Conhecimento do autor


SIC Notícias - entrevista de Rodrigo Guedes de Carvalho
Dezembro 2003
[a entrevista foi transcrita através do formato original, tendo sido mantidas, tanto quanto foi possível, algumas das particularidades orais de uma entrevista de televisão]


Conhecimento do autor


Conhecimento do autor: é o que aqui se vai tentar. Lobo Antunes é pouco dado a grandes explicações sobre o que escreve; costuma dizer que os seus livros vivem sozinhos e é aí que o devemos procurar, nessa impressionante regularidade de produção. Com este [mostra a capa do romance Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo] que hoje se apresenta, são já dezasseis romances em vinte e quatro anos, isto para além das crónicas na imprensa que estão agora também reunidas em dois volumes. Imensamente traduzido por esse mundo fora, longamente sussurrado para o Nobel, recebe dentro de dias o prestigiante Prémio União Latina. É um bocadinho da dimensão internacional que nesta altura já não surpreende ninguém; ele que tanto foi arrasado pela crítica em início de carreira, é hoje uma figura perto do consensual. Pegando então em Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo, começo por dizer boa noite ao escritor aqui em frente.


António, normalmente as perguntas que os jornalistas fazem aos escritores que lançam um livro novo é essa incauta "de que trata o seu livro?". Porque é que você não gosta nada desta pergunta?
Porque se fosse possível resumir em dois minutos de que trata o livro não era necessário escrevê-lo. Eu lembro-me sempre de uma... D. Francisco Manuel de Melo, que é um escritor que gosto muito, séc. XVIII, que a resposta dele foi... a única resposta possível... ele disse «o livro trata do que vem escrito dentro». Porque... aquilo que tu podes contar é a intriga, a história, e a intriga acaba por ser o prego onde tu penduras o teu quadro, aquilo que te preocupa muito mais são outras coisas do que propriamente a história.

E continua a ser assim, consigo. Cada vez mais, assim?
Cada vez mais assim, cada vez mais assim, sim...

Mas é natural quando pensa nos leitores que tem - uma pessoa que vende tanto nesta altura deve ter um número de leitores, e um tipo de leitores, muito diversificado - é natural que as pessoas perguntem: que é que será este livro? Este livro, não sendo só isso, tem um pano de fundo novamente em Angola.
Sim, tem um pano de fundo na... numa Angola inventada, porque eu nunca mais voltei a Angola, não é uma Angola actual, de agora, que eu não faço a mínima ideia como é... mas, sabes, o problema é este: para escreveres um livro tens de criar um território ficcional onde plantar o livro e... como o Faulkner criou o condado de Yoknapatawapha, o Melville criou o seu próprio mar; portanto, quer Lisboa, quer o Portugal, quer Angola, que aparecem nos livros, são territórios míticos, não é? Do qual provavelmente só guardam o nome inicial, depois o resto...

Mas Angola, para si, não é igual à Guiné, não é igual a Moçambique, não é igual a outro país nenhum...
...que eu não conheço! Eu só apenas conheço Angola, é o único país africano que conheço. Mas, no entanto, já houve livros, estou-me a lembrar de Fado Alexandrino que se passava... pois, tinham estado em Moçambique... Portanto, são apenas territórios ficcionais onde tu tentas colocar toda a tua realidade e toda a humanidade que tens dentro de ti.

E, no entanto, neste território ficcional, há um excesso de pormenores, da tal intriga que está em segundo plano, mas há tráfico de diamantes, tráfico de influências... Para nada disso é preciso documentar-se...
Tinha sempre medo porque me lembrava sempre de um escritor que eu respeitava muito, que era o Alves Redol, e conheci muito mal, apenas o entrevi quando era estagiário no Hospital Santa Maria, e ele estava a morrer, na fase terminal de um cancro nesse hospital. Para mim foi uma emoção muito grande ver um escritor que eu respeitava numa cama de hospital... Bom, o que acontecia é que documentava-se de tal maneira que ficava submerso pela documentação... e era-lhe muito difícil depois voar com aquilo que tinha. Eu nunca... nunca tomei notas, nunca tomei qualquer documentação que não fosse aquela  estritamente... claro que tomas notas enquanto estás a escrever, mas mesmo assim são muito poucas.

E não é um risco neste país onde há pessoas tão comezinhas, a ler estas coisas, que vem um tipo qualquer a dizer: "Eh pa, mas na Baixa do Cassanje nunca se passou situações de tráfico", ou não sei quê... Isso, para si, é completamente irrelevante?
Em relação... já me aconteceu dizerem que lugares que eu falo não são assim, etc. Até receber inclusive cartas a esse respeito. Lembro-me de uma crítica em relação a um livro qualquer em que aparecia a personagem de Salazar, que dizia que o Salazar nunca tinha estado em Palmela, o que é mentira, porque há fotografias dele lá, nessa casa. Agora... sabes, é-me completamente indiferente, a mim o que me interessa é a qualidade do texto.

E que no romance seja plausível?
Nunca pensei muito nisso...
[risos]

E continuas a não pensar... felizmente.
... nunca pensei muito nisso...

Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo é um título que à partida pode causar estranheza, ele vem explicado logo aqui [primeiras páginas], tu retiras uma frase a um romance do Vila-Matas, que é uma personagem que já não diz coisa com coisa e então diz "Boa tarde às coisas aqui em baixo". Diz o Vila-Matas que é uma frase intraduzível. Gostas que digam que os teus livros são intraduzíveis, também - não para o estrangeiro, disso já falaremos - mas, que sejam inclassificáveis?
São-no sempre, são sempre... O problema tem que ver com a forma como nós abordamos os livros, nós temos de ler... nós temos tendência a adaptar os livros, como a vida, à nossa grelha, ou seja, a soma das nossas experiências, nossas vivências... daquilo que nos aconteceu, que vimos, que observamos, que ouvimos, e... temos que partir para os livros com os olhos desprevenidos, temos que partir com uma certa virgindade no olhar, e tentar... O livro traz consigo o seu modo de usar, as suas instruções... e de qualquer forma... eu penso que isso acontece com qualquer profissão... tu tens que ensinar os teus leitores a lerem-te, tens que ensinar os teus leitores a lerem-te...

