Um autor sem inspiração


Courrier Internacional
Janeiro de 2007


Na sua primeira visita ao México, o escritor explica, em entrevista, que a sua obra resulta  mais do trabalho que das musas. Partilha também a sua opinião sobre a América Latina e a sua literatura.


Com 64 anos, António Lobo Antunes, uma das vozes com maior prestígio e reconhecimento internacional do Portugal contemporâneo, não associa a escrita a uma actividade que lhe cause prazer nem acredita na inspiração.

«Estar com uma mulher dá-me imenso prazer, mas escrever um livro não. Além disso, quando os autores falam de inspiração, não há inspiração nenhuma: faz-se um livro porque se decide começá-lo e levámo-lo até ao fim o melhor que podemos», diz. Assim, para o autor de títulos como A Ordem Natural das CoisasFado AlexandrinoA Morte de Carlos GardelEu Hei-de Amar Uma Pedra e Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo, além da sua mais recente obra, Ontem não te vi em Babilónia [todos na Dom Quixote], os primeiros capítulos continuam muito difíceis.

«O prazer começa na segunda metade da obra, quando o livro começa a escrever-se sozinho e a minha mão escreve sozinha, quando o livro me dita o que quer. Mas faço muitas versões dos primeiros capítulos, até me sentir satisfeito. Porque escrevo e penso: "ainda não é isto, ainda não é isto..."», comenta. Escrever é uma coisa que demora toda a vida a aprender e a experiência, assegura Lobo Antunes, é como os flutuadores dos hidroaviões: não servem para nada quando estamos no ar.

«Neste trabalho, não sabemos nada. E então quanto mais escrevemos, mais humildes nos tornamos, porque se trata de um trabalho muito difícil», reconhece. Psiquiatra de formação, iniciou a sua carreira literária em 1979, com a publicação de Memória de Elefante, aos 37 anos. Abandonou a medicina, decidiu entregar-se à actividade literária e, desde então, o seu objectivo tem sido mudar a arte de escrever.

O problema é que há milhares maneiras de o fazer, afirma. «Todos os grandes escritores o fazem, não é verdade? O problema é encontrar a voz exacta. Porque uma pessoa pode escrever o que quiser, mas o livro é um organismo vivo, que tem as suas leis, a sua fisionomia, o seu carácter, um temperamento muito diferente do nosso, e encontrar aquele que é próprio do livro é muito difícil, nos primeiros capítulos», esclarece.

Apesar do que diz, o autor português, um dos favoritos nas listas de nomes que, ano após ano, são elaboradas quando se aproxima a atribuição do Prémio Nobel, já não se imagina afastado da literatura: «A minha vida não tem muito sentido sem a literatura. Há um factor homeostático em tudo isto, e isso é muito importante para a escrita e, em geral, para tudo».

Lobo Antunes nunca tinha estado no México. A visita à Feira Internacional do Livro de Guadalajara [no final de Novembro [2006]] foi o seu primeiro contacto físico com o país, que só conhece através o que viu nos filmes e, sobretudo, através do que leu.

«A literatura mexicana sempre me pareceu muito importante. E os escritores da América Latina fazem parte da minha visa desde os meus 18 ou 20 anos, quando começou o "boom". Conheci alguns escritores, ou melhor, alguns livros, durante a guerra de Angola. Foi assim que conheci Juan Rulfo, Carlos Fuentes e algumas tradições de Octávio Paz», conta.

Só se pode começar um livro quando temos a certeza de que não somos capazes de o escrever, porque, dessa maneira, o livro torna-se numa luta, afirma Lobo Antunes. «Assim, vai-se escrevendo e pensando: "Não vou deixar que um livro me derrote". E trabalhamos, trabalhamos, até que saia bem», acrescenta.

