Ana Paula Arnaut: «A Insustentável Leveza da Morte» - dissertação sobre A Última Porta Antes Da Noite

RESUMO: Partindo de uma base real, como (quase) sempre acontece nos seus romances, A Última Porta Antes da Noite (2018) comprova uma vez mais a notável capacidade de António Lobo Antunes para reformular poeticamente o real, inscrevendo a originalidade na repetição, a diferença na semelhança e a diversidade na unidade. Ainda que aceitemos a hipótese de o autor andar a vir escrevendo «um único livro dividido em capítulos», dada a recorrência das suas obsessões temáticas, e também do uso de certas estratégias compositivas, a verdade é que a variação implica linhas diferenciais consideráveis que, no caso desta obra, permitem, por um lado, distingui-la das que compõem os seis primeiros ciclos, e, por outro, aproximá-la do conjunto daquelas que, segundo já defendemos, integram uma nova fase: a da finitude.


Em entrevista dada à jornalista Ana Sousa Dias em 1992, António Lobo Antunes confessa que os seus romances assentam sempre num «cenário sólido», sendo «a casca» (pessoas, coisas, acontecimentos), depois vestida «por dentro e por fora conforme [lhe] apetece». Ora, se no caso de algumas obras a identificação com a realidade é de difícil, se não impossível, dilucidação, porque a matéria-prima não faz parte do domínio público, podendo resultar de histórias vividas ou contadas (por pacientes do Hospital Miguel Bombarda, por amigos ou por familiares), no que se refere a A Última Porta Antes da Noite (2018) a confirmação do enraizamento no real encontra-se, de facto, ao alcance de qualquer leitor atento ao quotidiano social português (assim como acontece com Que Farei Quando Tudo Arde, 2004, por exemplo).

O ponto de partida do novo capítulo do tal único livro que diz vir escrevendo, é agora, então, uma série de notícias saídas nos jornais em novembro de 2016 sobre o homicídio de um empresário de construção civil do Norte de Portugal, raptado em frente à filha, em março desse mesmo ano. Embora as semelhanças passem ainda pelo móbil do crime ou pelo método adotado para fazer desaparecer o cadáver , entre outros pormenores, a verdade é que o génio criativo de António Lobo Antunes tudo transforma, afastando a tessitura narrativa de um registo meramente documental, que substitui por relatos de marcada dimensão poética, de novo exigindo que caminhemos pelas páginas do que escreve «como num sonho porque é nesse sonho, nas suas claridades e nas suas sombras, que se irão achando os significados do romance, numa intensidade que corresponderá aos [nossos] instintos de claridade e às sombras da [nossa] pré-história».

Um sonho para cuja ambiência volátil contribui a quase ausência de marcadores temporais concretos, nomeadamente os relativos à contagem das horas facultadas pelos relógios. Na esteira do que lemos em outras obras, também aqui – no passado como no presente, em fevereiro ou em dezembro – os relógios dão horas vagarosas ou estão parados, comem os traços do tempo, não têm ponteiros, e, por isso, não o podem dizer. Contudo, tal como o relógio de pulso na mesa de cabeceira da mulher do Doutor, que, apesar de inaudível os ensurdece a ambos, também as restantes personagens, ou as vozes em substituição de corpos que não ganham nunca contornos nítidos, vão progressivamente sentindo que o tempo, por vezes travestido de agentes da Polícia, cada vez mais os aperta, os cerca e os oprime.

Mas para criar a dimensão onírica do romance concorre, sobremaneira, como referimos, o recurso a uma linguagem contaminada por efeitos poéticos assinaláveis, os quais, de forma tão curiosa quanto fascinante, migrando para o além texto, acabam por regular a simpatia do leitor para com as personagens. Referimo-nos em particular, e principalmente, por um lado, à constante referência a uma ave retirada de um verso de David Mourão-Ferreira, um dos poetas de eleição de António Lobo Antunes: a todavia, o pássaro «capaz de voar, não na garganta, mais fundo», nas palavras da personagem encarregada de a trazer para o universo deste romance de António Lobo Antunes: o Irmão do Doutor. Por outro lado, não passa despercebido ao leitor da ficção antuniana o eco metatextualmente poético do final de A Ordem Natural das Coisas (1992) ou de O Esplendor de Portugal (1997), presentes na voz daquela que é, para nós, a mais torpe das personagens de A Última Porta Antes da Noite. Referimo-nos ao Doutor, por quem, apesar de tudo, conseguimos sentir alguma compaixão, como, de resto, em grau e em nível variados, sucede com as outras personagens do grupo, em especial com o Cobrador do Bilhar, que, pelo modo como usa a linguagem para redimensionar o real, nos parece ser aquele pelo qual o leitor mais positivamente regula a sua simpatia.

