Isabel Lucas: «O esplendor de António Lobo Antunes» - crítica a O Tamanho Do Mundo

O esplendor de António Lobo Antunes

Aos 80 anos, publica um romance onde parece concentrar, de forma poética, depurada, satírica, todas as suas fixações. O Tamanho do Mundo é o mais breve dos seus livros.

“A minha vida parece acabar na janela”, escreveu António Lobo Antunes na crónica O Tamanho do Mundo, que integra o Quarto Livro de Crónicas (D. Quixote, 2011) e a que foi buscar o título para o seu 32º romance, justamente O Tamanho do Mundo, que sai quando o autor completa 80 anos. A frase remete para o confinamento de onde parece que cada vez mais as suas obras vão surgindo. É a partir desse espaço de semi-reclusão espacial, mas sobretudo narrativa, que Lobo Antunes vai procurando a linguagem que melhor se possa ajustar não a uma explicação de mundo, mas a uma harmonia com a própria linguagem do mundo.

Que linguagem para o caos, para o silêncio, para a solidão — «a solidão mede-se pelos estalos dos móveis quando estamos sozinhos» —-, para o definhar, para a morte — «sei lá o que é a morte que para mim não passa de uma capelita de província com chuva lá fora» — para [a] doença, para o desajuste com a imagem que se vê reflectida no espelho, para o amor, para o sexo, para a pobreza de um “carrito de compras quase vazio”, para a infância: «por exemplo, quem não foi feliz em pequeno entende-se melhor com o passado, fazendo renascer o que não teve com um sorriso saudoso». Que linguagem para «o feroz ódio do Mundo».

É uma linguagem cada vez mais poética, circular, com os cortes e as repetições a que já nos habituou, mas que aqui parecem ganhar uma toada menos lenta, como se o tempo corresse e nessa corrida abrisse espaços a mais justaposições, com cada um dos 19 capítulos a funcionar como um círculo de sentido, abrindo-se a outro; cada um uma voz narrativa que corresponde a uma das quatro personagens principais de que o romance se faz em fases diferentes das suas existências. Um homem de 77 anos às voltas com a memória do tempo em que era visita de uma cave nos subúrbios. Lá tinha uma filha pequena e uma relação com uma mulher humilde que nunca quis assumir. A filha desse homem e a relação silenciosa com esse pai poderoso. A mulher mais ou menos da idade da filha “que se ocupa” desse velho, e um advogado também de origem humilde, amante da secretária e guardião da fortuna que a mulher que se ocupa do velho vai acumulando.

À volta destas personagens gravitam outras, algumas recuperadas de romances anteriores. Caso de Deodata, aqui senhora de muitas cantilenas, que já vinha de O Esplendor de Portugal (1997), ou de Ginja, de Os Cus de Judas (1979). Mas a sensação é a de que neste livro António Lobo Antunes revisita toda a sua obra. Seja nas temáticas, nem sempre de uma forma óbvia — como a Guerra Colonial — mas pelo modo como chegou aqui na linguagem, quase como se tivesse estado a percorrer um caminho para formar um círculo que aqui se simplifica ou aperfeiçoa na só aparente maior facilidade com que este livro se apresenta ao leitor.

Como o narrador da crónica, dessa vida que acaba na janela — dentro dela ou observando a partir dela —, António Lobo Antunes escreve sobre o mundo de forma cada vez mais depurada e chega a um momento crucial nessa busca. «Tenho setenta e sete anos e ainda me falta tanto», diz o primeiro dos narradores/personagem, a quem vai falhando a memória — outro dos temas antonianos. O homem que diz que a solidão se mede pelos estalos dos móveis à noite, mas também que «a solidão é um cano que vibra no interior da parede, o protesto daquela tábua no soalho que se indigna se a piso, uma mancha de humidade, só ilhazinha por enquanto, a nascer na caliça».

Estamos em espaços fechados, quase sempre. Apertados, sombrios. É a partir deles que o mundo se mede. Um mundo da apreensão do espaço e do tempo. Rural, urbano, de bairro, um mundo sempre interior feito de napperons nos móveis — outra repetição — e desalinho nos pensamentos, mas visto seja a partir do interior de «uma cave de um jardinzeco com baloiço», de uma praceta de subúrbio, com pombos com enchumaços nos ombros — as aves, outra fixação —, de um «desvão», de «uma casa cheia de sombras e chávenas», da «cama de um rés-do-chão infinito» ou de um casarão com vista para as luzes de Almada, de uma aldeia que se afundou numa barragem. É nesse interior que a linguagem se constrói à procura de sentidos capazes de abarcarem tudo. A solidão, o amor, a memória, a pobreza, a morte, a doença, o definhar do corpo e [o] modo como o tempo age num rosto. E como tudo nele pode ser olhado de forma separada. Os olhos, o nariz, as orelhas. O modo como esse rosto se compõe ao acordar, cada parte que o compõe a tentar encontrar o seu lugar no puzzle. «Quando estamos a dormir somos o quê, expliquem-me».

Classificar os romances de Lobo Antunes é um erro. Entra-se num e sabe-se que aquele só pode ser um território dele. São crónicas do quotidiano, tratados de linguagem onde há um domínio exemplar da fala dos homens e das mulheres sós, sobretudo a fala popular; frases que funcionam como coro na tragédia de que é feito o pensamento quando há medo da morte, da perda, do esquecimento, quando há trauma. A repetição tanto é canto quanto demência. Às vezes canto demencial. Noutras irrompe com humor — «Fica-te bem o verde! ou seja qualquer coisa de couve galega» — e tudo ganha contornos de sátira, escárnio de uma sociedade onde os poderosos gozam com os «sem poder nenhum» que usam os dedos mindinhos, denúncia de «quem não nasceu na abundância». Pode ser crónica a partir de uma pergunta, «qual é exactamente o tamanho do mundo», em que se exercita uma resposta que se sabe sempre falha. Mas este que é o mais breve romance de António Lobo Antunes também pode ser um poema a quatro vozes, a partir de um centro: como chegar à melhor forma de dizer o que ainda ninguém conseguiu. Ele tenta desde 1979, ano em que publicou Memória de Elefante. Tentou ainda agora, 43 anos depois: «A solidão é uma lágrima de torneira que atravessa o escuro desde a cozinha». Ou «pensando melhor a solidão (...) mede-se pelas embalagens de iogurte vazias, com uma colherzinha de café lá dentro».



por Isabel Lucas
em Ípsilon, Público
09.11.2022

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