«As Crónicas: uma epopeia interior», por Teresa Carvalho
Nas mãos de António Lobo Antunes, não há “croniquinhas”, verbais tendas quinzenalmente armadas ou géneros menores, há literatura e a catedral de palavras que em 1979 começou a levantar. A selecção de crónicas que a Dom Quixote agora publica faz prova disso mesmo.
É bem conhecida a baixa estima literária que António Lobo Antunes dedica às crónicas que ainda na década de 80 começou a publicar na imprensa portuguesa: “bonecos”, “riscos”, “coisinhas puramente alimentares”, “prositas”, “croniquinhas” – “Tão bonitos os diminutivos na nossa língua”!, escreve num desses textos de registo aparentemente ligeiro. Se transitarmos para a esfera do verbo, a desvalorização sai reforçada: gatafunhar, alinhavar, esgalhar são verbos muito usados sempre que se refere à escrita cronística. Junte-se-lhe 'vagabundear', como se por vezes a crónica lhe fugisse da mão para caminhar à rédea solta: “Que diabo de texto é este em que comecei em Dickens e já vou nas redondilhas?” Ou, noutros casos, como se o cronista se limitasse a prestar ao leitor uma espécie de serviços mínimos, e nem sempre assegurados. “Crónica que não me rala um chavo como ficou” é bem um exemplo do entendimento destes textos como coisa menor.
Se os romances pretendem ser uma “catedral de palavras”, sempre em construção, as crónicas seriam assim uma casa modesta, uma casita, com telhados de várias águas (as crónicas ficcionais, as crónicas de incidência autobiográfica) e que se escreve com uma grande diversidade de registos. Há-as humorísticas, irónicas, satíricas; há-as líricas, elegíacas, dramáticas, evocativas. E é nesse espaço substancialmente habitado, sempre pronto a dissolver e a sabotar convenções estabelecidas, que soltamente nos fala de si e da casa de Benfica – com as guardas da ficção, naturalmente –, do nó familiar, dos amigos, da guerra colonial, da escrita dos seus romances, do que considera ser o estado da arte: “a gente entra numa livraria e pasma: milhares de livros e apenas quatro ou cinco escritores. Em Portugal, quantos haverá? Não mais que dois, três na melhor das hipóteses. O resto são fabricantes de parágrafos, para quê dourar a pílula...” Vale a pena lembrar que a 'casita' se constrói com alguns materiais directamente carreados da obra romanesca (acontecimentos, figuras, cenários).
O título do volume que a D. Quixote agora publica ajusta-se à ideia da crónica como trabalho menor: eis “As crónicas”, como se o autor, um tanto encabulado, nos entregasse um objecto com defeito de fabrico, um sub-produto da literatura. Este volume, centrado na existência “como arte do inacabado”, com tanto de reflexivo, como de entretenimento intelectual e de elevação humorística, faz desabar ideias feitas. E é uma ideia feita, mas de curtíssima perna, a de que a literatura se divide em géneros maiores, como o romance, e géneros menores, como a crónica. Ora, nas mãos de Lobo Antunes todos os géneros são maiores. Em mãos inaptas, desastradas, até o que é maior se faz pequeno. Para quê dourar a pílula?
Reunindo 173 crónicas escolhidas a partir de mais de quatro centenas de textos publicados em cinco livros, entre 1988 e 2013, às quais vêm somar-se nove crónicas inéditas, dispostas por quem conhece bem os cantos à casa, Maria Piedade Ferreira, a editora de Lobo Antunes, o volume faz pensar numa epopeia interior, de fio diegético descontínuo e fragmentado. Com os seus heróis e glorificações (a da infância entre todas a maior), as suas profecias (ALA, “o que vai mudar a literatura”), suas tempestades, tormentas, torvelinhos de dúvidas, as suas zonas de negrume. Mas também com bonança, momentos de alegria, talvez aquele contentamento descontente de que fala Camões, longe de equilibrar com o “rebuliço de cataclismos interiores, angústias, aflições”. Numa destas crónicas, fala-nos de um sismógrafo no lugar do coração, “que reagia com intensidade desmedida à menor tremura de fora e de dentro”. Navegante indómito, Lobo Antunes move-se na órbita do desafio e da superação: “eu lutava com a imortalidade, indiferente a ossos, músculos, articulações” (p.544), ou “acabando esta crónica regresso ao livro: ali está ele à minha espera, fazendo negaças. Não tem sorte nenhuma: vou ganhar. Nem que a pele fique pelo caminho vou ganhar” (p. 574). A mão sempre armada com o lápis vermelho, “destinado a uma carnificina de emendas”.