Sim, e num escritor como Lobo Antunes, como mais à frente se verá, sem dúvida, porque há um jornalista do Le Figaro que diz uma coisa bastante interessante sobre a tua obra... De qualquer forma, este regresso a África, sendo apenas o pano de fundo, é num tom magoado, esta é uma África estragada, é corrupta, parece que não se vai conseguir levantar...
Eu penso que não é preciso ir a África para encontrar corrupção. A mim o que sempre me chocou, em relação a Angola, é o contraste entre a riqueza do país e a pobreza das pessoas. Eu acho que as pessoas são pobres, porque o país é extremamente rico. Lembro-me que se semeava arroz três vezes ao ano e arroz [com] três metros de altura; portanto, não é só a terra que é extremamente rica, são os diamantes, o petróleo, os minerais, etc...

Mas antigamente existia o álibi, chamemos-lhe assim, da guerra. O país não podia ir para sítio nenhum por causa da guerra. Nesta altura não acreditas que esta paz possa trazer outro país, uma Angola a que te apeteça voltar, por exemplo?
Eu não sei muito em porque é que vol... Uma das razões porque não volto é porque as cidades que eu gostava ficaram destruídas pela guerra civil e eu não sei se estão reconstruídas, e depois porque nós tentamos... nós, europeus, a agora os americanos, que acabam por ser filhos dos europeus, tentar impor aquilo a que eles chamam um modo de civilização e um modo de ser que nada tem que ver com o modo de ser africano, compreendes? Eu lembro-me, quando lá estava, por exemplo, de o meu colega feiticeiro curar a icterícia, a hepatite, em dois dias. Dois dias e a icterícia desaparecia, os sintomas desapareciam. Estou-me a lembrar nomeadamente de um homem que tinha sido atacado pela pacaça, com feridas muito grandes, e aplicaram-lhe uma espécie de um emplastro, a mim me parecia cheio de terra e de ervas, e pensei: "este homem vai morrer de septicemia", e numa semana estava curado. Havia lá, por exemplo, padres bascos que lá estavam e que tinham feito recolhas, apreendidos pela polícia política, de poesia, de contos, de provérbios de uma extraordinária riqueza. Portanto, havia uma civilização imensa, que o Melo Antunes dizia, sob certos aspectos, poder comparar à dos Maias, que os colonizadores destruíram por completo. E julgo [que devia] continuar a existir respeito pela idiossincrasia própria daquele povo, ou daqueles povos, que aquilo são vários povos, com várias línguas, e que têm... Olha, por exemplo, a relação deles com o tempo: o que nós ganharíamos em compreender a relação deles com o tempo; a relação deles com a velhice, o respeito que existe pelos velhos; a relação deles com a morte, a morte é um dia como os outros, só que mais curto. Isto é muito difícil de entender para nós, europeus, para quem um dos poucos rituais que subsiste é o ritual dos funerais... ali é completamente diferente.

E da relação com esse povo, os portugueses do teu livro, são estruturalmente racistas, há algo neles que nunca consegue esquecer isso, parece que é mais forte. Nós somos de facto assim?
O racismo... julgo que nós não somos mais racistas que os outros, pelo contrário, porque somos mais pobres. Mas o racismo é apenas o desconhecimento. Nós odiamos o que é desconhecido. Repara: por exemplo, tu vais na estrada, e aparece um carro a fazer uma série de asneiras, ou tropelias; tu não dizes, vai ali um homem, dizes, vai ali um cinca, vai ali um opel, vai ali um renault; e não existe, a pessoa não existe, existe apenas aquela máquina. Quando a pessoa sai do carro, depois torna-se muito mais difícil zangares-te com ela, quando de repente se torna pessoa. Lembro-me uma vez - eu tinha... era conflituoso -, estava a tentar arrumar o carro diante de um centro comercial, estava à espera, e houve um outro carro que se meteu à frente, e se meteu primeiro. Eu saí do carro para dizer isso, o homem fechou o vidro, eu fui ao carro buscar a manivela e comecei a bater. E estava muito contente a amolgar o carro quando ouço uma voz atrás de mim a dizer. "Oh António porque estás a fazer isso ao carro do meu cunhado?", e aí a fúria desapareceu-me imediatamente, o outro senhor saiu de dentro do automóvel, apertamos as mãos, de repente passou  a ser uma pessoa, compreendes? Julgo que o racismo radica um pouco nisso. O racismo tem muito que ver com o desconhecimento do outro.

Mas neste país... Por exemplo, às vezes dá-se atenção a pequenos pormenores, por exemplo, uma pessoa que durante o romance inteiro, ainda que sejam apenas as personagens, a dizer que chama pretos aos pretos, é uma coisa que depois do 25 de Abril era muito politicamente incorrecto, passava a ser os negros... Este era o tipo de português que tu conheceste lá, era assim que nós lidávamos com os angolanos?
A maior parte sim, a maior parte sim... Curiosamente da parte dos militares não tanto... Havia um - posso estar a ser injusto - mas havia um... Eu nunca vi, em tanto tempo, eu nunca vi um militar a ter um comportamento menos correcto para com as populações. Em parte era assim de facto, em parte era assim de facto...Também tens que ver que tipo de emigração era a nossa para Angola... Mas depois ao mesmo tempo havia coisas espantosas, porque... na Baixa do Cassanje, que é onde parte do livro se passa, uma das coisas mais extraordinárias era o túmulo do Zé do Telhado, que era um túmulo imenso, quase com dignidade de Jerónimos, o que é muito curioso... Portanto... mas nesse livro... é também um livro sobre a cupidez. E já que os pretos têm aqueles diamantes todos, porque é que não hão-de ser pretos, ou seja, isto é mais ou menos o que se passava na mente daquelas pessoas que os tentam privar de...