O excerto que abaixo citamos, respeitante a um momento em que o mandante do crime recorda a relação com a secretária, traz-nos, pois, à memória, por um lado, a «chuvinha de Outubro ascendendo no escuro», por entre a qual Julieta procura o irmão Jorge; por outro lado, convoca, ainda, o caminhar de Isilda, «na areia na direcção dos […] pais, de chapéu de palha a escorregar para a nuca, feliz, sem precisar de perguntar-lhes se gostavam» de si:

          – Até amanhã
          a maior parte das vezes sem um sorriso para amostra e eu começava a contar-lhe os passos diminuindo corredor fora até a porta da rua se abrir com um ganido, fechar com um estalo, depois a do elevador, no seu chiar de cancela de jardim, a transportá-la, baloiçando, até ao rés do chão, quando subia dava-me sempre a ideia de entrar na barquinha de um balão a gás ultrapassando a claraboia do tecto para voar sobre a cidade, cada vez mais distante, cada vez mais pequena, até se tornar um pontinho, comigo dentro, na direcção do mar e seria essa, um dia, a minha maneira de partir, tornar-me um grão de nada entre grãos de nada, por exemplo o grão do meu avô na cadeira de baloiço
          – Traz aí da gaveta a caixa das damas

Estamos, pois, neste como em outros momentos de A Última Porta Antes da Noite, como Carlos Reis já assinalou a propósito da escrita cronística do autor, perante «um espaço que, por ser feito de palavras, encerra um potencial evocativo praticamente ilimitado». Recordando ainda a dimensão poética de obras como Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000), por exemplo, António Lobo Antunes revela-se, mais uma vez, «Como o poeta que é capaz de extrair de um episódio anódino (um ruído, um olhar, uma cor, um objecto de repente descoberto) os sentidos multímodos e plurissignificativos que só a palavra poética é capaz de enunciar».

Além do exposto, cabe registar que, como sucede em outras ocasiões, o sonho, ou a sua ambiência, pontual mas objectivamente se transforma na consciência da composição material de um livro cujo relato é, ou parece ser, delegado no Segundo Cobrador:

          (…) não sei se num café ou numa casa ou na sede da polícia, preferia que num banco do parque sob as todavias onde a irmã do homem observava sem nos ver os próprios dedos enquanto eu lhe contava este livro (…)
          (…) no fim do miradoiro, um comboio a diminuir, os ninhos das cegonhas vazios, um texugo entre as ervas, esses bichos miúdos que a noite traz consigo, o ventinho de outubro a desordenar os arbustos, um cão vadio a alargar-se numa curva para se afastar de nós, este livro acabado, o que tenho mais a dizer, a minha avó numa censura em segredo
          – Para quê tudo isto menino?
          e o livro no fim, mais umas páginas e fecham-no (…)

Às cinco vozes que dão corpo à respiração poética, mas violenta, do romance (Cobrador do Bilhar, Irmão do Doutor, Ervanário, Segundo Cobrador, Doutor), que, sensivelmente até meio da obra, mantêm a mesma ordem de entrada em cena, cabe, portanto, a apresentação gradual, em registos que mutuamente se completam e, por vezes, se auto e heterocorrigem, da informação relativa ao crime cometido (preparação, consumação, ocultação e prisão de todos os membros do grupo). Sem grande dificuldade, e desde o início, o leitor apercebe-se, no entanto, de que este é apenas o mote que permite às personagens (ao autor?) as várias e sucessivas glosas em torno de algumas das mais conhecidas linhas temáticas da ficção antuniana: os desafectos, ou a carência dos afectos, a solidão, o abandono, o medo (que é também o da morte, este sobre todos os outros), o esfacelamento interior, a doença, ou a procura de quem se é. Tal como sucede entre a capa e a contracapa de outros universos narrativos, o essencial parece concentrar-se «no modo como seus personagens exprimem a sua vivência do cotidiano, que é maioritariamente invadida pela evocação do passado e da infância, mas também tingida pelos sonhos que se projetam no futuro, pelas fantasias que há lugar para querer viver» (Maria Alzira Seixo).

