Diário de Notícias - DNA, entrevista de Luís Osório - 8 Dezembro 2001


Que farei quando tudo arde?


Não será necessário gastar muitas linhas para apresentar António Lobo Antunes, talvez apenas dizer que esta entrevista foi o resultado de mais de cinco horas de conversa espalhadas por três tardes, horas bem passadas a falar sobre as coisas pequenas e grandes da vida, sobre a felicidade, loucura, literatura, suicídio, sobre o amor pelas suas três filhas e o desamor pelos pais, sobre o comunismo e a classe politica, sobre a guerra colonial e a amizade. Falámos também de literatura, do que ele gosta e detesta. Do seu último livro, claro. Magnífico Que Farei Quando Tudo Arde?, romance difícil que a partir de um universo homossexual toca magistralmente a perversa questão da identidade. Identidade daquelas personagens, mas sobretudo a nossa própria identidade. Falou-nos sobre o que anda agora a escrever. Explicou o que lhe acontece quando não escreve, o que lhe acontece quando tira o aparelho contra a surdez do único ouvido que ainda tem alguma sensibilidade, o que lhe acontece quando fecha os olhos e volta à mata de Angola, o que Ihe acontece quando pensa nos seus mortos, o que lhe acontece quando pensa no seu próprio fim.

Aos 59 anos, António Lobo Antunes publicou 15 romances traduzidos em dezenas e dezenas de países. Todos os anos o seu nome é falado para o Nobel da Literatura. Todos os anos aumentam as vendas e os seus admiradores. Diz-se que Mario Vargas Llosa tem a sua fotografia no escritório.

Foram três tardes. Ao Augusto Brázio, que lhe mostrou imagens, leu poesia. A mim, deu-me conselhos para a vida. Esperemos que fique a conhecer mais o homem do que o escritor, mais o que tem dentro do que as máscaras que utiliza para disfarçar a timidez, mais a inquietude do que a arrogância do personagem. Esta é uma entrevista com um homem que continua à procura de um sentido para a vida, um homem igual a tantos outros. Talvez mais próximo da genialidade do que a larguíssima maioria, mas também muito mais perto do sofrimento.


Vou ligar o gravador para depois, com o tempo, nos podermos esquecer dele.
Está bem. Falávamos de desamparo, de solidão, da minha solidão e do meu desamparo. Sempre tive uma vida muito sozinha, isso defende-me um bocado. É claro que aos 18 anos achava que sabia tudo sobre a literatura e sobre a vida, com os anos percebi que não sei absolutamente nada. Escrevo cada vez mais, escrevo quase compulsivamente... Agora, mesmo antes de chegar, estava para ali às voltas com a imortalidade.

Com a sua imortalidade?
Com a minha não, com a minha não. Às vezes, muitas vezes, sinto que devia aprender a não escrever, espero que isso me seja possível. O intervalo entre os livros é cada vez mais difícil de suportar, são intervalos muito penosos. E claro que as pessoas são muito gentis comigo, ainda agora em Espanha a recepção que me fizeram foi impressionante e comovente. Tanta gente, tanta gente... Uma pessoa fica aflita com tanta generosidade, fica aflita quando de repente pessoas que não conheço e que falam uma língua diferente da minha me pedem para continuar a escrever, para não parar.

Tem mesmo a intenção de parar?
Escrever mais dois livros e parar. É a minha ideia. Não concebo viver sem escrever, mas julgo que romances não escreverei mais. A maioria dos escritores, a dada altura, limita-se a apodrecer, esse apodrecimento acaba por pôr tudo o que fizeram antes em causa. Por vezes, sinto-me a rapar o tacho e não quero que isso aconteça. Porventura tenho que aprender a não escrever para descobrir múltiplas outras coisas, descobrir coisas que me apeteçam fazer.

