Rafael Menezes: opinião sobre As Naus


edição Alfaguara, Brasil

"Acontecera-lhe de tudo na vida, desde descobrir a Índia e limpar, com as próprias mãos, as diarreias e o vômitos do meu irmão moribundo Paulo da Gama, a ajudar a entupir de rolhas de estearina o caixão do pai de um infeliz qualquer que viajava para o reyno num porão de navio a seguir à revolução de de Lixboa, desde jogar a bisca com oficiais sem pulso no baralho, até, como agora morar de vivenda do bairro econômico da Madre de Deus, a Chelas, que o parlamento decidiu atribuir por unanimidade acompanhada de uma medalha e um diploma como paga pelos meus serviços à pátria, é onde o rei Manoel me vinha buscar aos domingos de manhã para passeios de automóvel(...)"

Pág.135

As Naus (1988) parte de uma premissa muito interessante para, com o perdão do trocadilho, naufragar em um oceano com muito som e fúria mas que não se move. Em Lixboa que se desdobra em todos os tempos e espaços, diversos personagens retornam de suas aventuras na África, de caráter colonial, pois o regime ditatorial foi derrubado (uma alusão ao regime de Salazar) e foi decidido dar liberdade "aos pretos". Apesar do tempo ser uma alusão ao final da década de 70 já com automóveis e revistas, os personagens regressados nada mais são do que os "heróis" da civilização portuguesa: Pedro Álvares Cabral, Luís de Camões, Vasco da Gama, Diogo Cão, Manoel de Sousa Sepúlveda e um casal de idosos que cresceu em terras africanas e que perdeu tudo ainda com algumas participações especiais como Cervantes, Garcia Lorca, Buñuel, Francisco de Xavier entre outros.

Amigos, Lobo Antunes não dá ponto sem nó. Esses personagens não voltam para a glória com as quais ficaram conhecidos mas para a completa degradação moral e humana: Pedro Álvares é um alcoolátra, Manoel perde tudo e dorme na praia, Luís fica carregando o corpo do pai de uma lado a outro em Lixboa, Vasco da Gama vive com um baralho de suecas na mão. Ou seja, Todo Mundo se ferrou! Até os espanhóis tem falhas morais e estão na pior, não há espaço para esperança alguma, mas afinal estamos lendo um romance do escritor de Cus de Judas, não era para se esperar algo alegre e como crítico ferroz de Portugal contemporâneo Antunes está mais interessado na crítica do que na história em si. Tudo é um alegoria daquele velho sentimento português de atraso que remota dos tempos de Eça de Queirós e em muitos momentos é tudo uma grande piada com os mitos portugueses. Nesse ponto eu acho que ele perdeu a mão, pois o resultado é demasiadamente inconstante.

Lembro-me de discutir com um colega meu algumas vezes sobre Lobo Antunes e um outro escritor português cujo o nome não deve ser citado, e quase sempre ele me vem com a história de que Lobo Antunes detestava ler romancistas novos pois queria ficar corrigindo tudo e alterando a história. É um sentimento nobre e sendo crítico literário posso entender o que é isso, o fato é que imaginei que teria esse sentimento com um livro do próprio. Mas devemos fazer duas considerações antes de qualquer coisa. A primeira é que em termos do domínio das possibilidades da língua portuguesa, o escritor português é um mestre que pode ser comparado a Guimarães Rosa. Há períodos belíssimos de um poder imagético muito grande em qualquer livro dele, inclusive este. Segundo é que a proposta vale uma leitura atenta pois pe uma ideia realmente bem original. Contudo ter um escritor top com uma ideia fantástica na mão é tão perigoso quanto ter uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. Não há garantias que o todo seja tão bom quantos as partes isoladas.

O maior problema de As Naus, a meu ver, é sua falta de ritmo. Em certos momentos ele se arrasta dentro daquilo que se propõem, por mais que prosa seja bem feita o que o escritor faz na maior parte do tempo é dar "passos em volta" de si, do mesmo tema e de temas já explorados em sua trilogia sobre as Guerras na África. Os personagens mudam de nome e de tragédia, mas parecem os mesmos. A narrativa tem o mesmo tom tanto no começo como no final, não há uma climax somente resoluções de histórias que começaram e nunca atingiram um potencial realmente interessante.

As duas histórias que tinham me atráido mais foram as de Manoel e do casal de idosos, contudo elas são interrompidas sem se desenvolver ainda assim. Junte-se a isso a um romance de capítulo quebrados e fica realmente complicado a transição de capítulos, principalmente no começo em que somos jogados de um lado para o outro nas 60 primeiras páginas sendo apresentados a todos os personagens de uma vez. Depois temos uma segunda parte em que se desenvolve algumas histórias e nesse ponto eu comecei a gostar do livro mas isso vai até a 120 e aí começa a se fechar todas as histórias de maneira previsível até o final na 180. Quadradinho... E aí está o ponto de minha crítica. Esta história não tem a mesma força de Os Cus ou Meu Nome é Legião, pois não transcende a uma romance que tem uma função militante de crítica aos ideias portugueses e em certos pontos é até bem engraçado:

"porque D. Sebastião, aquele pateta inútil de sandálias e brinco na orelha, sempre a lambe uma mortalha de haxixe, tinha sido esfaqueado num bairro de droga de Marrocos por roubar a um maricas inglês chamado Oscar Wilde, um saquinho de liamba"
pág. 133

É um exercício estilístico. Uma chacota. Um romance militante e que é tudo isso na prática, mas esquece de ser primeiramente um romance. Não sai do lugar. Naufraga. É interessante contudo é de se espera mais de um escritor tão interessante quanto Lobo Antunes e nesse ponto foi uma decepção

Engraçado é que durante a leitura, por mais que eu vá irritar alguns fãs do mestre, não me escapou da cabeça um outro livro de temática similar, de um conterrâneo de Lobo Antunes, infelizmente já falecido e que cumpre a função de metáfora-crítica-chacota de uma maneira mais genial na figura de Ricardo Reis. Talvez As Naus funcionasse melhor com um ou dois personagens. Don't know. Só sei que seu nome não será pronunciado aqui mas que foi mais inventivo e genial no plano das metáforas fantasiosas.

 
por Rafael Menezes
19.04.2011

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