Federico Mengozzi: sobre Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo


Boa Tarde, Angola

António Lobo Antunes é feito para ser lido, não para ser ouvido. Quem quiser que o escritor português, um dos mais aclamados de seu país, esclareça um ou outro aspecto de seu novo romance, o 16o, Boa Tarde às Coisas aqui em Baixo, vai esbarrar em dificuldades. Lobo Antunes não é de pegar na mão do leitor e dar o mapa da mina. Ao contrário: imaginando que formou seus leitores ao longo de 25 anos de literatura, acha que eles podem andar com as próprias pernas. 'O escritor ensina seu leitor a ler', arrisca, falando a ÉPOCA. Por isso, depois de muitas delongas, ele sugere que não lhe perguntem nada e dirijam-se ao livro. Mesmo porque ele apenas o escreveu. 'Não o li. Ao menos não com olhos de leitor.'

Em Portugal, 200 mil pessoas seguiram sua recomendação e foram ao livro, recém-lançado e já na sexta edição. É um sucesso. Mas Lobo Antunes, assim como Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto (brasileiros que ele cita), não escreve para fazer sucesso. O sucesso, se vier, é conseqüência. 'Por que um escritor escreve? Julgo que nenhum escritor saiba dar uma resposta honesta. E a resposta desonesta não me interessa. Escrevo porque circula em meu sangue.' E mais não diz.

É um livro difícil. O autor discorda e cita a alta vendagem. 'Mas é claro que nem todos os que compram o livro o lerão', reconhece, cético. Uma leitura complexa, com parágrafos que a rigor não começam e a rigor não terminam, sem uma história que se revele com clareza, mas em lampejos, flashes que o leitor junta como pode, de acordo com sua percepção. O cenário é a Angola pós-independente, tempo de descaminhos que Lobo Antunes vê sem condescendência. Assim: 'Quando depois do que chamavam independência, isto é dos pretos a entrarem-lhes a porta e a roubarem-nos, isto é dos pretos a matarem-se uns aos outros, isto é dos pretos a transportarem sem desculpas, insultando-se, batendo-se, as mobílias, os fogões…'

António Lobo Antunes é médico psiquiatra, mas atualmente só se dedica à literatura. Participou, convocado pelo Exército português, da guerra colonial e fez de Angola o cenário de vários de seus livros, como Os Cus de Judas (1979), narrado por um médico como ele, que diz de si mesmo: 'Talvez que a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje e intimamente recuso: um solteirão melancólico a quem não se telefona e cujo telefonema ninguém espera...' Por que, mais uma vez, Angola? 'É um lugar onde vivi por muito tempo. Mais precisamente, por dois anos e alguns meses, durante a guerra, que equivalem a mais anos de vida. Não, não fui ferido fisicamente. Mas há muitas maneiras de ser ferido. Foi uma guerra cruel.'

Boa Tarde às Coisas aqui em Baixo volta ao país, mesmo porque, escreve o autor no livro, 'não se foge de Angola'. Um resumo? Lobo Antunes se recusa a fazer isso. 'Se eu pudesse resumir o livro, não o escreveria. Passei dois anos escrevendo.' Não diz, mas deve pensar que não seria mau se o leitor empregasse alguns dias em sua leitura. Tudo se junta no romance, ficção e realidade, devaneios e reflexões, em três partes, mais prólogo e epílogo, nas quais se misturam agentes de espionagem, contrabando de diamantes, atos de corrupção, a Angola que foi, a que é. E o autor, referindo-se à guerra civil, diz coisas como: 'Visto que todas as crianças usam muletas em Angola...' Uma narrativa que não diz, apenas sugere.

Lobo Antunes já foi considerado o anti-José Saramago. Ele nem nega, nem confirma. 'Não cabe a mim responder.' É, ao lado de Saramago, o escritor português mais conhecido no Exterior. E, se o colega já levou o Prêmio Nobel, ele continua cotado para recebê-lo, embora não ligue muito. 'Não acho importante.' Enquanto o outro se transformou numa espécie de voz oficial da cultura lusitana, Lobo Antunes continua à margem. Até porque não é português de raiz, e sim descendente de uma família brasileira radicada em Portugal, que guardava autores como José de Alencar e Monteiro Lobato na estante - ainda hoje, tem muitos primos no Brasil. Por isso, sempre cita autores brasileiros. Como Saramago, mora fora de Portugal - a maior parte do tempo em Paris. E costuma lançar seus livros por editoras não-portuguesas.

Boa Tarde às Coisas aqui em Baixo é um lançamento de acordo com a fama de seu autor: um inovador que vai além da forma e põe o dedo em feridas abertas.

Federico Mengozzi
em Época
[não datado]

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