Maria Alzira Seixo: crítica a Sôbolos Rios Que Vão


Os Rios de Lobo Antunes

Apeteceu-me escrever directamente para os leitores de Lobo Antunes. Faço-o na net (o que raro me acontece) pois tinha decidido deixar de escrever sobre a obra de ALA com a frequência com que o fiz ultimamente, devido a projectos concretos que agora já estão realizados. E isso porque considero que não é benéfico para a obra de um escritor que o mesmo crítico ou estudioso escreva sempre sobre essa obra, tornando-se numa espécie de «dono» ou «mentor», que acaba por «cristalizar» uma forma de o ler. Não é benéfico para a obra, que deve ser objecto de leituras plurais, nem é benéfico para o crítico, que por vezes se torna leitor de um escritor só, solipsisticamente. Mas não tem sido o meu caso. Porque quem estuda e avalia tem de ter uma visão alargada das Letras. Só lerá bem Lobo Antunes (ou qualquer outro escritor), e com o prazer que a obra dele proporciona, quem conheça também outros escritores, e possa assim perceber a originalidade de cada um, procedendo, em conhecimento fundado, à escolha que o seu gosto pessoal ditar.

E escrevo sobre os Rios porque, afinal, o gosto que me deu o livro venceu as minhas determinações pessoais. E queria aqui dizer aos leitores de ALA que este romance é um dos mais maravilhosos que o autor escreveu até hoje! Estou a falar de Sôbolos Rios Que Vão, título que retoma o magnífico primeiro verso das mais célebres redondilhas de Camões, também conhecidas por «Babel e Sião», que ganharemos todos em reler.

É um dos casos em que a reflexão sobre a vida pessoal (enfim, a autobiografia!) consegue aliar-se, em ambos os escritores, à expressão literária de um modo artístico insuperável. E eu não sou nada tendente a aceitar biografismos: a vida de uma pessoa é uma coisa, a obra que cria é outra coisa, mesmo que nela se baseie. Porque um texto criativo, artístico, ultrapassa sempre um dado factual, e o «facto» recua a segundo plano ante a felicidade da expressão literária com que o autor a comunica.

Estes Rios

Que rios são estes? São, literalmente, os que constituem o Mondego, desde o ponto mínimo quase indestrinçável da sua nascente, passando pelos débeis veios de água que o vão encorpando, e outros que a ele se juntam (contando também com os que dele divergem) até constituírem a corrente que segue para a foz. E são-no porque o narrador (que, neste caso, surge como personagem que protagoniza a história na terceira pessoa, um ele não identificado que rapidamente percebemos ter a ver com o autor) conta como o Pai o levou, em menino, a ver a nascente do Mondego, na Serra da Estrela, e como isso o impressionou. Este passo é recorrente no texto, e em várias crónicas (veja-se «Descrição da infância», em Livro de Crónicas), e adquire aqui a força de um simbolismo vital, porque a personagem está imobilizada numa cama hospitalar, padecente de cancro, sujeita a cirurgias e a tratamentos. E a recordação da nascente do Mondego, que se torna em devaneio frequente no espírito do narrador, vem sempre afirmar a Vida ante a iminência da Morte que espreita e atemoriza.

O curso do rio é ainda uma forma de comunicar um percurso ficcional de vida, sujeito ao tempo e à sua (des)organização pela memória. Nele sobressaem a tutela do Pai, junto à origem, e a visão protectora da Mãe, nas incidências do seu deslizar (tanto como andamento quanto como… escorregadela, falha, derivação imprópria, fuga medrosa e outras formas de escape ou de falta cometida), essa Mãe que está junto dele, no final do romance, para caucionar o renascimento que a cura da doença constitui, tal como estava, no início da carreira do escritor, em Memória de Elefante, parindo-o com risco da própria vida.

