24 de janeiro de 2017

Crónica «Nós» com reflexão sobre a sua leitura por Olga Fonseca

Nós

Não precisávamos de falar. Como ele dizia

– Tu sabes sempre o que eu estou a pensar e eu sei sempre o que tu estás a pensar

mas muito pouco tempo antes de morrer veio ter comigo e passámos a tarde juntos, sentados lado a lado no sofá. Foi ele quem falou quase sempre, eu pouco abri a boca.

Mostrou-me os braços, o corpo

– Estou miserável

sabia que ia morrer dali a nada e comportou-se com a extraordinária coragem do costume. Coragem, dignidade e pudor. A certa altura

– Para onde queres ir quando morreres?

respondi

– Para os Jerónimos, naturalmente.

Ficou uns minutos calado e depois

– Tu acreditas na eternidade.

Disse-lhe

– Tu também.

Novo silêncio.

– Eu quero ser cremado e que ponham as cinzas na serra, voltado para a Praia das Maçãs.

Novo silêncio. A seguir

– Vou morrer primeiro que tu. Vou morrer agora.

Mais silêncio. Eu

– Ganhei-te outra vez.

ele

– É.

Ele

Ganhamos sempre os dois.

Eu

– Porque é que a gente gosta tanto um do outro?

Ele silêncio antes de

– Se me voltas a falar de amor vou-me embora.

eu

– Sabes onde é a porta.

Mas não voltámos a falar de amor. Para quê? Estava ali todo. Depois quis ver os livros

– Para aí vinte mil, não?

eu

– Mais ou menos, incluindo os muitos que encontrei numa livraria de segunda mão, assinados por ti.

Silêncio. Eu

– Não podia suportar a ideia de que outras pessoas tivessem em casa os livros do meu irmão.

Gesto vago. Depois ele

– António

e silêncio, depois eu

– João

e silêncio. Ou seja um diálogo de amor compridíssimo. Depois

– Se os pais cá estivessem

e esta frase fez-me compreender melhor a sua imensa dor. A mãe para quem a inteligência, num homem, era a forma suprema de sensualidade. E um rabo grande a coisa mais feia deste mundo. Um homem inteligente, na sua opinião, era atraentíssimo.

– Um homem bonito e estúpido ao fim de um quarto de hora não existe

e ainda bem porque, assim, talvez tenhamos algumas chances com ela. A mãe, ainda

– Desafio qualquer mulher no mundo a ter filhos tão inteligentes como os meus.

E ele continuou a falar:

– Depois eu fui para Nova Iorque e tu para África.

Numa altura, depois de África, em que ele estava a sofrer muito meti-me num avião e fui para casa dele. Durante o dia ele trabalhava no hospital e eu ficava às voltas com o Fado Alexandrino. Depois jantávamos juntos e comíamos uns gelados enormes que ele trazia a vermos os play-offs do basquete.

Um de nós

– E jogam com humor

o que é tão raro no desporto. Aos sábados um bocado numa discoteca. Camisas cheias de baton. A certa altura olhou, do sofá, para a estante mais próxima: Um livro de Marcel Pagnol. Ele

– A nossa infância toda.

E eu com vontade de tocar-lhe. Claro que não toquei. As suas mãos, que conhecia tão bem, poisadas nos joelhos. Embora impassíveis estávamos demasiado emocionados.

Ele

– De qualquer modo não nos perdemos um ao outro

eu, depois de um silêncio compridíssimo

– Nunca nos perdemos, não é agora que isso vai acontecer.

Ele

– Vou chamar um taxi.

Silêncio.

Ele

– Acompanhas-me lá abaixo?

Entre a casa e a rua uma distância grande. Era o fim do dia, já não estava muito sol. O taxi à espera no passeio. O chofer, a quem ele operara a mãe, veio abrir-lhe a porta do carro. Ele voltou-se para mim e disse o meu nome. Eu aproximei-me dele e disse o seu. Abraçámo-nos com muita força e, de repente, começou a chorar. Só sentia ossos nas minhas mãos. Mas nada de mariquices, claro, sobretudo nada de mariquices.

