Ängela Beatriz Faria disserta sobre O Esplendor de Portugal


O ESPLENDOR DE PORTUGAL, de António Lobo Antunes: "o desencantamento do mundo e a desrazão"
Um povo que não reflecte sobre a própria
história arrisca-se a perder a identidade.
("A guerra distante" - Joaquim Vieira)

O conhecimento do mundo exterior, sem o conhecimento
de si mesmo, desertifica o mundo e não nos traz felicidade.
( Vestígios: escritos de filosofia e crítica social - Olgária Matos)
O esplendor de Portugal, décimo segundo romance de António Lobo Antunes, publicado em Lisboa, em 1997, referencia o entrecruzamento da perspectiva história e da configuração de subjetividades presentes nas epígrafes selecionadas por nós.
O título, sarcástico e instigante (bem ao gosto do autor), veio a ser retirado de um dos versos da letra do Hino Nacional, da autoria de Henrique Lopes de Mendonça, erigido como epígrafe do novo romance e apresenta um diálogo intertextual com o Hino adotado pela República ("Contra os bretões, marchar, marchar!") e seu sentido antibritânico incutido por causa do Ultimatum, como tão bem assinalou Carlos reis, no ensaio crítico publicado no JL e intitulado "Um romance repetitivo":
Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente e imortal,
levantai hoje de novo
o esplendor de Portugal!
Dentre as brumas da memória
ó Pátria sente-se a voz
dos teus egrégios avós
que te há de levar à vitória.
Às armas, às armas,
sobre a terra e sobre o mar!
Às armas, às armas,
pela Pátria lutar!
Contra os canhões marchar, marchar!
Este texto fundador de uma nacionalidade, uma vez recontextualizado em um período pós-colonial, leva o leitor a refletir sobre uma das questões formuladas pelos romances portugueses contemporâneos e que diz respeito ao vazio existencial, decorrente do colapso das grandes narrativas de transformação social como o comunismo e o socialismo, que eram, de algum modo, sistemas éticos transformados em projetos políticos. Finda a utopia revolucionária político-social, instaurou-se uma antiutopia, marcada pelo "desencantamento do mundo e pela desrazão".
É exatamente isto que surge na plenitude criativa da escrita de Lobo Antunes: "brumas" recentes da memória e da História serão desveladas neste romance, que se configura como um diário (não canônico) de membros de uma família, seu poder e decadência em África, em períodos que antecedem a guerra colonial e após a independência das colônias. Neste tempo assinalado historicamente e cuja aventura é partir ou ficar, o leitor atento observará, segundo o ensaísta citado há pouco, a "refutação das mitologias públicas e privadas, como a pátria e seu esplendor, a família e seus rituais". O fulgor ou resplendor1, a grandeza ou a suntuosidade característicos de um momento solar e eufórico do Império português cederão lugar a um tempo pós-colonial e a espaços degradados: Angola destroçada, referenciada em ruínas e ocupada pelo FNLA, pela UNITA, tropas "fandangas" do Governo, sul-africanos, mercenários russos, americanos, cubanos, belgas, franceses e ingleses; os musseques e Luanda, a cidade inacabada e dos "defuntos"; Lisboa a desprezar e rejeitar os colonos recém-chegados, "despaisados" e desterritorializados na geografia do exílio (OEP, 256-7).
Esta discursiva da pós-colonialidade, epopéia às avessas, inscreve uma "simultaneidade de sentires, filamentos de memórias refletindo-se no espelho quebrado da perda das identidades"2 ou da sua busca. Assim, as vozes múltiplas que preenchem as páginas dos diários se auto-definem e ao processo histórico, assinalando a sua condição de marginalizadas pela sociedade: Carlos, filho bastardo e mestiço, à espera inútil dos irmãos que expulsara de casa, em uma noite de Natal; Rui, epiléptico e isolado da família em uma casa de saúde, por transgredir regras de bom comportamento; Clarisse, fixada à imagem do pai e considerada prostituta, cujo meio de sobrevivência consiste em relacionar-se com vários homens, para manter o luxo a que se tinha acostumado; Isilda, mãe dos três, colonizadora expulsa da própria fazenda em África, ao ser inaugurada uma nova "ordem" social, sempre acompanhada de uma empregada africana – Maria da Boa Morte –, errante pelas picadas de Marimbanguengo, com "um pano do Congo amarrado à cintura e matacanhas nos dedos" (OEP, 177), na sua "sina de inventar um presente que deixou há anos de existir" (OEP, 87).
