Catarina Fonseca: «Mais leve que a água», uma leitura sobre As Outras Crónicas

António Lobo Antunes em crónicas reunidas sobre a vida e a morte. Podem procurar à vontade: não há melhor maneira de começar o ano.


Se, quando se fala nos romances de António Lobo Antunes, ainda pode haver quem recue perante a grandeza da empreitada, em As outras crónicas não há mesmo desculpas nenhumas: não temos de ler todo o livro de uma vez, ou na ordem porque está reunido (claro que, uma vez começado, é difícil não fazer isto, mas temos a liberdade de não o fazer). Essa liberdade dá ao leitor margem de manobra para tornar também suas estas crónicas. E um dos maiores dons de ALA é precisamente essa capacidade de, falando de si próprio, falar de todos nós.

Já não me lembro quem é que inventou essa lei universal do jornalismo que diz que "quanto mais particular, mais universal". No caso de ALA, isso fica provado até à última linha. Nestas quase duas centenas de crónicas publicadas entre 2013 e 2019 na revista Visão, fala acima de tudo de si próprio – da sua experiência, da sua vida, da sua família, dos seus irmãos. E cada leitor encontrará aqui o seu espelho. Se calhar todos nós humanos somos iguais. Mas pouquíssimos têm esta capacidade de nos mostrar isso mesmo.

Para alguns leitores, será o primeiro contacto com as suas crónicas. Para outros, será o prazer de as reler. Os temas são imensos. Os livros, a lua, a morte, a guerra, os incêndios, o prazer, pais e filhos, mães e filhos, avós, família, o primeiro outono sem um irmão, a felicidade, a China, a dor, os vivos e os mortos. Acima de tudo, ALA tem o poder de nos fazer sentir. A escrita dele entranha-se no coração (e isto é tão kitsch que nem sequer é digno dele, mas é o que é).

Com estas crónicas, rimo-nos: «A minha mãe achava que a coisa mais sensual num homem era a inteligência e a coisa menos sensual um rabo grande, embora acrescentasse não haver nada mais estúpido que um homem inteligente.»

Choramos: «Permaneci especado até desapareceres na primeira curva, continuei especado durante imenso tempo, sozinho, depois meti as mãos nos bolsos e voltei para casa. Sozinho, isto é: sem ti.»

Pensamos: «O periquito morreu após anos e anos na gaiola, sempre no mesmo poleiro, calado, grave, solene. Nisso era igual a quase toda a gente só que as pessoas são ao mesmo tempo a gaiola e o pássaro e portanto acabam dentro de si mesmas.»

Interrogamo-nos: «Quem destrói um homem? Um homem, quando é homem, não acaba nunca.»

Sentimos saudades: «A maior manifestação de amor entre nós era fazermos chichi juntos, à noite, para a cascata. Agora mijo sozinho. Infelizmente.»

Ficamos frente a frente com os nossos fantasmas: «Ninguém está preparado para morrer, nem sequer um filósofo budista de cem anos, com sífilis, cólica renal, a unha do dedo grande do pé encravada e dor de dentes.»

Claro que ALA não fala apenas do quoditiano. Se fosse só isso, qualquer de nós seria um grande escritor. Ele mostra-nos o quotidiano de uma forma nunca vista. Vamos ao nosso mundo de todos os dias como se fossemos a Marte. Vamos às nossas memórias como se nunca lá tivessemos estado («Faz agora um ano que a minha mãe morreu e surpreende-me o que ela tem mudado depois de se ir embora.»).

Num homem que se vê na parte final da sua vida, ALA olha a morte de frente e faz muitas viagens ao passado, à família, às memórias, à infância, ao que ficou do que passou. O conjunto das crónicas, lidas assim, todas juntas, constrói uma espécie de auto-retrato sofrido mas não amargo, vivido mas poético.

Porque isto que ALA faz talvez se chame poesia, ou seja, talvez ele cumpra nas crónicas a mesma função dos poetas: acordar-nos, fazer-nos olhar e sentir de outra maneira. Talvez ele saiba há muito tempo o que António Damásio nos mostrou, que a razão e a emoção são duas faces da mesma moeda. A poesia (não que ele lhe chame isso) é óbvia e constante («O meu trabalho é escrever até que as pedras se tornem mais leves que a água»).

Ele próprio se pergunta a certa altura, «Que vida foi a minha?» O que restará de nós, o que viemos aqui fazer? Todos nós nos perguntamos isso, em alguma altura da nossa vida. Mesmo não tendo respostas, ALA tem pelo menos esperança: «Não cesso de escrever. Até ao fim não cessarei de escrever. Pode ser que ajude a aliviar um bocadinho o sofrimento das pessoas também.»

Se a missão dos escritores e da literatura for essa, aliviar um bocadinho o nosso sofrimento, então podemos dizer que a missão foi cumprida.

Olhem, parafraseando o fim de uma das crónicas, «Fico contente que este texto esteja tão mal escrito. Acho que me comovi demais.»


por Catarina Fonseca
29.12.2023

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