Ele

– Não digas a ninguém que chorei.

E sentou-se no banco ao lado do chofer, sem olhar para mim. Não olhámos um para o outro, aliás, mas nunca nos vimos tão bem. O carro foi-se embora. Fiquei na borda do passeio até que desapareceu. E então, de mãos nos bolsos, voltei para casa. Nunca houve um abraço assim no mundo.


António Lobo Antunes
Visão, 15.12.2016


***

Eis que li a crónica de ALA,  que há muito esperava e que adivinhava que ele iria escrever, quando o tempo fosse o devido, quando a dor, finalmente, se tivesse acomodado um pouco melhor no seu coração, até porque já antes o fizera com a partida do Pedro. Aparentemente, o discurso desta crónica não é tão violento, a linguagem não assume foros de tanta agressividade, tanto inconformismo, tanta revolta como a que escreveu, aquando da partida de Pedro; mas não nos iludamos! Só aparentemente o dá a entender... Na verdade, entre o dito e o não dito entre os dois irmãos, entre o que inferimos ou subentendemos, damo-nos conta de um amor fraterno tão belo, mas tão belo, que é impossível ler a crónica até ao fim, sem deixar que as lágrimas nos tomem de assalto;  primeiro duas a duas, depois de quatro em quatro, até que virem uma torrente que nos embacia a leitura do texto.
              
Estupidamente, não compreendo por que razão, e de súbito, o meu cérebro evoca uma peça do teatro do absurdo, ao jeito de Eugène Ionesco, Tardieu ou mesmo de Samuel Beckett. A existir um motivo, ele só pode ser um e com o qual eu própria me dou tão mal. Trata-se do absurdo da morte, e do sofrimento de ambos: daquele que sabe que vai partir e do outro que fica à espera da sua vez.
              
O título é de uma singeleza tal, que o leitor adivinha, desde logo, o assunto de que vai tratar.  
               
A troca de palavras entre os irmãos é de um cuidado, de uma sobriedade, de uma dignidade tais, que nos deixa completamente desarmados para verbalizar o que quer que seja, a não ser deixar que as lágrimas cumpram com a sua função. 
               
O João impede-o «de falar de amor», talvez porque achasse que essa palavra sobejaria, estaria a mais entre eles e, portanto, seria inútil, não seria necessário pronunciá-la. Todos sabemos, que há silêncios que conseguem ser absurdamente ruidosos; eles apenas deixam o grito preso na garganta. 
              
Que ternura, os dois irmãos evocarem a mãe num momento como aquele, procurando, talvez, aliviar o peso da dor que os vergava. O leitor quase que visualiza a cena e esta é demasiado insuportável não só para os sujeitos que a vivem, mas também para o leitor que a experimenta já num outro tempo e num outro nível de percepção, como diria Pessoa; num tempo que António Lobo Antunes quis relegar para futuro; o futuro contendo já a ausência do irmão; em suma, o tempo que ele entendeu ser o apropriado para fazer a sua catarse. 
               
Agora é a nossa vez; é o nosso tempo de fazermos essa mesma catarse; sobretudo eu, que lido tão mal com o sofrimento, o envelhecimento e, finalmente, a nossa finitude. 
               
Tanto amor que pairava sobre ambos, os silêncios pressupunham um entendimento tácito entre eles... tão parcas e simples as palavras que trocavam entre si, evitando pronunciar aquelas que tornariam o sofrimento de ambos ainda mais insuportável. As cruéis! E quanta dignidade na despedida... Ao António,  bastava dirigir-se ao irmão pelo nome - «João»; ao João, bastava responder com o nome do irmão, «António». 
              
Na hora da despedida, e antes que chegue a cruel, a derradeira, parece que só nos é concedido o direito a verbalizar o nome que nos legaram ao nascer, o que nos faz existir e o que levamos connosco quando a hora for chegada.