Outros rios se juntam, porém, e são sobretudo os afluentes, o que me faz recordar o título de um livro de poesia de um velho amigo de ALA, que particularmente aqui se adequaria: Os Afluentes do Silêncio (vejam, em Segundo Livro de Crónicas, o texto «No Porto, com Egito Gonçalves»). E afluentes são as personagens comparsas, que interferem com a existência da personagem central, assim como as histórias adventícias que vêm interromper ou reforçar o seu sofrimento da doença, em encontros e em  conjugações, em discrepâncias ou fortalecimentos. Todas convergem, porém, para a importância central da Mãe e do Pai, a capacidade de observação e a experiência deste, que discerne e ensina a origem e o curso acidentado do rio, por um lado, e, por outro lado, a carga matricial da figura da progenitora, fonte de vida, Senhora dos Aflitos, e não «mater dolorosa», como em geral o é na Literatura. A sua presença no final da narrativa, que lhe confere um peso significativo assinalável, como que sublinha toda a actuação protectora no interior hospitalar (médicos, enfermeiros, aparelhos, a vista do céu que tem pela janela para a qual frequentemente olha), nela desembocando a eliminação dos obstáculos, que é como quem diz, a saída do hospital (curado), a saída da doença, a solução positiva, o milagre de continuar existindo.

Não há saídas (na acepção de «soluções», de «escapes» para uma situação difícil), em geral, na obra de António Lobo Antunes, escrevi eu um dia a propósito de Memória de Elefante; e o trabalho posterior tem-me confirmado essa verificação. Mas há saída, sim, neste livro (que se constitui aliás em permanência das águas, em retenção do fluir, mesmo que em veios débeis; ou na sua reconstituição pela memória – que não em caminhada para a foz do rio!), um livro em que no final se anota, em citação latina, que «todos saem» –  tópico de conclusão de uma cena, no teatro, e também no teatro que um texto pode ser –  querendo com isso dizer que «saem de cena», sim, mas que,  «saindo, continuam a existir», isto é, o livro acaba mas a vida (que a narrativa pôs em questão, ameaçada) afinal prossegue, sai-se do hospital e fica-se vivo, e não há morte, há continuidade (pressuposta) e duração.

Sôbolos Rios Que Vão é, deste modo, um livro libertador (como que o Senhor Caminhando Sobre as Águas, na figuração bíblica) e que liberta também o leitor! Há nele uma dimensãosoteriológica, e utilizo este «palavrão» para que entendam melhor, pois é assim que na Bíblia se caracteriza a salvação exercida por Jesus sobre os homens, e portanto não é um acto de salvação qualquer, é uma redenção –  o que, por analogia, se poderia ampliar à salvação exercida pela Palavra Poética, pela Criação Literária, sobre os cancros de toda a ordem que corroem a humanidade.

E liberta também o leitor por características práticas: é um livro pequeno (também comoMemória de Elefante), e quem é que se lembra de ter podido ler um livro de ALA, nos últimos tempos, que não fosse enorme?!; é um livro acessível (não nos embaraçamos tanto na confusão de personagens e de histórias mescladas como antes); é um livro que, tendo um tema sinistro (a ameaça da morte por cancro), se escreve de modo excepcionalmente claro, quase luminoso, e é, enfim, um livro maravilhosamente bem escrito, e eu, que abomino a linguagem crítica «impressionista», diria mesmo, neste caso, que parece escrito como a água que corre.
         
Quase que me apetece dizer ao leitor, como nas propagandas tipo «banha da cobra», que, se considerar que eu estou a enganá-lo na «mercadoria», fico pronta a reembolsá-lo do tempo de leitura que utilizou…!

Sim. Porque estes rios, camonianos, antunianos, são no fundo o grande rio que não pára, não se extingue, o rio do pensamento e da arte, da matéria das Humanidades que permite a pulsação desalienada no quotidiano, e por isso o título contém esses «rios que vão», cuja água corre sempre, como a escrita de grandes autores


por Profª. Maria Alzira Seixo
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17.09.2010

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