artigo do suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante (Brasil) Sobre Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo [excerto]


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Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo, em termos de invenção ou criação literária, é uma espécie de último degrau a que um escritor, que opta pela prática experimental, consegue chegar. Podemos arriscar qualificá-lo como um escritor que se propõe ir além das conquistas experimentais até então cristalizadas por Rabelais, Sterne, Lewis Carroll, Édouard Dujardin, James Joyce e Cortázar.

António Lobo Antunes empreende uma luta titânica contra o Minotauro no labirinto do texto. De posse do fio de Ariadne, na busca da saída, ele trava uma batalha decisiva. Para encontrar a saída, Antunes usa de vários pretextos, entre eles fratura, mutilação, adulteração e bifurcação do fio da meada, para convencer o Minotauro de que está perdido, deixando no ar a idéia de que o fio se partiu em inúmeros pedaços. Mas apenas quebra o fio e se esconde, sempre numa pequena volta. E, quando o Minotauro, que já conhece o caminho de cor e salteado e, com certeza, já está cansado de trilhá-lo, e guardá-lo indefinidamente, resolve deixar que o protagonista, no caso o próprio texto, desconstrua a meada, após efetuar remendos que possibilitem a arte dos desvios. Então, percebe-se que ele aceita deliberadamente a própria morte. Essa alegoria implica em compreender-se que a morte do Minotauro representa a vida do texto pós-moderno.

A narrativa de Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo é propositadamente descosturada, pois conscientemente armada como O Jogo da Amarelinha, de Cortázar. Só que em Cortázar há a fusão de vários romances ou histórias numa mesma narrativa descontínua, mas que se interpenetram de maneira programada e matematicamente progressiva como um tratado virtuosístico.

Em Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo, a descontinuidade é cinematograficamente flagrante, pois ocorre intermitentemente. Nele, todos os textos apresentam cortes instantâneos no nexo das frases ou como um deslance, um contramolde, provocados no momento da frase enunciada e simultaneamente quebrada, fraturada. Percebe-se que, com isso, o escritor pretende representar com frases rupturadas, aparentemente desconexas, a situação caótica das próprias existências dos angolanos que, nas décadas de 60 e 70, durante a Guerra, como que se diluíam ou eram perdidas de vista. Assim, o traçado estético do discurso romanesco de Antunes soa como algo vertiginoso, mas que escoa, estaca repentinamente, como se todas as frases fossem amputadas; como, de uma maneira ou de outra, acontece com as vidas das pessoas durante e após o término das guerras, pessoas que, sobreviventes do holocausto da guerra, estão mortas na alma, perdidas de suas próprias identidades.

Conforme o próprio comentarista da contracapa da obra em questão se expressa “consagrado como um dos mais importantes romancistas portugueses, indicado ao Nobel de Literatura, António Lobo Antunes volta à temática essencial de sua obra em Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo. Neste livro, o autor traça um retrato contemporâneo de Angola, país onde viveu durante a guerra de libertação nacional nos anos 60 e 70.

Homens que somem sem deixar vestígios são os protagonistas deste romance. Assim acontece com o primeiro agente português que viaja à antiga colônia, com uma missão arriscada. Ele não volta, sendo substituído por outro, e depois outro, como na arena os touros vão sendo mortos um a um.

Grande vencedor do XIV Prêmio Internacional União Latina de Literatura, Lobo Antunes exerce com maestria a arte de encantar o leitor, através de uma narrativa subversiva e radicalmente original.”

Como o próprio escritor revela na abertura desta instigante obra literária “romance em três livros com prólogo & epílogo”, António Lobo Antunes, para contar a saga da guerra angolana, que usa como pretexto, ainda que doloroso, para exercitar e esgotar todo seu potencial de conhecimentos sobre criação literária no campo específico da arte romanesca, consegue se superar em tudo quanto antes escreveu e sempre com admirável talento.

António Lobo Antunes é o típico escritor para quem a divisão das composições literárias em gêneros é algo obsoleto e anacrônico, pois ele consegue fundir no mesmo romance todos os gêneros como o fez James Joyce, indo mais além, diluindo os gêneros de tal modo, que em seu texto tudo é apenas pura poesia. Para ele, repetir-se na obra seguinte é sempre um trabalho de preguiçoso.

Obra eminentemente metalingüística, já que o protagonista da história é a própria narrativa, sendo tudo o mais pretexto para que ela se engendre a si mesma. Daí por que ela questiona as próprias construções de textos anteriores discutindo, adulterando e mutilando as técnicas do fluxo da memória e do monólogo interior, no sentido positivo de acrescentar-lhes novos arranjos ou uma gama de possibilidades de fazer com que os textos se desengendrem para um plano de desfechos completamente imprevisíveis.

Aqui a desconstrução do discurso narrativo recria novidades no campo dos flashbacks que passam a ser contínua, ininterrupta e consecutivamente instantâneos.

Os cortes de períodos e frases acontecem em cadeia através de mutações e mutilações de enunciados, cujas seqüências, momentaneamente, ou para sempre, somem, como somem ou desaparecem as pessoas durante as guerras. Assim, famílias inteiras de frases ficam truncadas ou desaparecem, ou se perdem uma das outras, pedaços de sentenças e enunciados se distanciam ou acabam incompletos, exterminados, massacrados, desfamiliarizados como as pessoas durante e após as guerras. Caberá ao leitor, como aos sobreviventes, procurarem nos destroços da linguagem as partes que faltaram ou restaram. Constatamos assim que António Lobo Antunes está envolvido com duas guerras: uma, a de Angola, e a outra, a de uma escrita completamente radical. O ponto crucial é deflagrado contra a ordem preestabelecida das famílias de palavras que corresponde ao massacre ou mutilação das famílias de pessoas. Já não se trata de um recurso meramente paradoxal ou ambíguo, mas do texto mutilado como a retratar a própria mutilação da existência dos seres humanos naquilo que eles têm de mais precioso, que a vida biológica, a identidade. A verosimilhança é tão impressionante que a supra-realidade do texto parece superar a própria realidade da guerra. Assim, o texto transita entre o real geográfico, topográfico, biográfico, beligerante, genocida e o surrealismo da construção do texto cuja tessitura, embora pareça absurda, reflete a própria realidade. Nesse estágio, o escritor atinge a plenitude da arte de escrever, que acontece quando a supra-realidade supera em verosimilhança as atrocidades e massacres da guerra, quando percebe-se o quanto o ser humano, voltando à barbárie, vive mais para a crueldade, o sadismo e o masoquismo, esse estágio radical de aniquilamento do ser humano, reduzido a fera. 

autor não identificado
05.01.2006
excerto do artigo publicado no suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante (Brasil)
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