Assim, para o António segue daqui, deste lugar em que me encontro, um abraço sentido; para o João, aonde quer que ele esteja, o desejo profundo de que repouse em paz.


por Olga Fonseca
e-mail de 23.01.2017
Covilhã

28 de dezembro de 2016

Olga Fonseca - impressões de uma leitora de Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera

Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera: impressões de uma leitora

Acabei de ler pela segunda vez o último romance de António Lobo Antunes.

Alguns poderão estranhar ou interrogar-se sobre os motivos que nos fazem revisitar um texto, após uma primeira leitura.  Poderia elencar uma série de motivos, sabendo que o principal é, tão-somente, o prazer de ler o romancista da nossa eleição e, sobretudo, quando convoca para núcleo da sua obra temas que, por alguma razão, «mexem» connosco, com o que vai na nossa cabeça, ora de forma mais nítida, ora de forma mais enviesada, insinuando-se apenas. 

Reconheço que estou a partir em desvantagem: já outras vozes, indubitavelmente mais sábias, mais competentes, se pronunciaram sobre a obra. No meu caso, parece adaptar-se o título da obra de Harold Bloom – A Angústia da Influência – só que ao contrário. Explico: nenhum leitor fica imune ou impassível à leitura que outros (habitualmente críticos literários) fizeram do romance e por mais esforço que façamos para não irmos «espreitar» o que escreveram, o que disseram, acabamos sempre por ler as suas (deles) leituras. Verdadeiros spoilers para uns, preciosas ajudas para outros que não querem ir cegos ou virgens para a leitura da obra. E é uma verdadeira frustração, quando nos damos conta que outros já tiveram oportunidade de dizer aquilo que nós próprios teríamos gostado de dizer em primeira mão. Enfim, também não podemos esquecer o princípio, segundo o qual, uma obra é tanto mais literária, quantas mais leituras suscitar. Neste ponto, talvez nos possamos redimir com as lições de Umberto Ecco, in Obra Aberta, e Lector in Fabula. Adiante, e um aviso à navegação: não gostaria que vissem neste meu texto, relativo ao último romance antuniano, qualquer pretensão; antes o que anuncio no título: umas simples impressões de uma leitura apaixonada pela obra de António Lobo Antunes. 

É por de todos sabido que o primeiro contacto que o leitor tem com o livro, enquanto objecto de fruição, lhe chega pelo nome do autor e pelo título, elemento paratextual por excelência, que figura no frontispício da obra. Todo um horizonte de expectativas se começa a desenhar e comigo não foi excepção. Sobre o nome do autor, não valerá a pena repetir o que já escrevi sobre a paixão e a fidelidade a António Lobo Antunes. Já o título (hall de entrada na obra, segundo Jorge Luís Borges) exigiu uma leitura aturada, várias vezes repetida mentalmente, como se dele quisesse extrair a seiva que alimentou o romance. Também não é novidade para ninguém que António Lobo Antunes não descura a importância do título e que, nos últimos romances, tem privilegiado títulos longos, inspirados ou pedidos emprestados a outros escritores. Neste caso, impossível desligar o título da imagem escolhida para a capa do romance (pelo menos na versão por mim adquirida): se pretendesse recorrer a uma linguagem cinematográfica, deveria dizer que se trata de um plano americano, exibindo a imagem de uma senhora idosa, quase numa posição de pose para uma foto, mas algo correu mal com a revelação da mesma, porquanto a cabeça da senhora não só está desfocada, como, e sobretudo, está francamente deformada, distorcida. O título mais a imagem de capa tornam-se, pois, altamente significativos. Inferi: o autor quis explorar o que se passa com o cérebro humano, a partir de uma certa idade. Por outro lado, o título sugeria-me uma espécie de dedicatória, como as que surgem no interior de trabalhos ensaísticos ou académicos. Quem seria aquela a quem o autor dedicava a obra e que, curiosamente, estava sentada no escuro à sua [do autor, assim o entendi] espera? Já o nome escuro me parecia carregado ter uma acepção negativa, de ligação com a ideia de morte. Até porque um leitor com competência enciclopédica ou cultural não pode ignorar aspectos da vida do autor empírico: Lobo Antunes.