Em relação à escrita, propriamente dita... continua a ser uma - eu sou apreciador, há quem não o seja - uma escrita em cascata, vozes díspares, há personagens que parece que vêm à boca de cena deixar uma frase, às vezes só uma palavra, um raciocínio; e há uma coisa curiosa: há o António, que se levanta e deita com o romance, às voltas, como uma doença. Este António és tu, obviamente...
Obviamente.

É um bocadinho o Hitchcock a passar lá ao fundo nos filmes dele, tu intrometes-te no romance?
Não tinha pensado nisso, mas nos últimos livros, cada vez isso é mais presente.. Porque é que eu não hei-de ser também personagem dos livros, se é que são personagens; para mim são pessoas tão reais, sabes, tão de carne, tão de... Recordo-me de - não sei se foi com este livro se foi com o anterior -, de de passar no sítio onde morava uma personagem e pensar "onde é que ela mora, onde é que ela vai tomar o café"... Para ti é uma densidade tão de carne, é tão viva, tão verdadeira, que tens dificuldade - eu tenho dificuldade, dentro de mim - em distinguir... só depois do romance acabado é que elas deixam de existir, enquanto o romance existe estás de tal modo imerso naquele... em sub tinta, como os chocos, que as personagens têm uma existência verdadeira, são personagens reais...

Este que chega agora às livrarias, este romance, para ti já era? Já não pensas nele?
Já tenho esse romance acabado há mais de um ano.

Já não pensas nele?
Não, não, já não penso...

Estás a escrever outro?
Sim, sim, acabei a primeira versão de um outro a semana passada. Agora, tu quando acabas um livro, tens de esquecer o livro, esse é que é o problema, porque se não esqueces vais fazer uma sequela e vais continuar o livro de uma outra forma. Então, tens de fazer um esforço enorme para esquecer, o que ao mesmo tempo é maçador porque, por teres vivido dois anos com o livro, cria-se entre ti e as personagens do livro uma amizade, uma estima, uma ligação... repara, estava a falar, sem me dar conta, como se fossem pessoas vivas.. Cria-se entre ti e o livro uma relação pessoal tão intensa que...não sei quem era, acho que era um escritor sul americano que dizia: "custa tanto separar-me dos meus romances que os acabo antes do fim". Às vezes é difícil, porque tu viveste dia após dia com aquela matéria que...

Há romances em que o fim parece mais extemporâneo que cortas, mas este não. Há um epílogo. E nesse epílogo eu acho que, mais do que nunca, fica esta África, esta relação dos negros com os brancos, há uma tensão sexual até, inter-racial. Este fim... Costumas pensar no fim, enquanto avanças para o livro?
Não...

Há pessoas que escrevem para alcançar um determinado... sabem o ponto onde vão chegar, e avançam para ele.
Não sabes nunca qual é o fim. Eu, antes do epílogo, não sabia como ia acabar o livro. Mas... estás a ver, isso é outra forma de racismo... quando falaste de sexo, por exemplo, quando as pessoas dizem os pretos ou os negros, ou o que quiserem chamar, têm o pénis maior que os outros, que os brancos. Isto é uma forma de racismo, o que é muito curioso... Eu achei curioso a miúda ter aparecido no fim do livro, com aquela redacção, porque ao mesmo tempo me pareceu-me extraordinariamente ambígua e extraordinariamente precisa. Fiz várias versões dessa redacção, a ver como é que estaria melhor, e curiosamente não foi muito difícil escrevê-la, é uma questão de afinar mais a prosa. Mas era como se fosse um... a ironia final naquele livro: tudo desapareceu, a guerra, o tráfico, as traições, etc., e está aquela menina em férias, com o pai rico, a mãe rica, um general africano rico e... como se as vidas dos outros, as mortes dos outros, o sofrimento dos outros tivesse sido em vão, ou tivessem sido supérfluas...

Christophe Mercier, do Le Figaro, de que falava há pouco, alerta para uma coisa com a qual devo dizer que concordo, ele aconselha uma abordagem cronológica da tua obra, não se deve começar a ler Lobo Antunes a meio, digamos assim. Concordas com esta ideia?
Bom, o problema é que eu não li os livros, só os escrevi, portanto, tenho uma relação diferente com eles, por mais distância que tenha em relação a eles e não os tenha revisitado... isso só me acontece em sessões nos países estrangeiros, em que há leituras dos livros e que ouves ler parte, ou então mas conversas com os tradutores, mas felizmente os problemas com os tradutores são muito específicos - felizmente para mim, infelizmente para eles -, são coisas do género, como é que se traduz "coisíssima nenhuma"? Tem muito mais a ver com as frases idiomáticas. Mas "coisíssima nenhuma" pôs imensos problemas, e portanto é muito mais uma relação a este nível, na frase tal... lembro-me de outra expressão que era "alto lá com o charuto", que é que isto quer dizer? A relação é muito mais ao nível disto, destas pequeninas frases, pequenas coisas...

Mas em 24 anos, és capaz de reconhecer... há muitas pessoas a debruçarem-se agora sobre a tua obra, temos, aliás, este magnífico ensaio de Maria Alzira Seixo; mas... tu consegues ver períodos na tua obra?
Bom, primeiro, não são 24 anos, porque o primeiro livro tardou muito a aparecer publicado, foi sempre recusado...

Mas já estava escrito há muito.
Sim...

Aliás, tinhas dois escritos, o Memória... Os Cus de Judas...
Sim, sim, quando apareceu o primeiro, estava a escrever o terceiro ou o quarto, porque os livros eram recusados, as editoras não os queriam publicar. É possível, eu julgo que há... todas as divisões são sempre... eu jugo que os livros acabam por formar um tecido contínuo...