Deste modo, em contraponto com as vivências de presentes ensombrados pelas mais variadas angústias, todas as personagens protagonizam movimentos retrospectivos, de amplitude diversa, que as transportam quer para o tempo de preparação e de execução do crime quer para o tempo pretérito da infância. Esta, embora reduto de vidas mais felizes, surge já marcada por traumas, maiores ou menores, que, freudianamente, ajudam a explicar as atitudes e as acções do presente, pois, como assume um dos homens, o Irmão do Doutor, «com o tempo tudo gela por dentro».

Não por acaso, em momento de retrospecção que o leva àquela época, o Cobrador do Bilhar retoricamente se interrogue sobre «quem não tem um baú na cabeça cheio de tralha antiga, episódios na aparência sem nexo de repente a ganharem sentido e o passado a crescer», e ao qual (confundido embora com a pequena que mora consigo) pede que lhe conte quem é, que lhe explique a sua vida, que lhe pegue na mão, porque «é tão difícil sozinho».

Assim, a título de exemplo, talvez a falta de afecto do pai do Ervanário, que o abandona e à mãe, justifique o desabafo em que dá conta do ódio à figura paterna (inequivocamente transferido para o homem), em articulado discursivo que, de forma recorrente e de modo violento, e, porém, impregnado de impressionantes notas líricas, funde e confunde tempos e seres:

          (…) não sei se era no homem ou no meu pai que batia a gritar-lhe
          – Por que motivo não quer saber de mim por que motivo nunca me procurou?
          e o meu pai tentando fugir-me sem conseguir fugir, tentando empurrar-me, tentando esconder-se debaixo do automóvel comigo a puxar-lhe a perna, a puxar-lhe o braço, a puxar-lhe o pescoço, a rasgar-lhe a calça, a manga do casaco, o colarinho enquanto um único olho me fixava, acho que a ver mas acho que não me via, acho que esquecido de mim e eu
          – Só se lembrou de si mesmo não foi só se lembrou de si mesmo
          de modo que lhe verti o ácido sulfúrico em cima senhor, de modo que o entornei no rio, de modo que no dia seguinte aposto que a sombrinha contra o muro no passeio do outro lado, em frente da marquise à espera dele o dia todo, ao cair da noite foi-se embora devagarinho, derrotada, se passar na rua da minha mãe, numa manhã de chuva, encontro-a lá de certeza, talvez arranje coragem para lhe tirar a sombrinha mas tenho medo que ao tirar a sombrinha dê não com uma mulher qualquer, com a irmã do homem por baixo dado que as alunas do secundário teimosas, a irmã do homem a fitar-me com as todavias em torno e eu na garagem a bater no meu pai, não apenas com a soqueira, os pés, a cabeça, como posso querer encontrá-lo se agora uma pasta amarela e negra no meio de girinos, sereias e peixes, a minha mãe sem acreditar em mim
          – Estás a dizer que o mataste?

Na mesma ordem de ideias, a maior fragilidade emocional que nos parece caracterizar o «palerma» do Irmão do Doutor, e que o leva a bater no homem menos do que os outros, ainda que diga fazê-lo «por respeito à irmã» deste, pode, porventura, enraizar-se em alguns traumas da meninice: no facto de se ver como feio, gordo e desajeitado, na circunstância de nunca ter tido «diminutivo nenhum», o que, segundo ele, explica a sua «infância infeliz» e a sua «melancolia de adulto», e, principalmente, no episódio em que, na praia, um veterinário amigo do pai, tenta abusar dele.