O que Ihe apetecia fazer agora?
Ir a um quiosque comprar um livro policial. Depois talvez me sentasse numa paragem de autocarros suburbana, naquelas paragens em que param os autocarros que seguem para Lisboa... Sim, apetecia-me ficar para ali sentado. As pessoas entram, as pessoas saem e vou-me abandonando. Gosto dessa sensação. Todos os dias fico meia-hora na casa de banho sem fazer coisa nenhuma. Não tomo banho, não me barbeio, simplesmente estou sentado, mais nada. Os pensamentos não são claros, mas tenho a sensação que programo o resto do dia nessa meia-hora em que olho o tecto e as paredes.

Já não exerce a psiquiatria a tempo inteiro, mas continua a ir duas vezes por semana ao Hospital Miguel Bombarda. Para manter contacto com a realidade?
Não, não. Ainda sigo alguns doentes e isso dá-me muito prazer.

Que tipo de prazer?
O de ser imediatamente útil. Sabe que no hospital tive a maior lição sobre o que era viver, a maior de todas as lições. Um doente disse-me assim: «Sabe doutor, o mundo foi feito por trás». Na altura não liguei, mas hoje acho uma ideia espantosa. Na literatura e fora dela. Temos de escrever por trás para não estarem visíveis os pregos e as costuras, isso talvez seja o mais difícil porque é grande a tentação de mostrar tudo pela frente. Julgam, e também eu já o julguei, que assim as suas habilidades ficam à mostra, normalmente não percebem que é o leitor que constrói o romance. Sim, no hospital sinto-me útil. Na escrita a utilidade é uma dúvida permanente.

As dúvidas, quando são muitas, podem levar-nos ao hospital onde se continua a sentir útil.
A loucura varia muito. De norma para norma, de cultura para cultura. Aquilo a que os médicos chamam loucura não é mais do que algumas coisas que existem dentro de nós mais desenvolvidas. Por exemplo: o que é a timidez?

É o medo de sermos rejeitados pelo outro.
A timidez é a sensação de que estamos a ser olhados e que estão a reparar em nós. Num grau mais elevado deixa de ser timidez e passa a auto-relacionação, um dos sintomas da esquizofrenia. Todos os sintomas das doenças mentais acabam por não ser mais do que coisas comuns amplificadas, os médicos criam a norma clínica e consideram em alguns casos que determinados sintomas são desviantes da norma clínica que eles próprios criaram. Se estiver excepcionalmente bem disposto corre o risco de o rotularem com uma qualquer doença e dão-Ihe remédios para atenuar essa sua boa disposição.

A loucura varia então de médico para médico.
Julgo que sim. A loucura é exceder os limites impostos pelos médicos, limites que variam muito de caso para caso. O meu amigo Daniel Sampaio tem um patamar de tolerância muito maior do que a maioria, nunca o ouvi usar o termo normalidade. Mas a minha experiência clínica é diminuta, nunca quis ser psiquiatra nem tirar o curso de medicina, sempre quis escrever. Perguntam-me na maior parte das entrevistas se me inquieta a loucura, seria muito mais interessante perguntarem-me se me inquieto com o tempo que tenho à frente... Por um lado a única coisa que temos é o tempo, mas por outro cria-me uma espécie de angústia que tento preencher trabalhando. Talvez seja a razão porque trabalho tantas horas: fintar a angústia crescente.

É por isso que as pausas entre livros são penosas.
Sinto-me infiel e culpado quando não escrevo, não sei em relação a quê ou a quem. Nestes últimos dias passados fora de casa estive sempre a roubar tempo para voltar ao quarto do hotel... Eram recepções, homenagens, conferências de imprensa, sessões de autógrafos e eu sempre a pensar no momento em que o elevador me levaria de volta à minha solidão, mais nada.

Mas nunca lhe apetece fazer outras coisas?
Apetece-me sempre fazer outras coisas, mas isto tornou-se uma obsessão. A minha vida faz pouco sentido fora da literatura... Creio que é um pouco assim em relação à maioria das pessoas, o trabalho é a única forma de realização possível. Tudo o resto é secundário em relação ao trabalho, mesmo a actividade sexual.