Lobo Antunes nasceu em Lisboa, a 1 de Setembro de 1942. Aos 7 anos decidiu que queria ser escritor, mas, aos 16 , o pai mandou-o para a Faculdade de Medicina. No entanto, nunca deixou de escrever. Quando acabou os estudos, foi obrigado a ingressar no exército português, durante a guerra de Angola, da qual só regressou em 1973. Essa experiência marcou  a sua vida e, sobretudo, a sua obra. A beleza da sua prosa, o pormenor e o rigor com que os seus livros são construídos, bem como as complexas tramas que os suportam, fizeram com que as críticas que lhe são feitas, especializadas ou não, se dividam entre a admiração e o desprezo por aquilo que consideram como afectação e sobranceria.

Perante isto, Lobo Antunes assume um compromisso com os seus leitores, cujo número aumenta ano após ano, e agradece a «fé» que, assegura, nem sempre é partilhada. «Tenho medo de decepcionar as pessoas que tiveram em mim um fé que nunca partilhei. Nunca imaginei que isto viria a acontecer-me: todas essas traduções, todos esses prémios. As pessoas foram sempre muito generosas comigo», diz.

O escritor manifesta a sua gratidão mas, ao mesmo tempo, distancia-se e volta às obras, que considera organismos vivos. «Vamos como cegos, até que o livro começa a ter vida própria, começa a caminhar sozinho, já não precisa de nós, só precisa da nossa mão. Porque, nos grandes momentos do livro, temos a sensação de que no-lo estão a ditar». afirma. E como se poderá explicar essa sensação? «Não é possível racionalizar as emoções, não sei como explicar. Tem a ver com a natureza do livro. É uma questão de trabalho: quanto mais se trabalha, melhor é o livro. Não acredito nos que dizem que a escrita lhes sai com muita facilidades. É preciso trabalhar, não há nenhum segredo».

«A única coisa que faço é escrever e um livro representa dois anos de vida. Escrevo todos os dias, sábados e domingos. Agora, o mais que posso fazer é negociar coma morte: "Deixa-me escrever o meu livro, deixa-me acabá-lo, porque, se o publicam sem estar acabado, não fica bem, é uma merda"», declara o escritor, que um dia garantiu que é muito difícil alguém publicar um bom romance antes dos 40 anos. Continuará a pensar o mesmo? «Diria que antes dos 30. É preciso viver primeiro, porque nós não inventamos nada, caso contrário seríamos ladrões. Pode-se escrever boa poesia aos 18 anos, mas é muito difícil escrever um bom romance antes do 30, porque falamos de nós mesmos, pois todos os livros são autobiografias. Por isso, é preciso viver, viver como homem comum  entre homens comuns. Só um homem comum pode fazer grandes coisas», sustenta.

Os críticos de Lobo Antunes dizem que, depois de Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo, o seu universo literário se tornou mais denso. «Não sei, porque não li os meus livros. Só os escrevi», explica o escritor. Mas sente alguma mudança no seu processo criativo? «Bem, ao princípio escrevia histórias. Agora não me interessa escrever romances, histórias. Isso não me interessa. O que me interessa é preencher o espaço entre as capas do livro. É tudo. Para começar preciso de uma história, mas depois preciso de a destruir, como uma hiena. O enredo já não me interessa muito, porque estou a trabalhar com coisas anteriores às palavras. É isso que me interessa agora».

Em entrevistas, Lobo Antunes recorda frequentemente que, ao princípio, nenhuma editora queria os seus livros, nem em Portugal, nem noutros países. Mas, quando saiu o seu segundo romance, Os Cus de Judas (1979), recebeu uma carta de Thomas Colchie, na qual este lhe dizia que queria ser o seu agente literário. «Fiquei muito surpreendido, porque ele já tinha muitos autores importantes, como Ernesto Sábato e Guillermo Cabrera Infante», confessa.

Com o tempo tornou-se um autor de renome internacional e recebeu prémios como Jerusalém (2005), o da União Latina Internacional (2003), o Rosalía de Castro (1999) e o France Culture (1996), entre outros. No entanto, para Lobo Antunes, os galardões não são importantes, porque não têm nada que ver com a literatura.

