Cristina Robalo Cordeiro: Recensão crítica na Colóquio Letras nº 157/158 de Julho de 2000 – pp. 413 e 414


Desde Memória de Elefante que, ano após ano e de título em título, acolhemos os romances de Lobo Antunes com forte expectativa, esperando do seu mundo romanesco que nos surpreenda, nos abale e nos confirme no que parece ser o essencial das forças que o plasmam: polifonia, fractura, delírio, caos, dissecação de figuras e de ambientes fantasmagóricos, obstinação de memórias labirínticas, descida aos infernos de um quotidiano sempre transfigurado.

Na relação que estabelece com o leitor, não é nunca a cedência à lei da facilidade que impera. Não buscamos nos livros de Lobo Antunes serenidade e apaziguamento, nem acção, aventura, divertimento. Não o lemos em estado de repouso, mas de vigilância. Não o recebemos em sossego, tranquilamente, mas de forma tensa e enervada.

Não Entres tão depressa Nessa Noite Escura não nos desilude. Nele reconhecemos, na diferença de um novo cenário, a mesma virtude criadora, a mesma carga emocional, a constante tensão, nunca resolvida, que dialectiza texto e mundo em oposições dinâmicas e fecundas.

Este romance constrói-se em torno de uma personagem feminina, Maria Clara, que ouvimos em excesso de palavras fixadas quer em relatos confiados ao diário quer em monólogos recebidos em escuta (quase) silenciosa de psiquiatra atento, numa casa visitada pela degradação e onde parece esconder-se, num quarto de sótão fechado à chave, o segredo do passado que é também o mistério da família e o enigma da própria vida. A sua voz inquieta navega em regimes temporais mais psicológicos do que cronológicos, e lida com as coisas e com o mundo de forma marcadamente afectiva.

O romance desenvolve-se em círculos cada vez mais largos - das quatro figuras nucleares da família a antepassados longínquos ou menos chegados, do destino meramente individual ao colectivo por detrás do qual se vislumbra uma situação social e política, um contexto histórico -, em espiral de vozes e de planos que se afastam e regressam, se dispersam e aproximam, num movimento de vaivém que, ao mesmo tempo que esclarece e e acrescenta sentido, lhe junta também mistério e dúvida. Movida pela intuição, Maria Clara procura nas gavetas e arcas do quarto interdito vestígios de uma identidade que nem só a si diz respeito, e à medida que junta bocados soltos e desordenados do retrato da família (a que falta um pedaço) vai-se deixando invadir por rostos e corpos estranhos, vai deixando falar em si em outras vozes, já extintas e imaginárias, num jogo em que é difícil distinguir o que efectivamente é do que nunca foi ou algum dia será. Ao avançarmos por entre certezas e suposições, alusões e recuos, antecipações e elipses, reencontramos a força subjugante e enfeitiçadora de uma escrita que se suspende, se interrompe e retoma o que foi interrompido ou ficou suspenso, escrita que avança e volta atrás, se enche de sons, imagens, sentidos, para logo os pôr de lado, esquecer, rejeitar, num tecido textual que, ao misturar sinais gráficos e tipográficos originais e desconcertantes, enreda o mundo no turbilhão de palavras que o desvendam ou o escondem.

Mas se Não Entres tão depressa Nessa Noite Escura é de novo lugar de escrita apaixonada e delirante, é ainda, e simultaneamente, o de uma rigorosa composição. Os sete momentos em que se repartem, em perfeito equilíbrio, os trinta e cinco capítulos que compõem este romance correspondem ao percurso de criação simbolicamente identificado com o «grande trabalho da criação» (p. 465), que destrona o vazio e, em absoluto, o substitui pela vida. Escandida em sete tempos, em sete etapas fundadoras, como no Génesis, a história deste mundo imaginário confunde-se com a história do céu e da terra. E o poder de quem, pela escrita, cria um mundo próprio e lhe insufla vigor e desejo assemelha-se aqui ao da voz divina que ordena que a luz exista, que o firmamento aparte as águas, que a terra se cubra de frutos, que dois luzeiros separem o dia e a noite, que os seres vivos cresçam e se multipliquem, da voz de um Deus que faz o homem à sua imagem e, por fim, descansa ao concluir a obra. Como eles, também Maria Clara caminha na fronteira indecisa do real e da ficção, e, na suposição de ser fada em «gesto da varinha de condão» (p. 28), ou na convicção de «que invent[a] o tempo inteiro» (p. 275), perante um interlocutor mudo, acaba gerando a sua própria verdade sobre as coisas. Dizer/escrever são assim  modos de revelação de uma história que releva do sagrado, na origem da própria vida, formas inspiradas de lutar contra a morte - obsessiva e esvaziante -, de compreender, reconstruir e restituir sentidos. É também de apaziguar o medo do desconhecido e do inexplicável, das rupturas: por isso, no final do relato, Maria Clara pode ter a coragem de repetir «Hoje estava capaz de me ir embora» (p. 551).

É inevitável a implicação do leitor neste universo imaginário que ele próprio ajudou a construir e que o faz experimentar a inquietação de personagens equacionando a vida num misto de paixão e de ressentimento. E do encontro excitante com esta escrita que se debate entre figurar e desfigurar, fixar o real e contrariar tudo o que de alguma forma o imobilize, com o desassossego de um discurso que concilia a desmesura e o segredo, o excesso do dizer e o não-dito, prevalece em nós a qualidade do olhar que se detém no pormenor e capta das coisas o instante que as imortaliza, a força visionária que desmonta e recompõe, tornando visível o infinitamente insignificante, o sabor que as palavras têm e o gosto que deixam na boca de quem nelas morde.


Cristina Robalo Cordeiro
Colóquio Letras 157/158
Fundação Calouste Gulbenkian
Julho de 2000

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