E onde coloca o afecto?
Sou uma pessoa muito reservada. Não falo da minha vida privada e dos meus sentimentos, mas não é por ter escolhido ser assim, entristece-me tanto ser assim. Sou assim por causa da educação que tive e pelos problemas que tenho em manifestar afectos, problemas meus. Não falo muito destas coisas nas entrevistas, porque tenho receio da forma como é tratado o jogo entre as perguntas do entrevistador e as minhas respostas. Uma boa entrevista é sempre uma peça de ficção, o jornalista cria uma personagem que é o entrevistado, talvez hoje possamos ir por aí. Mas hoje quase tudo é ficção, as próprias editoras entraram por aí. Com a pressa de vender livros à força publicitam essas meninas todas que por aí andam a escrever e os jornais misturam os que têm qualidade com o que é reles. Essas meninas, esses livros, são reles. Assim como algumas más entrevistas.

É comum dizer-se que António Lobo Antunes é arrogante e vaidoso. O traço da personagem não corresponde à forma como olha.
As pessoas criaram uma ficção e agora é difícil esbater essa ideia. Durante anos, mesmo em relação a jornalistas, tentaram à força colar-me a imagem que imaginavam que eu fosse, ainda agora. Na sessão de autógrafos do lançamento deste livro escreveram-se coisas que eu não disse, coisas totalmente fantasiosas.
  
Quando se faz um pacto com a fama paga-se sempre um preço.
Não acho grave, surpreende-me apenas. Sou arrogante, mal educado, rebelde, geralmente sou sempre o António Lobo Antunes somado a qualquer coisa desagradável. Não corresponde a nada do que sou, a nada. No estrangeiro, o espaço toma o lugar do tempo. Essa circunstância faz toda a diferença: as pessoas vêem-me com uma distância impossível de conseguir em Portugal, aqui as pessoas confundem a imagem que têm de mim com o meu trabalho. Há sempre esta confusão, esta confusão entre a pessoa que criamos dentro de nós e o trabalho produzido. É fácil etiquetar as pessoas e muito difícil mostrar a nossa verdade. Já reparou que costumamos etiquetar as pessoas pelos seus defeitos físicos? É a critica mais reles que se pode fazer a uma pessoa porque estamos a falar daquilo que elas não têm culpa, criticamo-las pelos nomes que têm ou porque são demasiadamente feias ou gordas ou bêbadas ou fascistas.

O caso do seu grande amigo Melo Antunes é bastante claro sobre o que disse há pouco. Para a direita era visto como um comunista, para os comunistas como um perigoso fascista.
Lá estão as etiquetas da ficção. Na verdade não passava de um homem livre e independente, mais nada. Geralmente não se perdoa a um homem livre e independente. Aí sim, paga-se sempre um preço e ele pagou-o até ao fim.

Conheceu-o em Angola, durante a guerra colonial.
Jogávamos xadrez antes dos bombardeamentos. Eu não gosto de falar da guerra, nunca falei da guerra numa entrevista, custa-me, sabe. Jogávamos xadrez antes dos bombardeamentos, antes do anoitecer, de vez em quando líamos poesia um ao outro. Foi o homem mais corajoso que conheci na frente de combate... Uma ou duas vezes vi-o, no rescaldo dos confrontos, a passear nas trincheiras com uma lanterna, uma ou duas vezes vi-o a servir de alvo. Um dia perguntei-lhe porque o fazia, ele que era geralmente tão cuidadoso com a vida dos homens, e disse-me assim: «Sabes António, é que às vezes apetece-me tanto morrer». Era um homem livre o Ernesto, talvez o único homem com quem podia estar uma tarde inteira sem dizer uma palavra, numa espécie de pacto de silêncio. Sabe que nunca falámos da guerra? Nunca, nunca.

E quem ganhava ao xadrez?
Ganhava-me nove em cada dez jogos. Tenho impressão que, de quando em vez, me deixava ganhar. Era um homem aparentemente muito distante e frio, quem o conheceu sabe que isso não correspondia à figura.