Então experimenta esta: os três primeiros são uma espécie de catarse autobiográfica...
Sim, sim, muito claramente...

...depois o romance propriamente dito, as personagens, a intriga, o enredo; e a partir do Tratado das Paixões da Alma, o teu grande objectivo é reinventar a própria arte do romance, tu fazeres o teu romance...
Pois é... mas isso também aconteceu no primeiro, eu é que não tinha... estava ainda muito... desarmado! Eu estava seguro do que queria, mas em vez de ter um piano, eu tinha uma gaita de beiços, percebes? Portanto, eu podia dar muito poucas notas, e no entanto, havia tantos romances atrás desse primeiro, eu escrevia e deitava fora, destruía...

Mas agora tu não tens problema nenhum em dizer que não só inventaste a tua própria arte do romance, como pretendes que o romance não seja visto  de forma igual depois de Lobo Antunes. Isto não poderá parecer às pessoas alguma soberba?
Eu...

Corres esse risco?
...eu julgo que não sou um homem vaidoso, tanto quando me dou conta, tenho uma grande humildade em relação ao meu trabalho. Mas também tenho a noção que isto traz alguma coisa de novo, ou seja, no... em vários sentidos, por exemplo: no tratamento do tempo, parece-me a mim... depois no tipo de construção romanesca, depois... estava a lembrar do... o ano passado houve um colóquio em Évora - interrompi porque me lembrei disso - e lembro-me da intervenção do Eduardo Lourenço em que fala "Pronto, a partir de agora já não se fazem mais romances à Eça de Queirós". Mas se tu és fiel...

A propósito da tua obra?
Sim. Mas se tu és fiel a ti mesmo, a tua experiência é única e irrepetível, quer dizer, há mil maneiras de mudar a arte do romance, há mil maneiras... O Proust mudou, o Céline mudou, o Faulkner mudou, o Hemingway mudou...
Tu, que ao mesmo tempo tinhas essa grande humildade, às vezes, pensar em grandes escritores e dizer "Bolas, já alguém fez isto antes de mim". Continuas a ter essa noção?
Isso aconteceu-me várias vezes, sim. Não, por exemplo, era mais... era, por exemplo, lembro-me com um livro que não me recordo qual era e que pensava "que bom, descobri a maneira de fazer avançar a acção com o diálogo". E depois, estava a ler um romance da Jane Austin que também tinha feito a mesma coisa. No entanto, sabes, eu penso que tu lês os livros e percebes qual foi o autor que os escreveu, sei lá, há autores que tu reconheces, basta ler uma frase para saberes qual foi a mão que fez aquilo.

Tornou-se um objectivo para ti seres... "vou ser absolutamente original". Tornou-se um objectivo?
Não, eu julgo que o meu objectivo era fazer livros que... O meu grande medo foi sempre o mesmo, foi: não desiludir as pessoas que desde o princípio tiveram em mim uma fé que eu nunca partilhei, percebes?

Não acreditavas em ti?
Não, tinha as maiores dúvidas... tinha as maiores dúvidas...

E a crítica não veio a ajudar nada...
A crítica nunca me foi... nunca me afectou especialmente. O que me preocupava... sei lá... quando saiu Os Cus de Judas, recebi a carta de um agente americano. Isto era em 79... Tinha acabado de sair o segundo livro, o primeiro tinha saído três meses antes... Na época era o agente de uma série de escritores muito importantes, eu achei que era uma ironia, não respondi, ele mandou-me uma segunda carta, e [eu] disse, "tá bem, é chique ter um agente em Nova Iorque"; e ele propunha os meus livros às editoras e nenhum editor os queria. E ao fim de um ano eu disse: Oiça, o melhor é acabarmos com isto, você está a perder dinheiro"... um agente ganha 15% antes dos impostos, e outras despesas correm por conta, até os selos, telefonemas, tudo. "Você comigo só perde dinheiro", e ele dizia "Não, não, você vai conquistar o mundo", e não conquistávamos coisa nenhuma, não tínhamos uma única editora, nenhuma tradução, nada... Ainda hoje estou com ele! E é a única pessoa a quem eu mostro os livros quando estão acabados, o livro segue para a América para ele o ler. E até o veredicto dele vir às vezes fico um bocado tenso, embora actualmente eu não me sinta muito inseguro do que faço, mas fico tenso porque ele é muito rigoroso...

Mas nunca ficava contente quando acabava um livro...?
Eu? Na altura... ahn... imediatamente após ter acabado sim, um mês depois começas a ver "podia ter feito melhor, devia ter trabalhado mais"...

É por isso que não vais reler os livros, para não teres a tentação de fazer mais uma correcção...
Claro que dá vontade de rir reescrever tudo, mas o problema é que a pessoa que tu eras quando os escreveste já não és. Já não sou o homem que escreveu o Memória de Elefante, o Conhecimento do Inferno, o Tratado... ou mesmo o romance anterior. E a tua concepção de romance vai evoluindo. Portanto, se tu fores emendá-los tinhas que reestruturá-los de tal maneira, e adaptá-los àquilo que tu és agora, de maneira que, eu penso que isso não seria honesto, foram escritos por um determinado homem, numa determinada época; homem para o qual eu olho muitas vezes como um antepassado meu.

Mas sem o qual não poderias ser eventualmente o que és hoje...?
Evidentemente que não, evidentemente que não...

Uma curiosidade: aqui no livro da Maria Alzira Seixo [Os Romances de António Lobo Antunes], a capa é um manuscrito teu, que muitas pessoas desconhecem. Como é que tu te organizas?
Aí está muito aumentado...

Está muito aumentado, ainda por cima...
Está...

...portanto a letra ainda é muito mais pequena. Como é que te organizas aqui?
Bom, isso...