Se todo o herói épico tem a sua meta, para Lobo Antunes, que consagra a experiência da viagem como esforço humano, não há meta nem termo nem “fita de chegada”: “e tenho pena de mim porque triunfarei na derrota: um tiro bem acertado deitar-me-á ao chão a meio do voo, e serei uma perdiz esfarrapada numa moita, que um cachorro abocanhará para a entregar ao dono, o mesmo dono que traz, pendurados do cinto, aqueles que me precederam e enganchará no mesmo cinto os que vierem depois, com idêntica indiferença”, escreve na crónica “Deste profundo abismo, Senhor”. E é também por isso que o insuflar de capacidades, aquele orgulho confiante, que transparece de forma modelar n’ Os Lusíadas, na fala do Gama ao rei de Melinde, dá nestas crónicas lugar a um cortejo de insuficiências, impotências, derrotas a que o tempo, uma vez expirado, nos sujeita. Na ausência daquele remédio santo e forte dos nautas de Camões – “Divina Guarda, angélica, celeste!” – restam sempre a Lobo Antunes os 'lexotans' que faz engolir a algumas das suas personagens, que são o sucedâneo farmacêutico do ânimo necessário à “maratona angustiosa e exaltante” (p. 581).
Neste livro de crónicas, muito sensível à efemeridade e ao inane, a arte e o engenho podem bem vir render a musa antiga, que falha quanto mais necessária seria: “Estou há meia hora aqui sentado à espera que venham as palavras para esta crónica e nada.” É o que acontece, por exemplo, n' “A crónica que não consegui escrever”, e que no entanto resultou desportivamente admirável: lances de bola, aventuras com dentistas, golaças, degolas, banheiros da praia das Maçãs, robertos à cabeçada numa barraca de lona...
Esta epopeia, de que também se conhecem notícias de solicitação persistente – do jornal Público, da Focus, da Visão –, obedientemente escrita, parece inverter em parte a máxima pombalina. Vivos e mortos, desenterrados com cuidados de poeta, habitam mundos adjacentes numa escrita que não raras vezes se estrutura em função de um dialogismo desesperado, que pode bem dispensar as palavras, que está por vezes para lá das palavras. E não conhece outra retórica que a das imagens e dos vestígios: passos, pegadas, ecos, rumores, retratos, a reiterarem o papel que é o de todos os retratos – compensar ausências: “Dessa fotografia não sobrou muita coisa, o cenário desvaneceu-se quase todo, as pessoas principiam a desaparecer” ou, na crónica em que evoca o amigo Cardoso Pires: “se não fosse desagradável para o teu pudor, confessava-te que tenho o teu retrato ali, naquela mesa […] o olhinho divertido atrás dos óculos, a boca de quem acabou de pregar uma partida ao mundo e se escondeu num canto a troçar dele”.
Nestas admiráveis crónicas, a moverem-se na esfera dos pequenos formatos domésticos e quotidianos que transportam no seu curso a nossa história coletiva, vai passando Portugal, com as suas peripécias, suas proezas de taberna, fraquezas quotidianas, cansaços, desencantos, frustrações, lágrimas contidas (“Que mariquice chorar”), correlativos do desamparo em que se vive. São lusíadas sem recursos de salvação nem ajudas providenciais os que povoam as páginas destas crónicas de medida humana. O amor é uma ilha afundada, pelas relações difíceis, frias, fracassadas, impossíveis.
Os “heróis”, em muitos casos gente mais ou menos anónima, rompem com o retrato exemplar do herói clássico. É o caso do Pontinha, com os seus “dentes mal plantados”, batido pelas ondas do infortúnio quotidiano, a bater e a levar da mulher; do Necas bêbado, com um cabelo que é “um hino à caspa e à gordura”; do Florentino, “bebedor homérico”, ou do senhor Joaquim, “pequeno e bexigoso”, orgulhoso da doença de Parkinson do filho. E são raras as mulheres com “orgulho de navio à vela”.
No centro desta “epopeia”, que oscila entre uma ferocidade quase doce e a fúria indignada, está o António, “o das faíscas”, e a arte de o chamar. E nem sempre é preciso descer à infância ou subir aos decibéis da mãe: “Antóóóóóóónio”. Por vezes, basta um aceno, um olhar lançado ao caminho andado. São muitos os modos de se/nos chamar: há a dúvida: “Serei capaz?”; a pergunta: “Como se faz um livro?”. E há sempre a possibilidade de se chamar através de interposta pessoa, como na crónica “Para José Cardoso Pires, ao ouvido”. Chamar os outros, trazê-los ao espaço da crónica, sumariar-lhes as falas, por vezes só aparentemente destituídas de dignidade épica, evocá-los é ainda chamar-se a si próprio.
A este volume de crónicas agora publicado, onde se acham as marcas do universo estilístico do grande Lobo Antunes romancista, reconhecível a milhas náuticas, não faltam forças de sedução. E uma delas é o humor, esse lugar onde sempre pode acolher-se um fraco humano.
por Teresa Carvalho
em Jornal I
12.10.2021
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