvisse vozes. Mas depois começou a ser muito mais que isso», afirma. E acrescenta: «Toda a criação é simbólica. A história é apenas o isco que se usa para atrair o leitor à verdade dos símbolos. É um processo longo, que só se faz através da escrita e reescrita. Lembra o título de um livro do Eugénio de Andrade: é um Ofício de Paciência. Ou, já que estou cheio de citações, tem qualquer coisa daquela passagem do diário do Jules Renard em que ele diz que não há talento, apenas bois, bois que marram e marram e que insistem e insistem até conseguirem o que procuram».

HÁ CERCA DE 15 ANOS
Embora presente desde a sua estreia literária, em 1979, com Memória de Elefante, a ideia de "voz" tem assumido, em criações recentes, uma maior intensidade. E Lobo Antunes não tem pudor em explicar porquê: «Quando comecei a ensurdecer a minha escrita mudou: passei a ouvir muito melhor as vozes». São elas que agora, sibilinas e desafiadoras, comandam a sua pena, fazendo do escritor uma espécie de medium que traduz, interpreta e refaz o que ouve. «Ser surdo é uma chatice imensa. Um sofrimento muito grande. Mas ao mesmo tempo as vozes interiores começam a tomar um outro peso. Como não tenho vozes de fora, aparecem as de dentro, que provavelmente eram silenciadas pelo barulho exterior. Com isto, os meus livros mudaram, numa inflexão que pode ser identificada a partir de O Manual dos Inquisidores [de 1996]».

Mas mudaram em que sentido? «A voz tornou-se mais presente, clara, nítida e forte. Se eu tirar o aparelho não oiço nada. E, mesmo quando o uso, não é mais que um amplificador. Não escolhe sons como o cérebro faz. O barulho de um talher num prato é, para mim, uma explosão, tal como estar com muitas pessoas à mesa. Sozinho, sem aparelho, as vozes que existem dentro de todos nós fazem-se ouvir. O Beethoven falava neste aspecto também. Que, com a surdez, passou a ouvir melhor as composições na sua cabeça. No meu caso, comecei a conseguir chegar mais fundo. Ensurdecer foi socialmente uma chatice e literariamente uma bênção».

AQUI E AGORA
"O doloroso canto de uma mulher torturada". Já numa entrevista ao Estado de São Paulo, em Maio de 2010, ALA confessava que na sua cabeça habitava essa música de sofrimento. Eram os sons de Elvira, mais conhecida por Virinha, líder do batalhão feminino do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Em Maio de 1977, durante os conflitos internos por que aquele país passou, opondo os chamados "fraccionistas", cujo principal rosto era Nito Alves, a Agostinho Neto, Virinha foi presa, torturada e morta. Contudo, nunca deixou de cantar ao longo de todo esse terrível suplício. «Segundo os livros que há sobre o assunto, é uma história autêntica. E um extraordinário exemplo de coragem, algo que sempre admirei.», diz-nos agora ALA. «Julgo que herdei essa admiração do meu pai, para quem os três valores fundamentais eram a coragem, o rigor e a ausência de mentira».

Porém, acrescenta, «não era tanto esse episódio que me interessava». Presente no livro, nas páginas iniciais, esse doloroso canto é uma espécie de pauta a partir da qual desenvolveu o romance, centrado em três personagens principais: um casal e uma filha, internada numa clínica. Personagens essas que foi buscar ao seu quotidiano, às pessoas com que se cruza no dia a dia e aos espaços que lhe são íntimos. «Para começar a escrever, preciso de alguns factos reais. E, na minha cabeça, esse casal morava na Avenida D. Afonso III, informação nunca mencionada, num apartamento que tive, há muitos anos, para escrever, ao pé do Cemitério Judeu e com uma pequena vista para o Tejo». Processo semelhante aconteceu em Não É Meia-Noite Quem Quer, que recria o ambiente da casa de férias dos seus pais, na Praia das Maçãs.