Seja como for, ainda que cheios de infância dentro, ainda que capazes de, ocasionalmente, se comoverem com os pequenos nadas do quotidiano, todos eles se consubstanciam, por conseguinte, num contraponto inultrapassável, em seres interiormente dilacerados, «peças sem alma», em analogia sugerida por ocasião do jogo entre o Cobrador do Bilhar e o polícia que o prenderá. Por isso, a tessitura narrativa é pontuada por referências que nos fazem mergulhar (afundar? afogar?) no mais íntimo recanto de cada uma destas almas fragmentárias, incompletas e desalinhadas, em si mesmas, na relação que vivem com os companheiros do crime e nos laços que mantêm com outras personagens do romance, nomeadamente com as femininas, também elas, aqui, objecto de violências diversas.

Assim, a título de exemplo, se do Doutor se diz «tropeçar no interior de si mesmo», em expressão atribuída com uma pequena variante ao Segundo Cobrador (que, de forma sucinta, tropeça «em si mesmo»), do Ervanário regista-se a voz «despegada do corpo a criar palavras sozinha que depois a gente nem supõe que fomos nós que as dissemos». À semelhança de exemplos que podemos colher em outros romances da constelação antuniana, a impressão (a certeza) de incompletude é ainda facultada pelo viés de uma técnica de caracterização que já designámos como em segunda mão, isto é, resultante do paralelismo que é possível delinear entre os traços das personagens (físicos e/ou psicológicos) e certos elementos de índole diversa, apenas aparentemente anódinos no que toca às potencialidades de representação do carácter das criaturas que percorrem as páginas do romance.

Deste modo, salvaguardando o imperativo de as adaptar ao contexto específico de cada uma das delas julgamos que seus retratos podem ser desenhados a partir de expressões-imagens como as seguintes: na «bailarina de vidro com uma falha no cotovelo», nos «caranguejos a avançarem nos penedos de patas aleijadas», num «tanque de roupa com uma perna a menos», no «automóvel do ervanário (…) com uma das lâmpadas traseiras fundidas», ou, ainda, em síntese que depois se explicita, no «que a gente encontra debaixo do sítio onde descansa (…), um botão de punho desirmanado, metade de um brinco, um resto do sol de ontem». Em última análise, estes seres falhos e incompletos encontram correspondência discursiva parcelar no desmembramento de períodos, na incompletude e nas suspensões semânticas de tantas das palavras que habitam o romance, como, aliás, é característica de grande parte das obras de António Lobo Antunes.

Todos, seres que se despenham no parapeito de si mesmos e que com eles nos arrastam pelos rios das frases, sílaba a sílaba, tirando as máscaras, e, num eco da ópera O Castelo do Barba Azul, do húngaro Béla Bartók, abrindo as portas de e para os segredos-espetáculos das suas vidas, passadas e presentes (do brilho da infância à escuridão do crime), desse modo procurando um sentido que, porém, sempre se revela difícil, ou, mesmo, impossível, de alcançar. Cada um deles acaba, portanto, como Barba Azul, por ficar irremediavelmente entregue à solidão, que foi a do casamento ou, talvez, a de toda a sua vida, e que é, no final, também a da clausura após o julgamento, também esta passível de ser entendida como uma espécie de morte.

Lembramos a propósito que, anos antes, quando publica a crónica «A Última Porta Antes da Noite» (sobre o falecimento do poeta Manuel António Pina), o autor escreve em Post Scriptum: «esta crónica chama-se assim porque Bartók, sei lá porquê, me veio neste momento à cabeça». Adaptando ao contexto melódico do romance as palavras de George Steiner, aqui, tal como na obra de Bartók, personagens-protaganistas e autor abrem, ou tentam abrir, «a última porta do castelo embora ela possa levar, ou talvez porque ela pode levar, a realidades que estão para além da capacidade do entendimento e controlo humanos. [Fá-lo-ão] com a lucidez desolada, que a música de Bartók prodigiosamente nos comunica, porque abrir portas é o trágico preço da nossa identidade» (George Steiner, No Castelo do Barba Azul. Algumas Notas para a Redefinição da Cultura).

