Norberto do Vale Cardoso: António Lobo Antunes - Da Natureza do escritor

[...] a velhice não é roubarem-nos o futuro, é terem-nos roubado o passado, até a voz dos meus pais levaram, porém isto que digo continua a acontecer [...]
António Lobo Antunes, in Da Natureza Dos Deuses

Baseado no título homónimo de uma obra de Cícero, De Natura Deorum (45 a.C.), o novo romance de António Lobo Antunes (o 26º desde 1979), é um livro simultaneamente mágico e perturbador. Através dele cruzamo-nos com o secreto, o misterioso, o indecidível, mas também somos conduzidos aos meandros do mundo tenebroso do poder. Ora é na língua que o poder se inscreve, mas é também através dela - enquanto lugar onde a servidão e o poder se interpenetram - que o escritor pode encontrar um modo de liberdade. Efectivamente, a literatura é a capacidade que o escritor tem de "conhecer a língua no exterior do poder", de exercer sobre a língua um "trabalho de deslocação", diz Roland Barthes na sua Lição (Ed. 70, 2007, p. 16). É desta capacidade de "trapacear a língua", e não do comprometimento político nem do conteúdo doutrinal, que depende a liberdade da criação. E António Lobo Antunes (ALA) é, acima de tudo, um escritor de sensibilidades comprometido com a natureza mágica da palavra.

A sedução exercida pela obra de ALA reside, em parte, na constante busca do novo sem que este seja um fim em si mesmo, mas um processo continuado. E este livro não é excepção, prosseguindo um trabalho quer de reiteração quer de inovação da palavra, da frase e da narrativa tradicional para criar um novo romance (vejam-se, a este nível, os intricados, tais como: "não pronta a proteger-, palram pega e papagaio,-me, pronta a proteger o meu dinheiro", De Natura Deorum - ND -, p. 523). A reiteração é só aparente, pois a insistência temática é um modo de interpelar o leitor e de transfigurar o que foi dito.

Trata-se de uma transfiguração do mundo através do acesso à palavra (sublinhe-se aqui a importância das chaves "misteriosas, secretas", que, no capítulo inicial, abrem a livraria, em Cascais, e das coisas, inconfessáveis, que se passam na cave desse lugar), sendo esta compatível com o modo, quase autónomo, como as personagens se movem dentro da obra, contando ou escrevendo a sua versão dos acontecimentos, e, em simultâneo, movendo (e movendo-se) (n)o tempo como se este fosse uma teia única, ainda que com distintas texturas que se entretecem. 

Como dizia Marcel Proust (À Procura do Tempo Perdido II: À Sombra das Raparigas Em Flor, Relógio D'Água, 2003, pp. 191 e 225), "o tempo de que dispomos em cada dia é elástico", sendo a vida "pouco cronológica". Este conceito em tudo se conecta com a citação que usamos em epígrafe, pois na obra de ALA não devemos considerar a existência propriamente dita de um passado, antes de um presente em que tudo "continua a acontecer", ou seja, de um presente que congrega todos os passados, tantos quantas as versões que deles podemos fazer. 

Esta vivência pessoal e íntima do tempo é estruturante nos seus romances, e vem chocar com o tempo socialmente imposto, pois o tempo é uma construção do poder e a língua desloca-se no seu exterior. Portanto, ganha aqui assentimento cotejar a passagem de Proust com a de ALA por um segundo motivo: a velhice, condição que faz parte da natureza humana, consiste, não no facto de nos roubarem o futuro, mas em "terem-nos roubado o passado, até a voz dos meus pais me levaram, a casa onde nasci desapareceu, nem um objecto me ficou na memória" (ND, p. 465).