Com esses elementos, o ambiente da narrativa compôs-se gradualmente. «Encontrei as personagens aqui no meu bairro: um pintor indiano, a sua mulher, uma antiga corista, e a sua filha, doente com problemas psiquiátricos. Mas eis que depois se transformaram, ele em padre, negro, ela não se sabe muito bem em quê [nunca se chega a perceber onde trabalha, se "na fábrica, na modista ou no escritório", apenas que dançava até o seu joelho ceder]. O esquema que fiz não me serviu para nada, só para transgredir».

PARIS, 201[1]
Com este novo romance, Comissão das Lágrimas, chega também a Portugal um conjunto de adaptações teatrais e musicais em torno da obra de ALA que tiveram a sua estreia em Paris, no ano passado {gaffe do jornalista: foi no início do ano de 2011}. Foram seis meses de celebração da sua prosa torrencial e polifónica, que não deixou de surpreender o escritor. Mesmo que, como confessa, não tenha visto nenhum desses espectáculos.

Vê com bons olhos essas adaptações?, perguntamos, tendo em mente a dramaturgia de Maria de Medeiros a partir de Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?, a interpretação musical que José Neves criou com as suas cartas de guerra (que estiveram em cena, no Teatro São Luiz, na semana passada) e a transposição para o grande ecrã de A Morte de Carlos Gardel, um filme de Solveig Nordlund. com estreia marcada para amanhã, quinta-feira, 22 [...]. «Não vejo», responde Lobo Antunes. «Tudo isso tem um lado agradável, não minto - e desde o cancro [que teve há cinco anos] que não minto. Mas é um trabalho que já não é meu. Para ser sincero, é-me completamente indiferente. Cedo os direitos sem contrapartidas».

E nunca pensou escrever teatro ou colaborar em cinema? «Não tenho tempo, nem percebo nada dos esquemas teatrais e cinematográficos. Nem para isso tenho talento, muito provavelmente. Ainda estou a aprender a escrever estes livros que faço. É a minha única preocupação».

AQUI E AGORA
Comissão das Lágrimas aborda um dos assuntos mais quentes do passado recente de Angola, mesmo se de uma forma colateral: o golpe de estado de 27 de Maio de 1977. É o impacto que esses acontecimentos têm nas personagens que lemos. Por isso, ALA não teme interpretações políticas do seu livro. «A arte social nunca me interessou, nem fazer críticas ou escrever sobre política. Em todos os livros. Nem Os Cus de Judas é um libelo contra a Guerra Colonial». Porque escolheu então este episódio político tão marcante? A resposta é bem ao seu estilo: «Não foi uma decisão racional. Aquela voz não se calava. E eu fui levado pela onda que criou».

Mais relevante, para si, afigurou-se o labor sobre a matéria do passado e os sentimentos que não existem sem o seu contrário, a morte e a vida, a alegria e a tristeza.

Ao 23º romance, António Lobo Antunes continua a perseguir a "utopia" de "colocar a vida toda entre as capas de um livro". E a memória, o que dá espessura à imaginação, é a massa a partir da qual edifica as suas narrativas. À semelhança de Cristina, a narradora de Comissão das Lágrimas, o autor de Explicação dos Pássaros, que em Novembro terá uma edição comemorativa dos 30 anos do seu lançamento, também vive "torturado por espectros". O passado é presente, aprendeu-o em África, onde esteve destacado como médico, durante a Guerra Colonial. Um presente contínuo que emerge sistematicamente na sua vida, como na sua escrita, sublinha. E, sentindo que a conversa se aproxima do fim, acrescenta: «Temos todas as idades na nossa vida e todas as vidas dentro de nós. É o que nos permite escrever». Comissão das Lágrimas é mais um testemunho dessa espiral sem tempo, desse pretérito presente e em permanente reconstrução.


in Jornal de Letras, nº 1069
21.09.2011
[grafia revista para as normas antes do AO90]

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