Já falou um pouco sobre a guerra.
Falei sobre o Ernesto Melo Antunes, é diferente. Sobre a minha guerra? Há uns anos vi um filme português acerca da guerra colonial e, a dado passo, os soldados falavam da Pátria, da injustiça da guerra e do colonialismo. Coisa absolutamente imbecil e falsa, nada mais falso do que isto. Na guerra estamos apenas preocupados em chegar ao dia seguinte, não havia considerações adicionais para quem se encontrava nas frentes de combate. Estávamos presos, como um bicho na terra, à tentativa desesperada de chegar ao dia seguinte. Queria lá saber do colonialismo, queria lá saber da democracia, queria lá saber do socialismo. O próprio Melo Antunes, ultra-politizado e que combateu a guerra antes e depois de lá ter estado, nunca disse uma palavra durante o tempo em que chefiou o meu batalhão. O erro formidável era estarmos ali, nós estarmos ali, não havia mais nada senão o desejo de voltar a casa.

Mas diziam poesia um ao outro.
Como forma de não ficarmos totalmente alienados. É tão penoso falar sobre isto, talvez possamos ficar por aqui. Senão já sei: durante uns dias não encontro concentração para escrever.

Continua a ser-lhe difícil voltar.
Tanto ou mais do que antes.

Durante aquele tempo, à semelhança de Melo Antunes, também Ihe apeteceu morrer?
Nunca me passou isso pela cabeça, queria viver. Voltar inteiro.

E hoje, António?
Continuo a querer viver, apesar de tudo.

Apesar da falta de sentido da vida?
A vida faz-me sentido enquanto trabalho.

Só enquanto trabalha?
Fundamentalmente enquanto trabalho. O Daniel Sampaio, que é meu médico, diz-me que sou auto-destrutivo com tendências suicidárias. De há três anos para cá, quando me começaram a acontecer coisas muito más na minha vida, talvez isso se tenha acentuado, não sei. Mas quero viver, quero viver. O Reinaldo Arenas, de quem era muito amigo, telefonou-me uns dias antes de se suicidar com o objectivo de se despedir de mim. Não me passou pela cabeça que o pudesse fazer, para falar verdade não lhe liguei nenhuma.

Se alguma vez pensasse fazer o mesmo tinha muitas pessoas a quem telefonar?
Se alguma vez pensasse fazer o mesmo não telefonaria a ninguém. Mas os livros dão-me sentido à vida, o desafio de lutar contra um material que se revolta contra mim, a escrita deste último foi nesse aspecto muito complicada. Já o leu?

Gostei muito.
Foi um livro tremendo. Nada sabia sobre o mundo da droga, da homossexualidade, dos travestis. Inventei tudo e o problema foi escrever as coisas com a mesma intensidade com que as fui sentindo dentro de mim. Gostava profundamente de todas aquelas pessoas, percebe isto, Luís?

E o contrário acontecia, António? As pessoas que habitavam as suas páginas gostavam de si?
Isso já não sei, não me importa. O importante é que eu gostava delas, o importante é que as tornei vivas em mim – aquela mãe, aquele pai, o rapaz, o namorado do pai. Tudo pessoas por quem tinha um extremo afecto, fui muito sensível ao sofrimento daquele travesti e o que aquele homem sofreu! O livro está muito substantivo, não tem adjectivos ou advérbios, gostava profundamente dele, um amor tudo menos triste.

Não considera este livro triste?
Nada triste, nada desesperado. O livro é sobre a procura da identidade, mas a procura da identidade é algo que nos acompanha toda a vida. Quem sou eu? Quem são os outros? Quem sou eu face aos outros? É um jogo de espelhos, mas o problema é que todos os espelhos são ligeiramente deformados, quanta mais não seja somos canhotos nos espelhos, não somos completamente nós. Para escrever seja o que for, mesmo que seja um atestado médico, é fundamental medir bem as palavras. O Alexandre Herculano dizia em relação ao Almeida Garrett que este era capaz de todas as porcarias, menos de uma frase mal escrita. Esta frase definia um e outro. Mesmo as pessoas que escrevem para os jornais, que no dia a seguir servem para embrulhar o peixe frito, devem medir as palavras por respeito à língua e a nós mesmos.