Porque é que escreves à mão, por exemplo?
Ah, escrevo à mão porque gosto de desenhar as letras, dá-me um prazer físico. Não me vejo a... num computador, dá a sensação que não sou eu que escrevi... E gosto do cheiro do papel, etc. Mas a história disso era muito simples. É que eu, com 12, 13 anos, anunciei triunfalmente aos meus pais que queria ser escritor, que foi uma coisa que os assustou imenso. E então para escrever, tinha que escrever... - isso eram os blocos de receitas do meu pai, no hospital, da qual tenho uma provisão que me vai dar até ao fim da vida, espero eu. E então escrevia com o livro de geografia ou história, o que fosse, por baixo, e ouvia os passos dos meus pais no corredor e mudava a ordem. Portanto, escrevia desse tamanho, com uma letra minúscula por uma questão de... olha, para poder escrever, para não me ralharem... e só muito depois, como é evidente - tens 13 anos, pensas que os adultos são estúpidos - é que percebi que eles estavam fartos de perceber que eu escrevia daquela maneira e ia trocando a ordem das coisas. Portanto, escrevia assim na... sensação ou na certeza que eles não iam perceber eu em vez de estudar estava a escrever... porque nós éramos muitos filhos, e os meus pais o que queriam é que os filhos tivessem um curso - uma enxada, como dizia a minha mãe - e portanto, a ideia de um escritor era, para os meus pais, um pelintra, coitado, toda a vida sem um tostão, que ia ter uma vida péssima, etc., e acabei por ir para medicina sem a menor vontade, porque naquela altura...

... só para ter os blocos de notas, se calhar...
Sim, não havia 12º ano, e então eu tinha 16 anos... tinha acabado de fazer 17 anos quando entrei na faculdade... portanto era um miúdo e eu disse quero ir para letras porque quero ser escritor. E o meu pai gastou uma data de tempo a explicar-me que eu só teria vantagem em ter uma formação técnica, que isso me poderia ajudar, que a literatura não se aprendia nas faculdades de letras, que era uma aprendizagem solitária, etc., etc... Em muitos aspectos tinha razão naquilo que dizia, embora haja coisas que tu possas ensinar e possas aprender... há técnicas, porque isto é uma técnica, não é... Nunca se discute quem deve ganhar o Prémio [Nobel] da física ou da química, mas o da literatura e o da paz toda a gente sabe, o que é curioso, porque a literatura tem muita... há muito de técnica que não vale a pena falar para não maçar as pessoas...

Tem muito que se lhe diga. Quem são as primeiras pessoas que lêem os teus livros? Lêem uma primeira versão ou já uma versão trabalhada?
Não, lêem a definitiva. Nunca mostrei os meus livros em estadios intermediários, nunca.

Portanto, escreves estes "gatafunhos", chamemos-lhes assim, e depois trabalhas tu próprio estes "gatafunhos"; ou fazes como a Agustina, vai atirando placidamente as folhas para o chão, à espera que alguém venha apanhar...
Não... Faço primeiro assim um capítulo, com o mesmo capítulo passo para uma folha A4 com letra grande, passo ao segundo capítulo, mesmo sistema, duas vezes, até ao fim do livro.

E depois dás então a mostrar a alguém...
Não, não, depois começo a corrigir sobre essas folhas grandes. Depois é... o meu problema, antes de começar a corrigir, porque o último capitulo é feito, nas primeiras versões, um ano, mais de um ano, depois do primeiro... e depois fico aí uma semana, quinze dias a rondar o livro, com medo, a pensar: "como é que isto estará?", cheio de dúvidas... e depois o que acontece é que... é muito estranho, porque é um corpo independente de ti, aquilo articula-se tudo sem que tu te apercebas como; e então aí começas a corrigir. Para mim corrigir significa tirar, e aquilo que é publicado acaba por ser muitas vezes metade do texto original.

Quando finalmente dás a ler a alguém antes de editar - há pouco falavas penso que do Tom Colchie, o teu editor americano, esse implacável crítico teu - alguma vez ele te deu uma opinião que te fizesse modificar algo, ou apesar de prezares muito a opinião, não modificas?
Ele não, mas lembro do Zé Cardoso Pires me... que lia os livros também... com o Fado Alexandrino. Eu perguntei-lhe: "O que é que achas?", e ele respondeu-me "Não sei, ainda só li uma vez"... mas apresentava-me filas de páginas e páginas de notas. Nunca segui. Provavelmente ele teria razão, mas eu nunca segui, porque estava tão certo, tinha a certeza que era aquilo. porque tu é que estás dentro, sabes, eu lembro-me de um professor de cirurgia que eu tinha, que depois de te ensinar tudo, dizia: "agora esqueça-se de tudo e entre na sala de operações", percebes? Aquilo tem de estar de tal maneira... fazer de tal maneira parte de ti, parte da tua carne, do teu sangue que... A técnica continua a existir, é evidente, mas quase não pensas nela.

Perguntaram um dia a um escritor, confesso que nesta altura não me lembro qual, perguntaram-lhe se estava a escrever, e ele disse: "não, estou a viver, para depois poder escrever". Isto acontece contigo? Tu és conhecido como um "rato de biblioteca" ?
Não sabia que as coisas se pudessem colocar assim... Nunca me aconteceu, o que me acontece é... sei lá, por exemplo, olha, eu durante muito tempo não podia escrever só, tinha que... E então quando vim de África, tinha muito pouco dinheiro, e pagavam muito pouco o internato do hospital. Então dormia três noites fora, fazia bancos em hospitais da periferia de Lisboa, muito mal pago, aliás, e... começava a escrever, tentava escrever... escrevia nos espaços livres todos, escrevia em África durante os intervalos das saídas para a mata... Agora, durante as viagens, ponho como condição aos editores darem-me quatro, cinco horas para escrever. Não sei distinguir essas duas coisas...