Nesta epopéia às avessas, prenhe de armadilhas, Isilda insiste em recusar a realidade (julga que Maria da Boa Morte representa a própria morte e ordena que levante do chão, em que jaz ensangüentada – OEP, 367) e, em sua fuga, empreende uma viagem em busca de salvação (e não mais de riqueza, como no tempo da expansão ultramarina). Ela e sua tripulação jamais alcançarão a Ilha dos Amores, ficarão no meio do caminho, pois irão deparar-se com os soldados – adamastores bem sucedidos que concretizam a ameaça. Encontram, em sua navegação existencial e à deriva, o Cabo das Tormentas e não o da Boa Esperança. Ao pressentirem a trágica morte que se aproximava, compreendem que "estavam inchadas como os cadáveres da guerra à espera que o capim se fechasse sobre elas depois da partida dos pássaros" (OEP, 329).
Ao referir-se ao seu ofício de escrever, durante uma entrevista, Lobo Antunes pronunciou-se:
[...] o que os estrangeiros dizem que trago para a literatura não é mais do que a adaptação à literatura de técnicas de psicoterapia: as pessoas iluminarem-se uma às outras e a concomitância do passado, do presente e do futuro. "A escrita é um delírio controlado" – já lá dizia Antero e antes dele, Horácio: "Uma bela desordem, precedida de furor poético, eis uma ode."3
Esta singular escrita do autor torna-se capaz de revelar a crise da subjetividade coerente, o ensimesmamento e a "escrita de si", característica do período finissecular. Ao se pronunciarem, autobiograficamente, através de monólogos interiores ou solilóquios, na pseudo-escrita de um diário, as personagens iluminam-se umas as outras, através do fluxo da consciência. Desejos, emoções e paixões surgem como categorias políticas e, como afirma Olgária Matos,
É por não ser nunca idêntica a si mesma, que a identidade se apresenta na grande metáfora da viagem – deslocamento mo espaço e no tempo, referida mo território interno do próprio viajante; nela arriscamos nossa própria transformação.4
Na configuração deste diário não ortodoxo (que não obedece a uma sucessão cronológica e nem contém confissões de uma única personagem, mas sim de várias), observa-se a fixação de memórias estilhaçadas e fragmentárias, imagens repetitivas e vozes entrelaçadas, passíveis de superpor tempos e espaços diferenciados. Há uma voz – a da Lena – única capaz de aludir a uma precisa sucessão temporal. Há uma data central e redundante – o 24 de dezembro de 1995 – que concentra solidões individuais e personagens interiorizados sobre si próprios. As evocações de Carlos, Rui e Clarisse ocuparão, respectivamente, cinco capítulos cada, distribuídos seqüencialmente pelas três partes que compõem o romance e ocorrerão do dia do natal, data simbólica do nascimento do Deus-menino, considerado, pela teologia cristã, "infinitamente perfeito, criador e regulador do universo, causa necessária e fim último de tudo o que existe." Portanto, não será gratuita, a inscrição irônica – FINIS LAUS DEO –, no último capítulo do romance, também assinalado por esta data, e que nos relata o assassinato da mãe, Isilda, esquecida pelos filhos, espoliada da fazenda de arroz, girassol, algodão e milho. No entanto, no momento da morte, em que é impossível "marchar contra os canhões" ou metralhadoras "dos tropas do Governo de gravatas coloridas, óculos escuros espelhados de armação metálica como se fosse de prata" (OEP, 395), torna-se capaz de vivenciar o simulacro ou o símile enganador da harmonia desejada. Vejamos:
[...] mas não tinha medo por ser dia, os tropas, mesmo o dos botins de verniz não iam roubar-me nem levar-me com eles nem fazer-me mal, não havia um só quarto às escuras em Malange, erguiam as metralhadoras, fixavam-me com a mira, desapareciam atrás das armas, o modo como os músculos endureceram, o modo como as bocas se cerraram e eu a trotar na areia na direcção dos meus pais, de chapéu de palha a escorregar para a nuca, feliz, sem precisar de perguntar-lhe se gostavam de mim. FINIS LAUS DEO (OEP, 395)
É interessante observar que as outras datas aleatórias que surgem no romance descrevem um percurso fragmentário (de 24 de julho de 1978 a 7 de setembro de 1995) e são preenchidas pela voz desta personagem feminina que descreve o apogeu econômico do início da colonização em África e sua derrocada gradativa, as relações entre as diferentes raças e classes sociais, a violência, o desamor, a traição, a coerção e os genocídios praticados.