Gosta de muitos escritores Portugueses?
Há dois ou três escritores com qualidade, já não é mau. Não há exigência, não há rigor, as pessoas não têm um sentido ético da vida e muito menos um sentido ético do seu trabalho. Estou a falar no geral, mas desta generalização não excluo os escritores. O mais difícil de suportar, para isso não tenho mesmo paciência, é o mau carácter e a desonestidade. Não suporto os plágios descarados, os livros medíocres exaltados pelos jornais e revistas cor-de-rosa, tudo isso é miserável, é pequeno e é reles. Para fugir à verdade tudo isso é, também, universal.

Acredita mesmo que a vida se justifica através dos livros?
É a única coisa que vai ficar de mim, pelo menos durante algum tempo.

Por muito tempo?
Muito tempo é sempre pouco. De qualquer maneira, já não estarei cá para saber. Nós morremos quando desaparecem as últimas pessoas que ouviram falar de nós.

A imagem que vai deixar nas suas filhas é diferente da que vai ficar em si quando os seus pais morrerem?
Espero bem que sim. Até porque a imagem que tenho dos meus pais não é muito positiva. Tenho, cada vez mais, tentado ser uma referência e um abrigo onde elas podem voltar sempre. Nunca lhes faço perguntas, mas oiço com a maior atenção o que elas me querem contar. Quero deixar-lhes uma imagem diferente da que os meus pais me deixaram, não me deixaram nenhum vinco na alma, nenhum. Ficaria muito triste se tal acontecesse com as minhas filhas e os meus amigos, gostaria que se lembrassem de mim com alguma saudade, saudade que não sei se terei quando os meus pais morrerem. Ternura é um sentimento que nunca associei aos meus pais, não me lembro, nunca, nunca, de a minha mãe alguma vez me ter beijado. Tive extrema ternura por tias minhas, pelo irmão mais velho da minha mãe, tenho muita pena de não sentir isso pelos meus pais. Mas isso não os desvaloriza, é apenas um sentimento que tenho em relação a eles, nem sequer construí a minha vida contra eles, construí-a de costas voltadas para eles. Nunca houve respostas às minhas perguntas, os pais devem sempre dar respostas mesmo quando as perguntas não são correctamente formuladas. «não podes meter o dedo na ficha. Por que é que não posso meter o dedo na ficha? Porque dá choque. O que é um choque? Com um choque podes morrer. O que é morrer?» Começavam aí os problemas.

O que respondeu às suas filhas quando Ihe perguntaram o que era morrer?
Nunca me perguntaram. Infelizmente para elas tiveram que viver com isso muito mais cedo do que seria desejável, mediante essa realidade não há perguntas.

Há silêncio.
Há tantas coisas. Perguntas não. A morte das pessoas de quem gostamos amputa-nos. De certa forma continuamos nas pessoas de quem gostamos, nos livros de que gostamos, nas cidades que amamos. Felizmente os nossos limites não são os do nosso corpo, guardamos por isso as coisas que nos dizem algo. Enquanto viver, as pessoas de quem gostei vivem aqui dentro, sinto que estou a viver por mim e também por elas. Para onde o Luís for os seus filhos vão consigo, sempre. É muito bom sabermos que não acabamos onde acaba o corpo.

De todos os seus mortos quem está mais vivo aí dentro?
Continuam todos tão vivos como os vivos. É como os livros, como as pessoas que fiz nascer nos livros. Têm muito a ver com a altura em que os escrevi, tudo a ver com a circunstância de estar feliz ou infeliz, mais apaixonado ou menos apaixonado. Na adolescência as minhas leituras eram influenciadas pelas doentias paixões que me chegavam a debilitar fisicamente. Mas as meninas eram substituídas por outras meninas, as outras meninas substituídas pelas actrizes de cinema, as actrizes de cinema substituídas pelas raparigas dos calendários, as meninas dos pneus Pirelli. A atracção pelas mulheres é muito precoce, mais do que os pais podem imaginar...