Claro, é uma frase que mandei para cima da mesa, não é uma verdade absoluta. Mas a tua rotina, hoje em dia, tu vives da escrita, és escritor a tempo inteiro, a tua rotina são, mais de metade do dia a escrever...
Sim, é a única maneira. É a única maneira. Não há talentos, há bois, há bois... sabes... porque tu sentes as coisas com uma intensidade enorme, a distância entre a intensidade, a emoção e os resultados é sempre enorme. Portanto, todo o teu trabalho é no sentido de diminuir essa distância, isso consegues através de correcções e correcções e correcções. Um livro é sobretudo uma questão de trabalho, e de método, portanto, de uma disciplina que te impões a ti mesmo.

Levantas-te e começas a escrever, assim, ou tens períodos do dia, ou escreves... sei que escreves no estrangeiro, que escreves em qualquer sítio, mas... a tua rotina portuguesa?
Dantes a noite dava-me mais rendimento, agora comecei a gostar das manhãs. Eu começo de manhã cedo, até à hora do almoço, meia hora para almoçar, continuo a seguir até à hora do jantar, uma hora para jantar, continuo... Porque isto dá-me muito prazer, não me sinto de maneira nenhuma escravo, percebes, é uma ternura ver nascer um livro...

E porque é que vais ao Hospital Miguel Bombarda, ainda?
Porque gosto do cheiro dos hospitais, gosto de lá estar, e porque preciso de mudar de sítio, não posso escrever no mesmo sítio. Tenho de escrever num sítio de manhã, noutro à tarde, noutro à noite...

Mas não estás a exercer psiquiatria?
Vejo... ainda vejo algumas pessoas, vejo... ahhnn... eu nunca gostei... eu só gosto daquilo a que as pessoas chamam, os médicos chamam, os psicóticos, pessoas com delírios, com esquizofrenias, coisas assim, porque são muito criativos, ainda vejo seis por semana, que já vejo há muitos anos, e adoro lidar com eles... e... foi no Hospital Miguel Bombarda que eu tive a maior lição de como se deve escrever. Eu era um interno, e estava a sair do carro, andavam ali as pessoas, na altura usavam os pijamas, os uniformes, e aproximou-se de mim um homem com ar misterioso, tinha barbas, e disse: "sabe, o mundo começou a ser feito por detrás". E eu pensei, "bolas este tipo... é assim que se deve escrever, tens de escrever por trás", percebes? Por exemplo, tu lês o Faulkner, toda a técnica está aparente, é muito bom para os principiantes, vem ali tudo, as dobradiças, etc. E outros escritores, como por exemplo o Hemingway, que é feito por trás, por fora só vês o ovo, não é, e então tens de ler duas e três vezes a ver como ele hesitou, como é que ele recobrou alguma dificuldade técnica...

Até parecer que foi ao correr da pena, que é o que muita gente diz...
Exacto, exacto. Ser espontâneo dá muito trabalho, dizia o Manuel da Fonseca.

Outra coisa. Entre o muito que já se disse do Lobo Antunes, já te chamaram machista. E eu lembro-me que, a propósito disto, falava-se, para cimentar esta ideia, falava-se de qualquer coisa de um livro teu. Ou seja: ainda há muita gente que confunde a obra com o escritor? Ou seja, porque uma personagem tua era machista ou porque tratava mal as mulheres, logo Lobo Antunes era machista - ainda há muito este erro?
Eu não oiço, mas... provavelmente tem que ver... não sei... estava a pensar nisso... tratar mal as... eu julgo... eu tento tratar as personagens por igual, mulheres e homens, mas também eu sou uma pessoa invisível, não é? Não apareço nos jornais, agora vim para duas ou três entrevistas, mas não dou entrevistas, não apareço, não me vêem, portanto, a partir daí podem criar uma série de lendas, isto dura mais ou menos desde o princípio, não é? Acontece muitas vezes um dos meus irmãos dizer "estive a almoçar com um amigo teu", que não sei quem é, nunca o vi... e... e portanto, a gente tem tendência a criar uma... a inventar personagens a partir das pessoas reais... Tu trabalhas na televisão, és uma figura pública, como se diz, que é uma expressão que eu detesto, devem inventar imensas histórias a teu respeito das quais algumas te chegam aos ouvidos e que nada têm que ver contigo, e isso é inevitável. Não acho que isso seja grave.

Personagens de teus livros recentes, do Que farei quando tudo arde?, do Não entres tão depressa nessa noite escura, de qualquer forma, são, assumidamente, num caso uma adolescente, noutro caso um homossexual. Foi-te difícil entrar nessas peles, ou não pensaste nisso?
Antes pensei. Antes pensei... pensei mais no livro que é Exortação aos Crocodilos, com quatro mulheres, e pensei o que é que um homem sabe das mulheres... o que é que um homem sabe, por exemplo, o que é o orgasmo da mulher, o que é que um homem sabe o que é a vivência para uma miúda a primeira menstruação, o que é que um homem sabe do prazer que uma rapariguinha, uma criança, uma miúda pode ter do brincar e... portanto parti para o livro assim. E tinha a sensação durante a escrita  que estava a aprender coisas com as personagens sobre as mulheres, é muito curioso. Depois com a personagem do travesti, até não sabia o que era um travesti, e ainda falei com um ou dois... mas eles estavam muito mais interessados - olha, aí tens - em dizer o nome das tais pessoas públicas com quem tinham dormido, do que em contar-me as suas vivências, percebes? "Eu dormi com fulano de tal", pessoa qualquer importante, "sabe que a maior parte dos meus clientes são casados?"... e depois despejava uma série de nomes de pessoas vivas e conhecidas. Estavam muito mais interessados nisso do que em qualquer outra coisa.

