Jordi Joan Baños: Cartas de amor e guerra
Como a corda em casa do enforcado, a guerra de Angola é o trauma omnipresente em toda a obra de António Lobo Antunes. Agora por fim, aparece em português - em breve em várias outras línguas - um livro em que aquele sangrento epílogo colonial constitui a coluna vertebral da sua escrita. Ainda que desta vez não se trate de um romance, mas da recuperação das centenas de cartas que um médico recém-casado enviou a sua esposa grávida, ao longo de 1971 e 1972.
António Lobo Antunes é um "estajonovista" da literatura, um perfeccionista da frase e um homem de rotinas. Um escritor fechado no seu mundo que se gaba de vender centenas de milhares de volumosos romances "sem contar alguma história". O estúdio de seu primo, onde se "esconde" para escrever desde há dois anos, está no mesmo edifício onde há três décadas deu uma consulta, muito perto daquele que foi o seu anterior refúgio de escritor: o hospital Miguel Bombarda. No dito estúdio, em cuja entrada se destaca um coqueiro de plástico de três metros, o romancista aceita conceder a La Vanguardia a sua até agora única entrevista sobre D'este viver aqui neste papel descripto. Uma compilação da iniciativa das suas duas filhas - os direitos de autor estão no seu nome - que o apresentam como uma homenagem ao amor dos seus pais e, particularmente, da sua mãe, Maria José, já falecida.
"O que sinto perante aquelas cartas é muita ambivalência", confessa. "Surpreende-me ser a mesma pessoa. Agora reli algumas, poucas. Nunca pensei publica-las e não sei se têm valor literário, porque onde jogo a vida é nos livros que agora escrevo. Mas quem sabe sirva para que as pessoas compreendam o horror da guerra e a destruição de uma geração. Na apresentação do livro foi muito comovedor ver chorar aqueles homens que estavam morrendo e matando durante muito tempo, fazendo uma guerra praticamente sem recursos. A alguns já não os via há trinta anos e foi como se viesse vindo a estar com eles um pouco todos os dias. Como sabe, nunca falei da guerra, nem sequer com os meus camaradas, e nunca escrevi sobre ela. É demasiado horrendo. Ao voltar a Portugal surpreendeu-me a ausência de culpabilidade".
Nas suas cartas, Antunes também critica a arrogância dos colonos portugueses, aos que em teoria se defendia: "Não merecem a terra extraordinária em que vivem", escreve, antes de apelidá-los de "vendedores de carros". "A quem pertence a um país cansado vão bem estes verdes, estes sons, esta exuberância animal. Seria possível construir um Brasil aqui, uma mestiçagem, se não fosse já demasiado tarde", conclui.
Porém quem espera encontrar uma visão profunda sobre a guerra, ficará decepcionado, uma vez que as cartas representam muito mais uma forma de escape para o então jovem médico militar. "É certo, havia uma auto censura porque havia um risco, as cartas eram interceptadas. Ainda que, na realidade, que nos poderiam fazer, quando já vivíamos em Angola, o pior sítio?". Sem esquecer a censura do regime: "Jorge Amado estava proibido, por exemplo, e Fellini era censurado Em seu lugar mandavam-nos filmes de Joselito, comoManolito, pão e vinho".
Por isso escreve: "um dia serei mais claro. A maior parte das coisas não as posso contar, e as minhas opiniões sobre esta guerra não devem ser escritas. Isto é tudo muito diferente de como se pensa". Até ao dia de hoje não mudou de atitude.
Repentinamente, entre muita lamechice de recém-casado, irrompe a brutalidade da guerra. "Ontem amputei dois dedos". Ou uma bomba fizera voar a perna de um soldado, que na sua aflição repete uma e outra vez: "Quando meu pai souber, mata-se". Porém, e apesar do seu trabalho médico, a mentalidade do Lobo Antunes de então "amigo íntimo do chefe da Pide (polícia secreta)" pode parecer inquietante: "Logo vou passear no T6 (os aviões de guerra que por aqui há) para lhe tomar o gosto. Vão bombardear Chalala-Nango com napalm e não quero perder uma coisa dessas. Lembra-me muitas vezes as fotografias que mostram a população vietnamita em aldeias devastadas". Do "chefe da Pide, meu amigo íntimo", hoje reconhece: A guerra mudou-me muito, também a minha visão das coisas". E já então escrevia: "Não voltarei a ser a pessoa que fui, nunca mais. Começo a compreender que não se pode viver sem uma consciência política da vida. Meu instinto conservador e comodista evoluiu muito".
O romancista opina que com a experiência bélica "desaparece a vaidade" e se conquista "a humildade". Ainda que as suas palavras, pelo menos as de então o contradigam: "Creio sinceramente estar em posse de uma obra prima. Vamos ser ricos, bonitos, inteligentes e célebres. Tenho em mãos o melhor e mais revolucionário romance que nunca li. Valeu a pena que acreditasses em mim, porque, finalmente, me tornei um escritor de uma elegância corrosiva inigualável. Às vezes penso se não serei uma reencarnação de Victor Hugo".
A Antunes causa-lhe apreensão que o livro "seja lido pelos motivos errados" ou, dito de outra maneira, por voyeurismo. Não é em vão, o livro reproduz sem disfarce suas confissões íntimas: "Quero possuir-te com uma fúria de cavador cavalgando uma marquesa. Quero que tenhas um olhar desdenhoso e lento, um riso extravagante, um desprezo de monossílabos". Ou, mais adiante, "vão ser 35 dias de coitos ininterruptos", ou "quero violar-te com a fúria de um ocupante alemão". Mas aquele livro que acreditava ser genial, que iria chamar-se Dilúvio ou Voo, nunca saiu do chão.
As cartas dão a imagem de uma guerra suis generis própria de Gila, na que um batalhão alega ter sofrido dois mortos e 126 baixas. Ou na que os portugueses acabam por se dar conta de que a alegre despedida ao ritmo do merengue com que obsequiam os nativos cada vez que saem de patrulha é na realidade um sinal para os guerrilheiros. Ainda que Lobo não se deixe dobrar: "O risco é mínimo porque estes tipos nunca acertam", escreve.
Em 1972, depois de muito suplicar, recebe a visita da sua esposa e da primeira das suas duas filhas, recém nascida. Sua mulher, Maria José, a única branca entre milhares de negros, adoece e tem de ser internada. Mais tarde regressam a Portugal, e para António será ainda mais duro aguentar os últimos meses, até cumprir os dois anos de serviço. Os seus aerogramas deixam de ser diários. "Vou-me afundando numa apatia total. Não faço nada, nada me apetece. Chego a pensar que sairei daqui para um hospital psiquiátrico, como paciente". Sairia como escritor.
(...)
por Jordi Joan Baños
La Vanguardia (citado deste site)
31.12.2005
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