Larry Rohter: opinião sobre The Land at the End of the World (Os Cus de Judas)

Sobre a ingénua missão num império colonial moribundo

Experiências de combate são como as famílias infelizes de Tolstoi: não há duas iguais, e pode ser por isso que muitas das vezes valem grandes romances, como Tolstoi também sabia. O motivo não tem de ser necessariamente nobre, uma vez que situações de desespero e de violência sem sentido podem na realidade dar força a uma obra de ficção. É certamente o caso de Os Cus de Judas de António Lobo Antunes, passado em Angola no início dos anos 70, quando Portugal faz um esforço absurdo para preservar o Império em África que sinuosamente caminhava para um fim inglório.

O narrador sem nome é um jovem médico arrancado de uma vida confortável em Lisboa e forçado a passar 27 meses na linha de frente tratando dos seus camaradas infelizes. Ressente-se por terem sido feitos "agentes de um fascismo provincial que foi corroendo e corroendo-se com o ácido lento de sua própria triste e paroquial estupidez." Mas principalmente fica enojado com os corpos mutilados entregues aos seus cuidados, e com medo que o mesmo possa acontecer consigo. Embora haja momentos de humor, quase sempre mordaz, isto não é "M*A*S*H", mas algo de longe mais sombrio e ainda mais absurdo.

"Os Cus de Judas", recém-traduzido por Margaret Jull Costa, foi publicado originalmente em 1979, quatro anos após a retirada de Portugal de África e do colapso final da intervenção americana no Vietname. Naquela época era interpretado como uma crítica à futilidade inerente das então aventuras dos ocidentais sobre o terceiro mundo. Porém, lido trinta anos depois e isolado dessa circunstância, esse legado de que o narrador de Lobo Antunes apelida como a "aprendizagem dolorosa de morrer", ninguém duvidará que faz todo o sentido para os sobreviventes das guerras no Iraque e no Afeganistão.

"O que fizeram de nós", questiona o narrador numa das suas frases tipicamente longas e torrenciais, "aqui sentados à espera nesta paisagem sem mar, presos por três fieiras de arame farpado numa terra que nos não pertence, a morrer de paludismo e de balas cujo percurso silvado se aparenta a um nervo de nylon que vibra, alimentados por colunas aleatórias cuja chegada depende de constantes acidentes de percurso, de emboscadas e de minas, lutando contra um inimigo invisível, contra os dias que se não sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o remorso, contra a espessura das trevas opacas tal um véu de luto".

De volta a Lisboa, com o seu casamento ainda outra vítima da guerra, o médico traumatizado não encontra consolo. "Flutuo entre dois continentes que me repelem, nu de raízes", diz. "Deixei de ter lugar fosse onde fosse, estive longe demais, tempo demais para tornar a pertencer aqui, a estes outonos de chuvas e de missas, estes demorados invernos despolidos como lâmpadas fundidas".

Mesmo o sexo não serve para alívio, ou distracção, já que ele é capaz apenas de encontrar mulheres "como quem descobre trocos inesperados no bolso do casaco de Inverno". A história do narrador desdobra-se ao longo de uma longa noite ébria em que ele consegue, embora emocionalmente divido, seduzir uma mulher que acaba de conhecer num bar, e "que oferece o ar asséptico competente e sem caspa das secretárias de administração". Ele sabe que este escape erótico vai acabar como todos os outros : com "a derrota molhada de dois corpos exaustos no colchão", após um coito que tem o "júbilo mole com que dois fios de esparguete se cruzam".

Como Anton Chekhov, William Carlos Williams e Moacyr Scliar, o Sr. Lobo Antunes pertence a esse selecto grupo de escritores que também são médicos - um psiquiatra, para ser mais preciso, tendo exercido num hospital de campanha em Angola. Mas o romancista médico talvez mais se assemelhe a Louis-Ferdinand Céline, cujo "Viagem ao Fim da Noite" é também um reflexo grotesco sobre o horror da guerra e o fracasso do imperialismo europeu em África. Lobo Antunes contou como, quando era adolescente, conheceu o "deslumbramento" com a leitura de "Morte a crédito" de Céline, e que escreveu uma carta para o francês misantropo, que lhe terá respondido com, como recorda, "uma ternura imensa."

A versão original do romance de Lobo Antunes tem um título ao estilo de Céline, adequadamente escatológico, que se refere à anatomia de Judas e que se trata de uma expressão da gíria portuguesa que significa algo como "fim do mundo." Jull Costa teve de encontrar um substituto menos pungente [a tradução aqui referida, a mais recente, leva o título em inglês "The Land at the End of the World"], como foi feito numa tradução anterior, publicado em 1983, intitulando o livro de "South of Nowhere". Mas uma vez que a história começa, a sua prestação sobre a linguagem do romancista e do seu estilo é simplesmente esplêndida. Ele criou um narrador memorável desarticulado, e ela conseguiu capturar, perfeita e fielmente, o tom amargo, alucinado e cada vez mais desesperado do seu monólogo.

Talvez devido à sua experiência como psiquiatra, Lobo Antunes é também um escritor extraordinariamente observador, que assim parece ter conseguido um dom especial para inventar metáforas incomuns, mas acertadas. Nuvens de chuva nos trópicos são "tão pesadas como úberes," um soldado exausto atira a sua espingarda "por cima do ombro como se fosse uma cana de pesca inútil", uma professora magra de um posto colonial deserto tem "clavículas tão salientes como as sobrancelhas de Brejnev", e durante a recruta o narrador encontra-se "à ilharga de um aspirante gordo e inseguro como um pudim flan na borda de um prato".

[...]

por Larry Rohter
em The New York Times
29.06.2011
[traduzido do inglês por José Alexandre Ramos]

Comentários

  1. Em relação à escolha do título em inglês, preferia South of Nowhere - era um título mais antuniano (A sul de lado nenhum) do que The land at the end of the world, que soa a conto infantil (A terra ao fim do mundo)...

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