Como se fosses um jornalista de escândalos e não um escritor...
Quase, quase... E também era muito chocante a depressão e ao mesmo tempo a... a pergunta que eles faziam e que aparece no livro a todo o tempo, quem sou eu?, que é que eu sou? E é o que se passa nesse livro todo, em que o filho se pergunta - talvez não por estas palavras - será que um tenho um pai e uma mãe, terei duas mães, o que é o meu pai, que é ser pai, quem sou eu...

Tu conseguiste sair do livro a perceber a homossexualidade?
Aparece muito pouco no livro... aparece muito pouco no livro...

Mas que relação é que tens, por exemplo, com a homossexualidade? Naturalmente de aceitação, calculo, vindo de um homem inteligente, mas causa-te alguma impressão de pele, por exemplo?
Impressão a que nível? A nível intelectual, a nível físico?

Sim, a um nível físico, por exemplo.
A nível físico é qualquer coisa de... Eu sou capaz de entender intelectualmente, a nível físico é-me complicado. A nível físico é-me complicado... é-me complicado porque me vejo complementado num corpo de mulher e não me vejo complementado num corpo de homem, e talvez não sentir qualquer espécie de atracção.

Tu não ligas muito às crónicas que escreves, e no entanto, eu tenho a sensação, pelo que converso com muitas pessoas sobre Lobo Antunes, tenho a sensação que também ganhaste muita gente através das crónicas na imprensa Ou foste buscar leitores insuspeitados...
Não sei se depois lêem os romances, sabes? As crónicas começaram por problemas financeiros, foram numa altura em que a editora estava mal, não havia dinheiro... e nessa altura apareceu-me uma proposta do Vicente Jorge Silva, que dirigia o Público, na altura, para escrever as crónicas, e eu na altura precisava daquele dinheiro. E... não sabia muito bem, pensava, bom, isto é para sair num suplemento de domingo, tenho de fazer umas coisas curtas e leves. O meu problema era depois acabada a crónica voltar ao romance porque o passo é completamente diferente.

Porque é que tinham que ser coisas leves?
Porque era para ser lido ao domingo...

Temos muitos escritores com uma chamada intervenção social, ou seja, aproveitam precisamente esses espaços na imprensa para também mostrarem o que pensam sobre o mundo e sobre a política e sobre a sociedade... Tu nunca quiseste fazer isso?
Não o quis fazer. Mas foi uma escolha deliberada. Porque não ia usar aquela tribuna para atacar pessoas, ou para... e só muito tarde é que percebi que... acho que foi a María Luisa Blanco que me ajudou a entender também... que aquilo era uma espécie de quase itinerário paralelo aos romances. E acabou por haver muitas coisas que me serviram de transfusão e que acabei por aproveitar para romances, etc. Mas para mim, durante muito tempo, eram coisas que eu fazia o mais depressa que podia, e fazia-as, simplesmente, com uma ideia alimentar.

Dão-te hoje mais prazer do que quando começaste?
Sabes, eu escrevo-as sem ter nada na cabeça. Sento-me diante do papel e começo a escrever. Não sei nunca o que é que vou escrever. E agora faço-as mais rapidamente porque entretanto aprendi dentro de mim o - como é que eu hei-de dizer? - a extensão e o tipo de respiração que aquilo exige, mas demorou muito tempo a compreender isso. O que pretendo é voltar para o romance, percebes, e então o que faço é escrevê-las no intervalo de dois capítulos.

E não pensas mais nelas.
Sim sim, esquecê-las, para um mês estão feitas as duas crónicas... as últimas escrevi-as num comboio, na Roménia, salvo erro...

Continua a haver uma chamada... uma orfandade social em ti, ou seja, viraste a costas a um mundo burguês, um mudo familiar onde cresceste, quiseste aproximar-te de um outro mundo que era, no fundo, o mundo que admiravas, e esse mundo não te aceitou muito bem, o chamado, a chamada intelligentia, chamemos-lhe assim. Achas que foi isto primeiro que moveu a crítica contra os teus primeiros livros?
Bom, ahhh... eu estou bastante ligado à minha família, gosto muito dos meus irmãos, gosto muito da minha família, e... tenho muito respeito e muita ternura e muita amizade pelos meus irmãos. Cada um à sua maneira, são todos homens notáveis. Agora que os meus pais estão doentes e velhos... e perto de... provavelmente perto do fim, pela ordem natural das coisas, tu dás-te conta que estás muito mais preso a eles do que imaginavas... Também, ahh... o convívio dos escritores... eu nunca conheci muitos, quer dizer, sei quem são... é um pouco como... Uma vez perguntaram ao Voltaire como é que era a relação dele com deus, e ele respondeu: "cumprimentamo-nos mas não nos falamos". O que acaba por acontecer, é que tu não tens tempo para estar com os escritores, e depois...

Porque estás a escrever.
Porque estás a escrever.

Portanto, há muitos escritores que não estão a escrever, neste país.
Não sei, não sei... Mas é um país onde se escreve muito pouco. Repara... não sei quantos romances se publicam por ano, mas comparado com países com menos pessoas do que nós, publicam-se muito poucos, não é? E não vamos falar da qualidade do que se escreve em Portugal, mesmo assim, eu julgo que temos excelentes, excelentes poetas.

Continuas a sentir-te um poeta falhado? Era o que tu querias fazer...
Não tenho talento.