Eis um território que talvez o tenha unido aos seus irmãos.
O território da sedução e da paixão por mulheres? Não, não. Eu não estou distante nem perto deles, são meus irmãos. A gente não escolhe a família, tenho uma relação cerimoniosa com eles, uma boa relação cerimoniosa mas sem intimidade. Não posso dizer que os conheço muito bem, posso dizer que gosto deles e que me são agradáveis.

Não costumo fazer este tipo de perguntas, mas desta vez não resisto. Qual é a sua definição de felicidade?
São momentos. Há alturas de um enorme bem-estar, também não me parece que haja momentos de grande infelicidade, a não ser que as vidas sejam absolutamente dramáticas. Houve uma altura em que a minha surdez me fez infeliz, agora até isso foi ultrapassado. Há anos que não sei o que é um som natural, a voz que oiço não é a sua voz porque está multiplicada por 20 mil decibéis. No restaurante oiço as conversas todas, sem o aparelho não oiço absolutamente nada. Vivi extremamente infeliz nos primeiros tempos, infeliz com o facto de ser um aleijado, mas até isso passa. Se não fizerem um aparelho mais potente ficarei sem ouvir dentro de um ano ou dois, o que quer que faça? Ao princípio irritava-me muito perceber que as pessoas falavam mais alto e que se aproximavam para que as percebesse...

Encontrou o silêncio da pior forma possível, o que não deixa de ser irónico para quem sempre o procurou.
Não me dou mal com a mudez total. Cai uma coisa e eu não sei que a coisa caiu porque não ouvi barulho algum. Sem o aparelho não oiço nada, nada de nada. Recusei-me a ir ao médico porque não queria admitir a minha surdez, durante três anos não usei aparelho e especializei-me naqueles sorrisos ausentes. Quando as pessoas me falavam fazia o tal sorriso ou dizia que sim, percebia lá o que as pessoas me estavam a dizer.

Podia ter frequentado aulas que o ajudassem a ler nos lábios.
Cheguei a frequentar essas aulas, enfim. As pessoas que me rodeiam não ligam muito, se calhar fingem que não ligam muito para não me magoar. A maioria de nós quando olha para um coxo tenta que o coxo não perceba a anormalidade do nosso olhar, talvez tentem fazer o mesmo comigo.

Voltando ao início da conversa. Quando é que esteve sentado numa paragem de autocarro pela última vez?
Foi neste Verão, na praia das Maçãs. Todas as tardes sentava-me para ali, gosto de estar sentado a olhar para as pessoas.

E as pessoas olhavam para si?
As pessoas tinham mais que fazer do que estar a olhar para mim. Geralmente, um anão fazia-me companhia, até fiquei com vontade de escrever um livro chamado «Todos os Anões Choram Baixinho». Ali estávamos os dois. Um anão de gravata e de bengala, mais uma cadela piolhosa e chata. Estávamos para ali os três.

Ele também observava as pessoas?
Não sei. Ver o movimento nas paragens de autocarro equivale um pouco à meia-hora que passo sentado no bidé antes de todas as coisas começarem a acontecer. É como a arte de governar.

A sua meia-hora no bidé?
Sim. A arte de governar é feita sobretudo de nada fazer. As decisões são muito poucas porque, na maioria das vezes, as coisas resolvem-se por si. Nos Estados Unidos, na Alemanha ou na Suécia ninguém foge aos impostos porque sabem onde o seu dinheiro é investido pelo Estado, podem escolher inclusivamente o destino do seu dinheiro. Aqui os nossos impostos servem para engordar e dar automóveis aos partidos que estão no poder, obviamente as pessoas fogem aos impostos, enfim...