«Ao princípio, receber prémios dava-me prazer e, ao mesmo tempo, inquietava-me. Os prémios são bons porque é muito difícil para quem escreve ser um escritor profissional. Lamento que pessoas com talento tenham de trabalhar noutra profissão e só possam escrever à noite e aos fins-de-semana. Isso aconteceu comigo há 10 ou ou 15 anos, quando me matava, porque escrevia das 11h da noite às 4 da manhã. Escrever requer todo o nosso tempo e é mais importante do que a nossa vida e o nosso trabalho», comenta. Por isso, quando viaja, pede sempre aos seus editores que lhe deixem quatro ou cinco horas por dia para trabalhar. «Se não se trabalhar todos os dias, perde-se a mão. Além disso, conheço escritores que têm muito talento, que escreveram livros muito bons e que, depois, não resistiram às tentações da fama e não lhes resta tempo para trabalhar. Não vou dizer nomes, porque são pessoas que admiro e respeito e alguns até são amigos meus. Uns, inclusive, são latino-americanos, muito conhecidos e tudo, mas já não têm tempo para escrever. Se tivessem arranjado tempo para escrever mais, teriam feito coisas muito melhores», garante Lobo Antunes.

Na sua fotobiografia, publicada há dois anos, figura o testemunho da mãe de Lobo Antunes que afirma: "Desde que o conheço, só houve duas coisas que lhe interessaram  na visa: os livros e as mulheres". E o autor reconhece que existe um lado mundano na literatura, mas que é uma coisa que não tem que ver com a literatura em si. «A tentação é muito grande, as mulheres são muito bonitas, mas é preciso resistir-lhes tanto quanto for possível», afirma.

Respostas directas

Nos seus livros, a infelicidade ou a incapacidade de comunicar a experiência humana são marcas distintivas. Considera-se Lobo Antunes um homem sem esperança?
Não, mas tenho consciência de que faço parte de uma corrente contínua que começou muito antes de mim e que terminará muito depois. Não, não sou um homem sem esperança. Acredito no homem. Não acredito em Bush, mas acredito no homem. Há pouco tempo, li um livro de Carlos Fuentes, Contra Bush [inédito em português], muito inteligente, muito bem feito. Esses livros fazem-se com ideias, mas aquilo que eu faço, aquilo que fazem os escritores, não se faz com ideias. Pedro Páramo [de Rulfo, publicado em português pelas Edições 70 e pala Cavalo de Ferro] não foi escrito com ideias.

Só com palavras.
Sim, só com palavras. É curioso. Pedro Páramo era um livro que eu não compreendia: lia-o e voltava a lê-lo e não o compreendia. Não compreendia que estavam todos mortos, por isso o livro não fazia sentido nenhum para mim. Sentia-me fascinado, mas ficava de fora.

E nunca lhe interessou enveredar pelo terreno das ideias?
Não tenho tempo. Eu só escrevi livros como os que faço. Não escrevi mais nada, nem relatos nem poesia.. Escrevo umas crónicas para os jornais, mas é tudo.

Declarou que faz romances porque não sabe fazer poesia. Teria gostado de ser poeta?
Se tivesse podido escrever poesia, penso que nunca teria tentado escrever prosa. O que acontece, porém, é que toda essa história das definições de géneros cada vez me interessa menos. Quando se começa um livro, é isso que se quer fazer, um livro, um livro total que tenha tudo, poesia, prosa, tudo: a vida.

Porque pensa que subsiste a ideia dos géneros literários?
Porque temos a mania dos rótulos, temos uma necessidade idiota de catalogar as pessoas.

Quais os autores de que Lobo Antunes gosta?
Amos Oz é um amigo, um homem de quem gosto. Apesar de escrever coisas que não têm nada a ver comigo, gosto do homem. é um homem humilde, encantador, foi muito simpático comigo e é um amigo, é um homem que respeito, embora não esteja de acordo com ele. Aborrece-me que tenha apoiado esta última guerra. Fiquei muito surpreendido com a sua posição, mas não falei com ele depois disso. Talvez tenha razões que não conheço.