Não tens talento para a poesia?
Não, não tenho talento, não nasci poeta. Eu só escrevia poesia até aos 18, 19 anos e depois descobri que não tinha talento e foi para mim muito doloroso aceitar isso. E então comecei a tentar escrever prosa. Sabes que tu começas a escrever porque... porque alinhas as palavras, em miúdo, mas a seguir às outras aquilo faz sentido, e é divertido, e é agradável. E aquilo depois é como uma droga dura, fica dentro de ti, não é? Depois a uma certa altura percebes que há uma diferença entre escrever bem e escrever mal e começas a ficar aflito. E quando descobres que há uma diferença ainda maior entre escrever bem e a obra de arte, então a tua aflição é total. Mas também nunca - voltando à tua pergunta - nunca me senti mal recebido pelas pessoas. Houve alguns equívocos, mas sabes, eu julgo que fui mais imediatamente aceite noutros países, porque no estrangeiro a distância toma o lugar do tempo. Muitas vezes. Isso passa-se por exemplo com um homem que para mim é um grande escritor chamado Sebald - não está traduzido em Portugal -, que é alemão, morreu há poucos meses num desastre de automóvel na Inglaterra, e... e era admirado e lido em toda a parte, menos na Alemanha. E agora quando vim da Alemanha, falar dele, cada vez que tive a oportunidade de falar, só agora é que as pessoas começam a lê-lo na Alemanha. E é um escritor, me parece, um escritor invulgar.

António, anda toda a gente muito entusiasmada, parece, em vários meios em Portugal, a dizer que finalmente se está a falar da guerra colonial, a fazer-se a catarse da guerra, seja no cinema, seja na literatura, embora a literatura que normalmente se cita em relação a isso é uma literatura que eu considero mais factual, de dados muito concretos... É isto a catarse da guerra?
Não sei, nunca escrevi um romance sobre a guerra de África, julgo que não me era possível.

Ou ainda não é possível?
A mim não me é possível, porque... acho que seria possível escrever um ensaio, ou um documento, ou qualquer coisa assim, agora fazer ficção, sabes, porque... as coisas eram tão horríveis que não são ficcionáveis... O que é uma ficção?, uma ficção é um sítio onde - um sitio, mesmo - onde tu fazes, com o teu leitor, um pacto: vamos supor que isto é verdade. Ninguém morre a cantar, como na ópera. No entanto se esse pacto for suficientemente forte, tu comoves-te até às lágrimas, mas tens que aceitar esse pacto de incredulidade, isto não é verdade, mas vamos fingir que é verdade. Ora, algumas coisas que eu assisti na guerra eram de tal maneira terríveis que pacto nenhum era possível com o leitor. Pacto nenhum era possível com o leitor; e o que até agora ouvi sobre a guerra, não... sei lá, por exemplo, lembro-me de um filme de um grande realizador que é «Parados sobre a guerra», e em que os soldados discutiam a legitimidade da guerra, será que a guerra é legítima, e o patriotismo, e o colonialismo e esquerda e direita. E eu estava banzado porque quando lá estava, a única coisa que tu queres é chegar ao dia seguinte. Não te pões nenhuma pergunta, nenhuma! Nenhuma pergunta, a única coisa que te interessa é durar, percebes? Não há nenhuma interrogação, nem sequer remorsos, nem nenhuma... e se para isso for necessário seres cruel e violento, ai és. Sem remorsos, nenhuns, nunca! Ainda hoje me pergunto, com espanto... nunca senti culpabilidade das coisas que assisti, nalgumas em que participei, e pergunto-me porque é nunca a senti, compreendes? E no entanto, curiosamente, talvez o maior livro que se fez sobre a guerra, que é o livro do... A Insígnia Vermelha da Coragem, do Stephen Crane, é escrito por um homem sobre a guerra da sucessão, nos estados unidos, que não viveu a guerra da sucessão. Portanto, não é necessário ter-se estado na guerra para escrever-se sobre ela. Julgo que não seria capaz por uma questão de pudor.

Costumas dizer que, de alguma forma, escreves contra a morte. Mas em que sentido, para esquecer que ela está lá, à espera, ou uma imortalidade que tu esperas conseguir com a tua escrita?
Sabes, as pessoas... nós normalmente existimos, ou só morremos, quando morre a última pessoa que ouviu falar de nós. Por exemplo, enquanto eu for vivo, o meu avô ficará vivo, está vivo em mim. A morte é uma coisa estranha, e a nossa relação com a morte é muito mais complicada do que nós imaginamos, e passa por várias fases... É evidente que existe um desejo, e seria hipócrita dizer que não, um desejo, de alguma forma, de continuarmos vivos. E julgo que os livros correspondem também a este desejo.

És um homem diferente depois da morte dos teus dois grandes amigos - Melo Antunes e Cardoso Pires?
Sou mais pobre, sou mais pobre... porque a verdadeira amizade é... cruel, porque a sinceridade implica também isso... sei lá... tinha dois escritores, não vou dizer o nome, muito conhecidos, que costumavam mostrar aquilo que faziam um ao outro. E um deles mostrava o manuscrito ao outro, e o outro dizia, "não corrijas mais, que isso tá bom assim"... para que ele não melhorasse os livros. Agora, há uma altura da tua vida em que tens quase mais mortes do que glóbulos nas veias, porque...tanta gente - não são mortes de pessoas, mortes de ideias, de projectos, de sonhos, coisas que acabaste por não fazer e que... disso sim, tenho remorsos, disso sim. Não ter gostado de algumas pessoas como elas mereciam, não lhes ter mostrado aquilo que gostava delas, compreendes?

Mas ainda vais a tempo, com algumas outras.
Algumas outras sim, mas com essas já não. Embora tenha sempre a esperança que me tenham entendido, não é, e que de alguma forma também é para elas que escreves. Também é para elas que escreves, porque talvez consigam ver aquilo que tu fizeste, e talvez consigam entendê-lo... não sei.

António: Obrigado.
Obrigado.

É terrível, em frente de um homem que detesta a banalidade, dizer que temos de ficar por aqui, quando muito mais havia para dizer, mas é o único lugar-comum que define o fecho deste momento raro. Porque a televisão é isto: uma coisa poucochinha para traduzir algumas vidas e obras. Para quem possa interessar, tantos felizmente, esta memória de elefante chama-se, desta vez, Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo. Até à próxima, só até à próxima.


SIC Notícias
Dezembro 2003

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