Sua enunciação discursiva é reiteradamente marcada por determinadas frases significativas, como, "a casa está morta" (OEP, 92), "por que sou mulher" (OEP, 108) e "Angola acabou para mim" (OEP, 237) ou "A tua casa é do povo camarada" (OEP, 87). Além disso, esta personagem, cujo ego reconstituído para uma satisfação narcísica busca escapar da morte cruel, ao vivenciar o desalento tematiza a questão do espelho e viaja dentro de sua própria interioridade:
Quando à noite me sento ao toucador para tirar a maquilhagem pergunto-me se fui eu que envelheci ou foi o espelho do quarto. Deve ter sido o espelho: estes olhos deixaram de me pertencer, esta cara não é a minha, estas rugas e estas nódoas na pele serão manchas da idade ou ácido do estanho a corroer o vidro? Dantes, no tempo do meu pai...(OEP, 51)
Esta freqüente intersecção de planos temporais, evidenciada no exemplo citado, percorre toda a narrativa e permite aos personagens angustiados e desamparados a ilusão de assumirem-se como demiurgos ou possíveis deuses da criação, ao paralisarem o tempo e fixarem imagens ou sons obsediantes, como por exemplo, a associação feita por Carlos entre o bater do pêndulo do relógio e o do coração:
[...] quando eu não tinha adormecido, não podia adormecer, nunca poderia adormecer, tinha de ficar horas e horas de olhos abertos, quieto no escuro para que ninguém morresse dado que enquanto qualquer coisa no meu peito oscilasse da esquerda para a direita e da direita para a esquerda continuávamos a existir, a casa, os meus pais, a minha avó, a Maria da Boa Morte, eu, continuaríamos todos, para sempre, a existir. (OEP, 77)
Constata-se, no entanto, que no mundo pós-moderno e pós-colonial, o desamparo virou desalento, pois os sujeitos da escrita vivem permanentemente numa condição de risco e de perda dos referenciais que funcionavam como interlocutores. Ao especularem sobre o próprio destino, vêem-se refletidos no espelho do país e suas identidades surgem estilhaçadas e tornam-se simulacros, em meio a fragmentos e ruínas reais ou simbólicas.
Em O Esplendor de Portugal, Lobo Antunes define o labirinto crítico da situação política e econômica da colonização portuguesa em África, através da voz de uma das personagens evocadas pela filha:
O meu pai costumava explicar que aquilo que tínhamos vindo procurar em África não era dinheiro nem poder mas pretos sem dinheiro e sem poder algum que nos dessem a ilusão do dinheiro e do poder que de facto ainda que o tivéssemos não tínhamos por não sermos mais que tolerados, aceites com desprezo em Portugal, olhados como olhávamos os bailundos que trabalhavam para nós e portanto de certo modo éramos os pretos dos outros da mesma forma que os pretos possuíam os seus pretos ainda em degraus sucessivos descendo ao fundo da miséria, aleijados, leprosos, escravos de escravos, cães, o meu pai costumava explicar que aquilo que tínhamos vindo procurar em África era transformar a vingança de mandar no que fingíamos ser a dignidade de mandar, morando em casas que macaqueavam casas européias e qualquer europeu desprezaria considerando-as como considerávamos as cubatas em torno, numa idêntica repulsa e idêntico desdém... (OEP, 255)
No entanto, o fim deste longo processo de desterritorialização colonial suscita, como nos aponta Boaventura de Souza Santo, em Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, diferentes movimentos de reterritorialização (o país retoma, depois de cinco séculos, os limites de seu território). E, em decorrência disto, invertem-se os papéis antes definidos, o que obriga os personagens, expulsos de Angola, a sentirem-se excêntricos e marginalizados em sua própria pátria.
Este mesmo procedimento pode ser observado no romance As naus, publicado em 1988, em que figuras emblemáticas da História-pátria tiveram suas identidades de base redimensionadas e, carnavalizantemente, minimizadas. Se antes eram pessoas autênticas em relação ao seu desejo, de acordo com projetos existenciais definidos, agora apresentam-se combalidas pela dor e pela solidão, brutalmente afetadas em seu cotidiano expectante e vazio, impossibilitadas de viver como desejariam.
