Para escrever faz falta vocação animal


Página/12, Argentina - entrevista de Sandra Chaher
05.05.04


Para escrever faz falta vocação animal


Está em Buenos Aires para apresentar na Feira seu último livro, Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo. Mas António Lobo Antunes não gosta de viajar. Diz ser um obsessivo pelo trabalho: escreve catorze horas por dia, seis vezes por semana.

Buenas tardes a las cosas de aquí abajo é o título sugestivo que o português António Lobo Antunes apresentará hoje na Feira do Livro. Pouco propenso a sair de Lisboa, Antunes, que acaba de terminar outro romance, empreendeu uma volta por vários países antes de voltar a enfrentar, em Junho, com o caderno em branco. Prolífico, trabalhador incansável, candidato ao Nobel há anos (mostra-se despreocupado com os prémios, excepto pelo dinheiro que trazem), Antunes desmistifica com o seu calor a fama de carrancudo que o persegue. Boa Tarde... é um romance situada na Angola pós-colonial, onde várias personagens interactuam para falar da identidade, da solidão, do amor, da descriminação e das desigualdades sociais. O cenário não é desconhecido para o autor, que combateu ali como soldado português durante a guerra de independência, nos anos 60-70. Nessa altura, Antunes exercia a sua profissão de médico psiquiatra e, se bem que a experiência naquela frente tenha resultado dura e traumatizante, não sente que o seu retorno a tal cenário tenha que ver com o que viveu.

Trá-lo a Buenos Aires algo mais que a apresentação do livro?
A mim? Em que sentido?

O país, as pessoas, a literatura...
Tenho muita resistência em viajar. Há alguns anos que me falavam em cá vir, mas é sempre complicado porque quando escreves não tens muito tempo. Eu tenho um acordo com os editores para que nas minhas viagens me dêem 4 ou 5 horas por dia para escrever, porque se passas um dia sem o fazer, torna-se muito difícil continuar. Quanto a Buenos Aires, havia coisas que me encantavam, como a música, alguns escritores que descobri quando era adolescente.

Por exemplo?
Uhhh...

Borges seria a resposta habitual.
Borges... Eu nunca fui um grande leitor de Borges porque... é muito inteligente e a mim interessam-me os livros inteligentes, não os escritores inteligentes. Recordo-me de ter lido um livro de Roberto Arlt que me encantou, e Macedonio Fernández. Há um escritor que eu penso que não é muito conhecido aqui e que é muito bom: Manuel Puig. Parece-me que Boquitas Pintadas é muito bom. Aí ele inventou um género novo e fê-lo muito bem. Depois, os seus outros livros são muito parecidos. Humphrey Bogart era sempre a mesma personagem, e quem sabe se não havia nada mais difícil de sustentar que a repetição.

O seu novo livro está situado em Angola, onde esteve como soldado português durante a guerra da independência.
Repara, é um cenário imaginário. Não voltei a África depois da guerra.

Todavia, o retorno literário, teve o sentido de um exorcismo em relação àqueles anos?
(Pensa) Quando escreves tens que plantar o teu romance num território ficcional, e este é uma pais imaginário a que por comodidade chamei Angola. Mas é como a Madrid de Hemingway, que só existe nos seus livros. (Suspira) Queria falar de seitas religiosas, mas o livro mudou de uma maneira muito radical. Inclusive não o ia situar em Angola. Mas não estava contente com os resultados. Reescrevi várias vezes os primeiros capítulos e numas dessas versões subitamente apareceu um negro, e atrás uma mulher, e depois um odor, e assim chegou África. Uma primeira versão é um magma e tens a impressão que o livro está lá debaixo, como uma estátua enterrada num jardim. Tens que limpá-la das folhas, dos insectos mortos. Uma das coisas que aprendi com o tempo é que as primeiras versões contêm toda a solução, tens que trabalhar sobre elas. Eu não queria falar de Angola nem da guerra, o que me interessava era a angústia do homem no tempo: o problema da identidade. Mas mais que os temas, interessava-me ajustar as palavras de tal forma que se tornasse uma coisa física. Não tinha pensamentos abstractos.