Não sabemos se, com a escrita de A Última Porta Antes da Noite, Bartók voltou novamente à inconsciência consciente(?) do autor, mas a verdade é que existem vários fios, pontas soltas, ou apenas aparentemente soltas, que parecem unir os textos que, no limite, apontam para ele próprio e para o que julgamos (sentimos) ser a sua mais recente obsessão: a morte e, em concomitância, a vida como o caminho que a antecede. Esclarecemos que não pretendemos contrariar a presença destas linhas temáticas na globalidade da sua produção ficcional. Numa leitura e numa delimitação que assumimos como subjectivas, pensamos, porém, que a partir dos romances publicados depois de Da Natureza dos Deuses (2015), inclusive, a morte enquanto horizonte temático se lhe torna cada vez mais próxima, mais íntima, e, portanto, cada vez mais sujeita a ponderações tingidas de uma humana filosofia que a todos toca e que a todos chegará. Propusemos, já, por isso, que esse título inicie uma nova fase de produção literária de António Lobo Antunes: a da finitude.

Referimo-nos, assim, no caso do romance em apreço, não apenas ao facto de a morte efectiva do homem pelos cinco amigos de infância constituir o corpo central da narrativa, mas também ao facto de esta ser constantemente pontuada pela menção ao óbito de outras personagens e às consequentes reflexões em redor da vida. Sabemos, pois, ainda, do falecimento do cunhado do Cobrador do Bilhar, o que o leva a confessar que «ainda não entendo o meu cunhado porque em geral as pessoas demoram tempo a morrer, teimam em agarrar-se à vida e o que vale a vida, quem é feliz neste mundo ponha o dedo no ar». Em reflexão desencadeada pelo crime cometido, que metaforicamente resume a decadência física, o Ervanário considera que:

          a partir dos trinta e cinco tudo começa a negar-se desde as gavetas à memória, olha a chave da entrada por exemplo, outrora tão simples, à qual a fechadura já resiste, olha o polibã cada vez mais tremendo de entrar lá dentro porque o rebordo subiu metros e metros e os joelhos não dobram ou dobram aos estalos como as navalhas espanholas em saltinhos penosos, a idade é uma empresa de demolições, desde a memória aos ossos, de modo que aquilo que o caixão levará já não éramos nós, sobras dispersas, sem préstimo, que se deixam varrer para uma pá qualquer.

O Doutor, que chega a desejar a morte do pai, por sua vez, encara a vida como um teatro, sentindo «ganas de pedir»

          – Por favor endireita-te e vai ao camarim tirar a tua morte com um algodão molhado tem paciência
          Porque de repente não é a sua, é a nossa morte que vemos enquanto perguntamos cheios de medo
          – Tornei-me assim também?

Se para o irmão deste, que assume o medo do fim, «morrer é um acto que infelizmente demora», como se verifica pelas palavras do Cobrador do Bilhar ao descrever a doença (cancro) do pâncreas do seu pai, para o Segundo Cobrador, que confessa ter matado o homem «não por raiva» dele mas por raiva de si, «derivado a ter aceite o trabalho e portanto não a matar-te, a matar-me matando-te», a vida não se consegue aguentar «sem vontade de corrigir o texto inteiro» .

Dito ou pressuposto, no entanto, a correção do texto que é a vida não é possível. O que foi não pode ser alterado, o passado longínquo ou próximo permanece sem remissão. O tempo, inexorável, tudo desmembra e devora, deixando-se apenas perceber pelo que «escreve em rugas na nossa testa»; rugas que «nos dão medo por cuidarmos que é o anúncio da morte sem compreender que aquilo que nos espera é pior do que a morte, é a solidão não porque os outros nos abandonam, porque somos nós quem se vai embora da gente». O tempo, tal como os comboios que dele podem servir de metonímia, não volta nunca atrás, como sublinham o Ervanário e o Doutor. Este, apesar de nas linhas finais do romance, pela memória da sua imaginação de criança, voar no bico de uma cegonha em direção a Paris, não deixa, como os outros, de ter consciência da prisão.

Solitários, na estação que é a da vida, para continuarmos na linha imagética oferecida pelo líder do grupo, as personagens permanecem na mesma penosa noite, que começa cedo, no nascimento, ou na infância sempre presente, e, todavia, sempre e sempre ausente; sempre e sempre demasiado longínqua, tal como os comboios que nunca as levam consigo. E para onde iriam, Cobrador do Bilhar? Para onde, Segundo Cobrador? Para onde, António, escrita (aberta?) que está a última porta antes da noite?


por Ana Paula Arnaut
fonte: University of California

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