Continua a definir-se como um homem de esquerda?
Sou um homem de esquerda profundamente desiludido com a esquerda. Nos valores fundamentais continuo a sê-lo. Mas quando se aproximam eleições é sempre muito difícil escolher o sentido de voto. Vou votar em quem? No Partido Socialista? Este PS não me interessa. Nos comunistas? Este PCP não me interessa. Os socialistas não são socialistas e o marxismo não é mais do que uma heresia do judaísmo, tal como a psicanálise. Não é por acaso que Marx e Freud são judeus, como é evidente. O marxismo é uma religião em que o paraíso já está prometido à partida, não existe nenhuma diferença entre isso e a mais reaccionária das igrejas. Claro que tudo irá passar, claro que o marxismo e a psicanálise irão passar, claro que o próprio cristianismo irá passar, tudo acaba sempre por passar...

As folhas espalhadas em cima da mesa são as ideias para o novo romance?
Já o estou a escrever. É sobre quatro mulheres. Percebe alguma coisa de mulheres?

Cada vez menos.
Está com sorte. É que eu nada percebo das mulheres. O que sabe um homem sobre as mulheres? É para mim um grande desafio, o desafio de não cristalizar em formas que dão sucesso à partida. Teria sido muito fácil continuar a fazer Memórias de Elefante, iria ter muito sucesso, mas o que ficaria cá dentro? Claro que há uma marca de água na minha escrita, essa fica sempre. Perguntou-me se não acho o Que Farei Quando Tudo Arde? um livro triste, respondi-lhe que não. Mas se nos encontrarmos daqui a algum tempo não Ihe vou poder responder o mesmo em relação às folhas que vê em cima da minha mesa, será um livro muito pesado.

Passa-se onde?
Em Angola, é um regresso a África. Gostava imenso de ser angolano, se me dessem a nacionalidade angolana aceitaria de bom grado. É um país com um cheiro único, um país onde a alteração dos sentidos é constante. Durante a guerra vivi em circunstâncias horríveis numa espécie de paraíso único, até as grandes tempestades eram grandiosas. É muito habitual dizer-se que o nosso colonialismo era brando, era brando o tanas, eu vi coisas atrozes. Se fosse angolano nunca teria perdoado a Portugal, vi coisas horríveis e o espantoso é que não tenha ficado ódio da parte deles. A discriminação era total, total. Há pouco tempo houve desmentidos, por parte de altas instâncias militares portuguesas, sobre a utilização de napalm durante a guerra colonial. São mentirosos porque eu vi o napalm, o napalm estava onde eu estava, eu vi-o. Vi bombardear com napalm e vítimas do seu uso, testemunho isto em qualquer tribunal. Ninguém foi condenado por isso, absolutamente ninguém. Todos os meus companheiros de batalhão o sabem. Justificamo-nos com o que fizeram o MPLA e a UNITA, mas nós fizemos coisas horríveis. Falo da UNITA, mas na UNITA limitavam-se a trabalhar com a PIDE, eram pagos e treinados pela PIDE.

Parece ainda estar ressentido.
Não com os militares. Não tenho a menor razão de queixa de nenhum oficial do exército, era um alferes como outro qualquer e foram impecáveis comigo. Corajosos, correctos e limpos comigo, todos os que conheci. Não partilho das críticas que se fazem aos militares, que são estúpidos e ignorantes, não corresponde nada ao que penso. Os militares no terreno nada tinham a ver com a polícia política, a PIDE matava os prisioneiros e nunca vi o exército matar um único prisioneiro. Um dia apanhámos um grupo de gente onde se incluía uma mulher grávida... Antes de mais nada um PIDE deu um pontapé na barriga da mulher e o Ernesto Melo Antunes apontou-lhe a pistola e mandou-o voltar. Dois dias depois foi transferido para outro comando. Isto passava-se na zona militar leste e o comandante era o General Bettencourt Rodrigues. Havia um posto militar da PIDE em Gago Coutinho, onde pela janela via torturar pessoas de uma maneira horrível, era a mulher do inspector que Ihes punha eléctrodos nos testículos, estavam ajoelhados em cima de umas varinhas de ferro com os dedos por baixo e os joelhos por cima. Toda a guerra é suja e aquela guerra foi horrivelmente suja, de parte a parte é claro. E esta violência continua a existir agora, de outras formas certamente mais subtis.

