El País: “Ninguém escreve como eu. Nem eu mesmo”

El País

Entrevista de Antonio Jiménez Barca

23.01.2014

foto de Francisco Seco
Lá fora, a tarde em Lisboa é cinzenta e fria, com um feio aguaceiro que parece não se cansar nunca de ameaçar. Dentro, em sua casa de bairro pobre, como ele diz, António Lobo Antunes (Lisboa, 1942), rodeado de livros por todas as partes, de frases de escritores anotadas na parede, fuma sem parar, sorri com frequência, brinca, convida para uma aguardente e coloca a cinza, invariavelmente, no maço vazio do Marlboro light. Percebe-se que está contente. Há dois anos, o escritor português, candidato ao Nobel e autor de um punhado de obras-primas pelas quais qualquer romancista mataria — Fado Alexandrino, Esplendor de Portugal, A Ordem Natural das Coisas, Manual dos Inquisidores, Os Cus de Judas... — recebeu este correspondente na pequena mesa do canto onde se senta para trabalhar dia após dia, com o ânimo no chão pelo facto de que, segundo ele, provavelmente não iria terminar mais nenhum livro. Desde então escreveu dois romances ou, como diz com seu sorriso irónico, “duas coisas”. Daí o sorriso de quem não se concebe senão escrevendo. Em Espanha está sendo publicado agora Sôbolos Rios que Vão (em Portugal, publicado pela editora D.Quixote em 2010), em que narra sua passagem pelo hospital em 2007, para ser operado de um cancro que superou. A experiência, isso sim, está descrita da maneira alucinada, intensa e poética deste escritor dono de um universo próprio. Por isso, além de enfermeiras, médicos, aparelhos, comprimidos e um paciente chamado Lobo Antunes à mercê do destino e do tique-taque do relógio da morte, o protagonista soberano é a infância.

Então o senhor acabou por superar a crise criativa.
É que os começos dos livros são terríveis. Recomeçar, recomeçar... às vezes entretenho-me a escrever ao modo de Scott Fitzgerald ou Gómez de la Serna ou copio páginas de outros para aprender. Copio, que sei eu, de Balzac. Assim aprendo.

Mas ainda precisa aprender? Ainda não está seguro da sua escrita?
Veja: eu depois dos cancros já não minto. Eu sei que ninguém escreve como eu. Nem eu mesmo. O desafio é chegar a cada dia mais longe, a cada dia fazer melhor, chegar mais perto. Observe o teatro de Tchekhov: espanta que em poucas frases aparentemente simples, como “tenho frio” ou “finalmente cheguei”, possa transmitir gama tão grande de sentimentos. Tudo à base de trabalho: tenho fotocópias dos seus manuscritos, e estão cheiíssimos de correcções.

Neste Sôbolos Rios que Vão aparece, a par com a doença e a sombra da morte, a infância. Porquê?
A minha intenção era... Bom, não tinha nenhuma intenção, só que não me apetecia falar da morte. Apetecia-me falar da vida. Eu não sou crítico nem teórico da literatura, assim, pois, não posso responder bem a essa pergunta. Mas talvez seja por isso. Para mim a infância é a saúde, a vida, a alegria, a esperança... Mas não sei explicá-lo bem. Simplesmente tinha que ser assim. Quando escreves, tens a sensação de que é inevitável que seja assim.

Fala como se os livros já estivessem escritos antes de escrevê-los...
Sim, como estátuas enterradas no jardim que há que desenterrar, e depois limpar e limpar. Talvez um livro seja uma eficaz, solitária e longa palavra.

E o senhor? Saiu diferente do hospital?
Continuei a ser o mesmo. Mas há coisas de que de repente comecei a gostar muitíssimo. O sol, por exemplo, um dia de sol, um dia bonito, o facto mesmo de estar aqui, os dois a falar. Estar vivo é um privilégio, um acaso e um privilégio. Embora, sabe o que mais me impressionou do hospital?

O quê?
A imensa dignidade das pessoas, dos enfermeiros da unidade de oncologia. Todos eram príncipes. Era um hospital do Estado, por isso havia gente pobre, a portar-se com uma dignidade de aristocratas, com coragem, nunca ouvi uma queixa, não ouvi ninguém a rogar ou pedir “salve-me”. As pessoas aguentavam caladas, a sorrir, saudando-te, desejando melhoras, muitas delas com metástase por todas as partes. Sabiam que iriam morrer, e morriam sem se queixar, sem medo. Eu vi gente a borrar-se de medo na guerra. E o espectáculo da covardia é horrível. Vi assim um tenente: todos os oficiais lhe davam pontapés e o insultavam, e o tipo não fazia outra coisa a não ser chorar. A covardia, fisicamente, é feia. Reduz-te a um ser miserável, despojado de toda a dignidade de homem.

O senhor esteve 15 meses na guerra colonial. O que significaram?
Não lhe sei dizer. Talvez você e eu, todos, nasçamos com uma ideia que não nos abandona nunca. Eu não tenho certezas, nem respostas. Só escrevo livros. Eu gostaria que mudassem o mundo, mas não vão mudar nada. Embora talvez sejam uma companhia, um prazer para algumas pessoas. Eu sou apenas um sujeito que escreve livros e espero morrer com a mesma inocência. No fim das contas, somos muito inocentes. Vem um médico, diz-te que te vais curar, que vais melhorar, e tu acreditas...

Neste livro diz que a sua mãe curava tudo com uma aspirina.
Quem me dera a minha mãe com a sua aspirina...

Não pensou alguma vez que acabou-se, já não escrevo mais?
Mas, como vou pensar nisso? Se há tanto por escrever... De qualquer forma, isto ficará em algum momento interrompido. Definitivamente interrompido.

ALA com um manuscrito - foto de Francisco Seco
Em Portugal é muito conhecido também por suas crónicas em revistas e jornais...
Isso só faço porque pagam bem. As pessoas gostam porque são como piscinas para crianças. É impossível afogar-se. Os livros, por sua vez, são feitos para que se afoguem. Comecei a fazer essas crónicas com o meu amigo José Cardoso Pires, de quem sinto muita saudade.

Sempre fala muito dos seus amigos.
A amizade é como o amor: instantânea e absoluta. Conheces alguém e transformas-te no seu amigo de infância, mesmo que já tenhas 40 anos. Para mim é o sentimento mais importante.

Mais que o amor?
E o que é o amor? Você sabe?

Bom, eu sou apenas o que faz as perguntas.
Que conveniente isso. Por que não trocamos?


El País
23.01.2014

[transcrito da versão traduzida para português na "edição brasil" do site da publicação, com ligeiras alterações]]

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