Que significa isso?
Lembro-me de Jorge Amado, éramos amigos, e dizia-me "eu invejo-te menino, porque podes trabalhar 12 horas. Eu trabalho 4 e acabo muito cansado fisicamente". Porque um livro é uma luta corporal. Para mim é um sentimento muito físico. Trabalho sem computador, é com a mão, porque gosto de desenhar as letras, há um contacto físico com o papel que também é importante. Penso que um bom escritor não é um homem inteligente, mas sim com vocação animal. E depois tens de estruturar isso, mas nas primeiras versões deves seguir o teu instinto animal, és um carnívoro qualquer que está atrás da sua presa, que é o livro, e ver como o matar bem. Um bom livro é aquele que matas bem.

Poderia explicar a ideia de vocação animal?
É pensar com os sentidos. Porque tu não trabalhas com ideias mas sim com emoções. As emoções são anteriores às palavras, e repto de um romance é como transformar as emoções em palavras quando sabes que, por definição, não são traduzíveis. Só podes começar um romance quando sabes que não é capaz de escrevê-lo, e aí surge a luta corporal.

Quanto tempo leva a escrever um livro como este, tendo em conta esta intensidade?
Uns dois anos, mas isso não quer dizer nada. Stendhal ditou A Cartucha de Parma em 54 dias. Mas eu sou lento, por isso escrevo 14 horas por dia, 6 vezes por semana.

Que faz no seu dia livre?
Na verdade, é a metade do sábado, como os soldados e as empregadas domésticas(risos). O que faço? Coisas que só poderia dizer-te ao ouvido (risos). Repara, quando estás a escrever estás todo o tempo com o livro, és como uma casa com fantasmas. O que faço em geral é sair, jantar com um amigo que trabalha com livros, e vamos a uma livraria, ao cinema. E por volta das 11 horas regresso porque começo muito cedo no dia seguinte. Há coisas importantes: no final do dia não podes deixar uma frase terminada. Tens que deixá-la pela metade, e se possível a meio de uma palavra, assim é mais fácil começar no dia seguinte.

Como foi o processo que o levou a esta forma tão particular da sua escrita: fragmentada, com elipses, com alternância de tempos e espaços, com muita musicalidade? Tem que ver com o seu gosto pela poesia?
Nunca pensei nisso. Estás tão ocupado tentando solucionar os problemas que a obra te planta a cada passo... Fiz alguns romances com estrutura sinfónica, há palavras chave que se repetem, ideias, mas isso eu aprendi... a técnica serve-te para acelerar ou tornar lenta a prosa. Creio que aprendi muita técnica com os músicos de jazz, com Charlie Parker. Creio que aprendi a frasear com eles. Como podes aprender muito sobre a construção com alguns filmes de Fellini, Scorcese, Orson Welles. As minhas referência em geral não são literárias. Não há muitos livros que me interessam. E repara, tu tens que ser discípulo teu. Eu não sei como se aprende a escrever. Fazendo-o o melhor que puderes, porque é uma actividade muito difícil, que conquistas muito lentamente, com muito trabalho. Creio que há que desmistificar os escritores, a literatura é um trabalho. A tua mão fica feliz se trabalhas muito. As duas primeiras horas do dia em geral estão perdidas para mim porque a tua autocrítica está muito alta, e quando começas a estar cansado as coisas saem melhor porque a tua polícia política interior se cansa.

Encontra algum vínculo entre o estado no qual entra a consciência quando baixa a autocensura e para lá da loucura?
Sim, no sentido em que um romance é um delírio estruturado. Um delírio é um edifício lógico no qual a primeira premissa é desejada. Por exemplo: eu sou o rei de França. E a partir desta premissa se constrói um edifício.


edição on-line de Página/12
5 Maio 2004
[traduzido do espanhol por José Alexandre Ramos]

Comentários

artigos mais procurados