Que tipo de violência?
Na forma como se manipula, nos telejornais, nos jornais. Não estou a falar de imagens violentas que possam incomodar o normal desenvolvimento das crianças, nada disso, estou a falar da parcialidade e da manipulação. Somos, a maioria de nós, profundamente assassinos e violentos. Apesar de tudo, havia alguma nobreza na guerra: encontrávamos brancos e pretos, sem mais cambiantes. De que livros gostamos mais? Dos que são brancos ou pretos. Nos programas, a que chamam reality shows, o público e os concorrentes não se dão conta de que são manipulados da mais nojenta das maneiras... Estes programas vêm de encontro a um imaginário pobre, acontece o mesmo com alguns livros de grande sucesso. Isso entronca-se com a distinção entre o ser-se de esquerda ou de direita, o respeito pela dignidade de todos os homens. Conheço pessoas de direita profundamente humanas, o José Ribeiro e Castro por exemplo. A bondade, quando a encontro, surpreende-me e alegra-me. Quando encontramos pessoas tão melhores do que nós é um privilégio muito mais importante do que fazer bons livros. Claro que há obras que ficam para sempre, mesmo quando os seus autores não passavam de pulhas - o Wagner, por exemplo.

Casou-se antes de ir para a guerra e a sua primeira filha nasceu quando lá estava.
A meio da minha comissão voltei a Lisboa e foi o mês mais horrível da minha vida. Passava os dias a pensar que faltava cada vez menos tempo para regressar ao campo de batalha, passei a maioria do tempo deitado a olhar para o tecto porque o tempo estava a passar. Não usufruí da minha filha e não há nada de mais extraordinário do que os nossos filhos quando são pequenos. Os nossos filhos não são de ninguém, mas são mais nossos do que dos outros. Não tirei partido da bebé nem da mãe da bebé, não tirei partido de nada. Depois, aqui em Lisboa ninguém falava da guerra, é como se nada estivesse a acontecer. Se a sensação dos condenados à morte corresponde ao que senti, então é atroz.

Que António Lobo Antunes tem estado à minha frente? Parece-me que durante todas estas horas a pessoa foi ganhando espaço à personagem.
O que Ihe posso dizer? O António Lobo Antunes só existe enquanto escreve, eu sou simplesmente o António. Gosto de estar aqui, tem-me apetecido estar aqui estas horas.

Gosta de si?
Nunca me coloquei essa questão. Tenho que viver comigo, direi que não me aborreço. Estou mais preocupado com os outros, com os meus amigos que tanto prezo. Não tenho alguns defeitos: não sou invejoso, não sou pulha, não sou mal formado. Dos defeitos, enfim, dos defeitos...

É inevitável que morremos sempre sozinhos...
Absolutamente.

Mas nesse momento gostaria de ter alguém por perto?
É impossível responder a isso, é impossível saber como nos vamos comportar. A forma como lidamos com o fim é muito judaico-cristã, muito ligada à ideia do cadáver e do horrível ritual da morte. Tentei sempre, em relação aos meus mortos, guardar a imagem da pessoa viva, nunca os quis ver depois de terem morrido. Estou arrependido por ter visto a minha avó, agora lembro-me dela morta quando preferia lembrar-me dela viva. Era assim que gostava de ser lembrado, vivo e não deitado no caixão, onde nada parece que nos assenta bem.

Como é que a sua avó se chamava?
Avó Margarida, a mãe da minha mãe. Essa sim, deixou-me um vinco na alma. As pessoas tocam-nos com um dedo e fica uma nódoa negra, a mais leve impressão deixa
uma nódoa negra que não passa, mesmo quando do contrário estamos convencidos.

António, que fará quando tudo estiver a arder?
Tudo arde desde o princípio. Em mim e nos outros.


Diário de Notícias
08.12.2001

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