Quais os outros autores que lhe suscitam empatia?
Gosto de Juan Marsé, porque é um homem com um sentido ético da vida. Gosto de Javier Marías. Estou a falar de escritores de língua  espanhola, mas é sempre possível esquecermo-nos de algum nome. Depois, se um amigo lê isto e não vê o seu nome, diz: "Olha o cabrão esqueceu-se de mim". E há também os escritores de que gosto e que nunca conheci, mas cujos livros foram importantes para mim, como os de Emily Brontë, Tolstoi, Tchekov. Embora, na verdade, cada vez leia menos romances. Não me interessam, porque, quando começo a lê-los, dá-me vontade de os corrigir. De um modo geral, os escritores não me despertam muita curiosidade. Os livros sim, como os de Sánchez Ferlosio, para continuar com os de língua espanhola.

Que acha da língua espanhola?
Gosto muito da definição do espanhol de Cervantes. Cervantes dizia que o espenhol era português com menos Ss (esses). É um idioma muito bom. Na Colômbia, falam um espanhol maravilhoso, muito bonito.

Como vê a América Latina?
É muito importante, é a parte mais importante do mundo.

Porquê?
Porque são pobres, como nós. Quando perguntaram ao treinador porque era tão boa a equipa da Hungria dos anos 50, ele respondeu: "Porque éramos pobres".

Pode explicar isso?
Não é muito difícil de perceber: é porque nestes países acontecem coisas. Em França, por exemplo, não acontece nada e a literatura é muito má. Por outro lado, eu acredito muito na latinidade, cada vez me sinto mais latino. E somos muito diferentes do resto do mundo. Estive há pouco tempo em Estocolmo e somos muito diferentes deles, o nosso trabalho é muito melhor que o deles.

Porquê?
Porque temos uma relação mais conflituosa coma vida, porque temos menos medo das emoções, porque não somos tão bem educados, porque não fazemos cerimónias com a vida, porque a mordemos, porque lhe batemos, porque somos mais intensos. temos uma carnalidade maior. Lá, ninguém toca em nada fisicamente, em nada. Ninguém nos convida para sua casa, comem nos restaurantes, são culturas muito diferentes.

Que vai fazer em seguida, António?
Estou a tentar começar um livro, mas não sei se é um livro ou não. Era o que estava a fazer, quando chegou esta chamada.

Lamento tê-lo interrompido.
Não faz mal.

Que expectativas tem sobre a Feira Internacional do Livro de Guadalajara e sobre o México?
Nunca estive no México, é a primeira vez. Aquilo que vi  do México foram os filmes e, sobretudo, os livros, a literatura mexicana, que sempre me pareceu muito importante. Os escritores da América Latina estiveram presentes na minha vida desde os meus 18 ou 20 anos, quando começou o "boom".  Conheci alguns escritores, ou melhor, alguns livros durante a guerra de Angola. Conheci Juan Rulfo, Carlos Fuentes e algumas traduções de Octavio Paz, mas, de um modo geral, havia muito pouco. Conhecia um pouco da história do México, porque homens como Zapata eram figuras muito importantes para nós, durante a ditadura, porque os víamos, embora isto possa parecer um paradoxo, como figuras da liberdade que não tínhamos. Além disso, as pessoas são muito parecidas, tão latinas como nós e, por isso, afectivamente, sentíamo-nos muito próximos dos mexicanos. Tenho uma prima mexicana, porque está casada com um primo meu, mas e tudo. Estive na Colômbia e na Argentina e fiquei muito impressionado com a generosidade e o calor dos leitores e das pessoas. As pessoas são iguais, quero dizer, a maneira de ser e reagir é muito igual à nossa. E, para mim, além de uma surpresa, isso foi uma alegria muito grande porque me senti em casa.

Há alguma coisa especial que queira partilhar com os seus leitores mexicanos?
Não sei o que vou dizer. Nunca sei o que vou dizer antes de começar a falar, nunca preparo nada. Nunca escrevo nada. A única vez que escrevi qualquer coisa foi quando me atribuíram o Prémio Jerusalém e fi-lo porque tinha de ser publicado. Mas nunca escrevo nada. Falo como me sai. No momento.


citado do Courrier Internacional
artigo de Jaime Reyes Rodriguez
Janeiro de 2007

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