Eis-nos no cerne de Da Natureza Dos Deuses, livro denso (580 páginas, quatro partes, 37 capítulos), em que a densidade do poder se assemelha à densidade dos deuses, que impõem a (sua) estabilidade como suposta condição para a estabilidade social. A sustentação dos novos deuses passará, precisamente, por apagar, alterar ou roubar o passado. Lembre-se que George Orwell (in 1984, Antígona, 2012, p. 213) falava na "alteração do passado", que entendia ser "possível" por um "sistema de pensamento" designado "pela palavra duplopensar." Esta consiste na crença e aceitação simultânea de duas ideias, ainda que contraditórias. De facto, as personagens deste novo romance de ALA, mas também, por exemplo, as de Fado Alexandrino ou de As Naus, sentem que algo de muito precioso e irresgatável lhes foi roubado: o tempo. 

A sensação de perda é, pois, irresgatável e, na sua obra, nunca é colmatada por qualquer ganho, seja ele de que espécie for. Lobo Antunes vem, assim, abrindo novos paradigmas, que, em suma, se consubstanciam na ideia de que os portugueses têm sido amputados de um passado, o que coloca em causa a passagem da ditadura para a democracia e, em último plano, a possibilidade de um futuro. Na verdade, neste ND, sucessor de Caminho Como Uma Casa Em Chamas (2014), são dois os donos de Portugal, e são eles que tudo decidem pelos portugueses, que são "os palhaços" desses senhores, com especial destaque para "o senhor doutor", herdeiro do poder da Banca:

"[...] ele o dono dos bancos, das companhias, das empresas, das fábricas, ele o dono de tudo e eu um palhaço entre tantos palhaços, dúzias de palhaços à sua volta nos jantares, no escritório, na casa, [...]" ( p. 217)

Só a personagem do "sem abrigo" parece colocar algo em causa, o que pode parecer absurdo, sobretudo se considerarmos que esta personagem está destituída de todo o tipo de bens materiais e, ainda, de relações que lhe dêem acesso ao poder. Mais do que isso: o "sem abrigo" não fala nem intervém em quaisquer dos núcleos narrativos. No entanto, esta personagem prefigura-se, ela própria, como o núcleo da narrativa, pois é em torno dela que se adensa o mistério (não se conhece a sua identidade), o silêncio (não fala nem dialoga) e a imutabilidade das coisas (não parece mudar). Errando por todo o lado, é visto de diferentes maneiras sob distintos olhares. Para uns não passa disso mesmo, de um simples sem abrigo, havendo outros que conjecturam que pode tratar-se de uma entidade celeste, o que lhe daria uma natureza divina:

"[...] entretido a espalmar a rolha na garrafa glorificando o Altíssimo, a voar às curvetas, com o seu disfarce de pedinte, na direcção do mar onde Cristo caminha, relacionada com Cristo uma outra questão se foi formando em mim acerca do sem abrigo, seria ele Jesus [...]" (p. 335)

Nesse sentido, o sem abrigo, que caminha em direção ao mar, parece ter algo da natureza dos deuses, o que vem contrapor-se aos que se julgam como tal, e que pretendem evitar a todo o custo que o seu poder naufrague. Amputado de História, o sem abrigo, como uma espécie de náufrago ou anjo caído, vive a pequenez do seu dia a dia sobrevivendo, dormindo no umbral da livraria (acesso, porventura inacessível, ao conhecimento, questionando-se aqui o poder dos livros, que saem da cave da livraria para cercar a casa do "senhor doutor"), indiferente ao que se passa no seu país. Ele será um palhaço pobre que viu transformada a utopia de navegar (a revolução do 25 de Abril) em sua própria distopia, e que considera a democracia com indiferença e desesperança, devido ao descrédito para com poder político, que se encontra submetido ao económico, cujo centro é uma casa "empoleirada" num "alto" (o novo Olimpo). 

Se nada muda neste país, António Lobo Antunes é um cicerone daquilo "que constantemente muda" (crónica "Adeus", in Visão, 18.10.2012): a natureza do romance como um caminho perceptível para resgatar o passado perdido e/ ou "roubado" e para, através dele, imaginar outra natureza para as coisas e para os sonhos. 


por Norberto do Vale Cardoso
em Jornal de Letras
publicado on-line em 07.10.2015

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