Todas essas subjetividades malogradas vivenciam a perda das certezas e da estabilidade adquirida. Ao privilegiar o reflexivo, o desdobramento e a consciência infeliz, os autores contemporâneos configuram a antiutopia, capaz de deflagrar, segundo Baudrillard, a "contra-razão, a desterritorialização, a indeterminação do sujeito e da linguagem, a neutralização de todos os valores, da morte da cultura."5
Em O esplendor de Portugal, isso evidencia-se, inclusive, através da delação e da perda dos valores humanistas. Em uma das cenas mais chocantes, Isilda indica, friamente, aos tropas do Governo, o amante e chefe de polícia escondido dentro de um tronco de árvore, o que o leva a ser sumariamente executado. Observa-se, no espaço romanesco, a impiedade das personagens, que se ferem umas às outras sem o menor escrúpulo.
No entanto, o que nos fascina nos romances de Lobo Antunes é que qualquer registro trágico surge acompanhado de uma atitude carnavalizadora e transgressora, fazendo com que o leitor desate a rir. Mas convém lembrar que, dentro do contexto de O esplendor de Portugal, isto transforma-se no grotesco, como atestam, particularmente, duas cenas: o noivo bêbado estatelado no carpete a proteger-se do futuro sogro "que lhe tocava com o bico do sapato, intrigado, a assegurar-se que o embrulho de linho sujo respirava e vivia" e a dizer: "– Onde diabo desencantaste este palhaço Isilda?" (OE, 57) e o menino Rui a destroçar todos os brinquedos de corda encontrados em uma retrosaria ("ursos de feltro, patos de plástico, pingüins, girafas, sapos"), a julgar que troçavam dele, transtornado com um "panda que pestanejava vagidos mecânicos" e dizia, sem parar, "My name is Jimmy", ao passo que a vendedora, atônita, perguntava-se: "– O que é isto?", enquanto uma "velhota de luxo carregado acompanhada do neto gordo e assustadiço de calções", ordenava: "– Telefone à polícia menina Graciete que é um doido". (OEP, 169)
O humor, portanto, torna-se uma forma de auto-irrisão, método de distanciamento e forma de compensação, o que nos possibilita afirmar o primado do "freudiano princípio do prazer que tenta vingar-se de um adverso princípio da realidade."6
Em As naus, por exemplo, há relatos que configuram o riso libertador e autocomplacente que se sobrepõe a um desgostoso e desgastante real. O casal anônimo, que verbaliza a situação dos retornados de África, após a descolonização, e que se considera "múmias sem préstimo espantadas", torna-se capaz de carnavalizar a situação opressora.
Na ficção de Lobo Antunes, a energia criadora alia-se ao conhecimento técnico das palavras, revelando uma maturidade de escrita absoluta, capaz de comover o leitor, fazê-lo rir e sentir-se cada vez mais perto da vida.
Esta forma cultural portuguesa de estar no mundo revela que o esplendor de Portugal, numa época de "desencantamento do mundo e de desrazão", reside, magistralmente, no espaço da escrita.

Referências bibliográficas
ANTUNES, António Lobo. O esplendor de Portugal. Lisboa: Dom Quixote, 1997.
------. As naus. Lisboa: Dom Quixote, 1988.
BAUDRILLARD, Jean. América. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
REIS, Carlos. António Lobo Antunes. Um romance repetitivo. JL: Jornal de letras, artes e ideias. Lisboa: 705. 22 out-4 nov., 1997.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto: Ed. Afrontamento, 1994.
 Notas
1. REIS, Carlos, António Lobo Antunes – Um romance repetitivo. JL: Jornal de Letras, artes e idéias. Ano XVII, nº 705, 22 de out. a 4 de nov., 1997. P. 24.
2. SILVA, Rodrigues da. Do outro lado do céu... Ensaio publicado no JL, Ano XVI, nº 677, 25 de set. a 8 de out., 1966 sobre O manual dos inquisidores, de António Lobo Antunes.
3. LOBO ANTUNES, António. A constância do esforço criativo. JL, Ano XVI. nº 677, 25 de set. a 8 de out., 1996, p. 14.
4. MATOS, Olgária. Vestígios: escritos de filosofia e crítica social. São Paulo: Palas Athea, 1998. p. 151.
5. BAUDRILLARD, Jean. América. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco,1986. p. 84
6. TEIXEIRA, Rui de Azevedo. A guerra colonial e o romance português. Lisboa: Editora Notícias, 1998. p. 213

por Ängela Beatriz Faria
(UFRJ)
[não datado]

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