Portnoy: opinião de leitura


António Lobo Antunes: Tratado de las pasiones del alma e Qué haré cuando todo arde?

Não se pode resistir à tentação de ler um romance com um título tão maravilhoso:Tratado das Paixões da Alma.

É o meu segundo romance de Lobo Antunes, depois de Que Farei Quando Tudo Arde?. São dez anos de diferença que existem entre a escrita dos dois romances, e a comparação entre si supostamente daria uma clara visão sobre o estilo literário de Lobo Antunes. Porém, dois romances  tão separadas no tempo, e algumas das crónicas do escritor publicadas no Babelia - El País, não implicam demasiado conhecimento da obra de um escritor para se empreender uma crítica séria e tirar conclusões a respeito.

Penso que se tivesse que escolher um autor português para o laurear com o Prémio Nobel, não teria dúvida alguma que, antes da tresnoitada filosofia new-age de Saramago, uma narrativa infestada de conformismo e lugares comuns, viesse a apostar em Lobo Antunes, mais arriscado literariamente e menos comprometido socialmente. De facto, as normas para o Prémio Nobel da Literatura implicam que deve conceder-se "a quem haja produzido no campo da literatura a obra mais destacada, na direcção correcta", o que se mostra bastante ambíguo, ao que se junta "o que suponha uma contribuição notável à sociedade"... mais ambiguidade.

Mas deixemos de lado as minhas fobias pessoais.

Lobo Antunes é um escritor que trabalha especialmente a forma das suas obras. Como afirmou numa entrevista:

«Interessa-me o trabalho com as palavras. As histórias dos meus livros não me interessam nada» (..) «A estrutura, sim; (...). Interessa-me tentar traduzir em palavras o que por definição é intraduzível (as emoções, os impulsos) e estruturá-lo num todo coerente. A intriga não me preocupa; o que procuro é estar mais perto do coração, da vida».

Desta forma, esforçando-se em mostrar ao leitor esse mundo interior de impulsos e emoções, cria os romances nos quais o ritmo temporal está completamente truncado. Se bem que o conjunto da obra, os sucessivos capítulos, mostram uma certa continuidade temporal, mantêm uma evolução da história sobre a linha do tempo, o interior de cada capítulo, estruturado em diversos blocos, mostram um caos temporal fruto da indagação do autor na memória das suas personagens.

Tentar uma sinopse dos seus romances é um trabalho infrutífero: uma sinopse não acrescenta nada a uma literatura em que é primordial o uso de palavras para captar conceitos abstractos. Não obstante, tanto Tratado das Paixões da Alma, como Que Farei Quando tudo Arde? são, apesar do que se possa pensar pelo que acabo de dizer, romances em que o humano está muito acima da técnica narrativa. Lobo Antunes empurra-nos para uma frenética descida às entranhas da mente humana, das paixões mais ocultas e os sentimentos mais recônditos, empregando ara isso um tremendo labirinto de palavras que dispõem frases que dispõem parágrafos que não se enlaçam temporalmente com o seguinte, nem com o anterior. Lobo Antunes exige, é inflexível  literariamente.

A evolução que posso constatar nestes dois romances aponta a uma maior dificuldade tanto na sua composição como na sua leitura: em Que Farei Quando Tudo Arde?, Lobo Antunes desmonta toda a narração ao nível de cada frase, de forma que parece haver uma única voz dominante, diluindo os restantes narradores, diluindo o próprio autor. Nas suas próprias palavras:

«Penso que há somente uma voz que se fragmenta e divide; antes fazia planos detalhados, mas agora parto do nada, de uma ideia vaga, o fio narrativo está para o escritor como a corda para o alpinista, a meta para mim surge de como criar personagens que despertem emoções sem esse fio, vejo-me como uma entidade entre duas instâncias, traduzindo o que as vozes interiores me ditam, já não sei se escrevo ou traduzo mensagens disformes.»

Em Tratado das Paixões da Alma, essa possessão não alcança esses níveis de dissolução. Há uma voz única, a voz de Antunes ou a voz de um narrados omnisciente mas também é um diálogo contínuo entre duas personagens ao longo do tempo, personagens que dialogam com a mesma voz, que são denominados com epítetos relativos à sua profissão (que curioso... como Saramago) e que conversam construindo uma história. No romance de 1990 existe todavia certo interesse no que se conta, na trama narrativa. No de 2001, a trama resolve-se precipitadamente, como que uma obrigação que não interessa ao autor.

Lobo Antunes é um escritor arriscado que pede ao leitor um esforço que talvez nos tempos em que vivemos não estará acostumado. Mas também há que reconhecer que é um escritor irregular: existem fragmentos nos seus romances que se prolongam desnecessariamente, as contínuas repetições em que costuma recriar-se não ajudam a que a narrativa avance fluidamente, conseguindo em certas ocasiões um efeito contrário ao desejado: nessa exploração da alma humana o leitor pode sair enfastiado de tanta mediocridade.

São os seus romances tratados sobre as paixões da alma, tratado literário de lato nível. Talvez não seja o melhor escritor do mundo, mas há que agradecer-lhe o esforço das suas composições titânicas, nas quais sempre encontraremos brilhos de perfeição. Seja como for, há que ler um homem que diz sobre a narrativa contemporânea o seguinte:

«Dá-me a impressão que todos (os livros) são escritos pela mesma pessoa. São histórias bem feitas, no geral, mas a mim não me interessam as histórias bem feitas. Gosto de personagens com densidade. Gosto das pessoas que vivem como que com uma guerra civil interior, pessoas com quem podes ter uma luta, no bom sentido, claro. Gosto das pessoas que esgrimam e deixam seu sangue mesclando-se com o teu como num pacto».

 
Portnoy
21.04.2006
[traduzido do espanhol por José Alexandre Ramos]

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