Na contra-capa, um rasgado elogio publicado no El País, seguido de uma imagem de um galgo. Nada despiciendo, como conferiria mais tarde. 

O apelo para entrar tornou-se, portanto, irrecusável.

Folheando a obra, e no que diz respeito à sua estrutura externa, rapidamente me dei conta de lhe subjazer uma inequívoca simetria (palavra a que associo a ideia de perfeição, de equilíbrio): o romance inicia-se com um Prólogo (este sim, verdadeiro hall de entrada para os leitores), seguido de três partes a que o autor deu o nome de andamento (palavra certamente retirada do léxico musical), cada um organizado em oito capítulos. 

Assim, é desde logo no Prólogo que o leitor é confrontado com o acto de rememoração, mas também com a ideia de estranho ou insólito, porquanto a personagem feminina acorda com a nítida sensação de que tudo naquele espaço (à excepção da porta) mudou de lugar. Notei, também, que o discurso da personagem feminina não se distingue do resto do enunciado, à excepção das falas de outra personagem feminina, que aparecem destacadas no enunciado textual pelo recurso ao travessão, antecedido de parágrafo. Aliás, mais adiante, verificamos que o autor recorre ao mesmo artifício quando transcreve as falas de outras personagens, como o sobrinho do meu marido, os pais da idosa, o médico, o porteiro do teatro, o senhor Barata, entre outras: 

«… o que se passou durante a noite expliquem-me (…)
– A gente ao acordar demora a habituar-se ao dia.
e não é verdade, não me custa habituar-me ao dia, custa-me que troquem coisas sem
me dizerem nada, (…) e não me dão cavaco, a senhora de idade (…) ajudando-me a
sentar» (p.11; o negrito é meu)

Subitamente, a memória da personagem feminina voa para Faro, viaja até à sua infância, e vê-se, criança, na casa parental. A partir deste momento, o leitor apercebe-se que o autor, ou esta voz narratorial que alguns atribuem sempre à idosa, vai abolir e sobrepor todas as fronteiras espaciais e temporais, como se espaço e tempo pudessem dessa forma condensar-se como quem maneja uma concertina de foles. Entretanto, não nos escapa uma belíssima sinestesia que decorre da analogia que é feita entre o pedido que a senhora de idade faz para que não derrame o chá «– Lembre-se que já se sujou uma vez» e o movimento do gato ao deslizar da cama para o chão: «o gato deslizava líquido para o chão» (p.11; o negrito é meu).

Depressa nos apercebemos que ao longo do romance esta sobreposição ou confusão de recordações, tempos e lugares vai ser uma constante. Trata-se, portanto, de um romance sobre a memória ou mais precisamente, sobre o seu esboroar, até à sua total degradação, momento que ocorre, quando a demência da personagem atinge o paroxismo e passa a ver, a ouvir e a responder aos pais que vieram de Faro, visitá-la a Lisboa (cidade onde reside há anos), quando, no Prólogo, informa os leitores que os mesmos «já morreram há séculos» (p.12). Entendi esse momento (no terceiro andamento), como o que precede a sua morte. É verdade que o autor não identifica a doença; sofrerá de Alzheimer? Terá sido vítima de um AVC, porquanto há uma passagem em que refere dificuldades em movimentar «a mão esquerda que às vezes, não sei porquê, me falha» (p.24)? Será um tumor cerebral? Nada nos é garantido e talvez esse pormenor seja de somenos importância, porquanto o que desconcerta, e até mesmo me assusta, enquanto leitora (a literatura, com as suas personagens, também é geradora de efeitos, como defendeu Phillipe Hamon) é a capacidade, ou a estranha forma de lucidez com que o autor dotou a idosa de «78 anos» em vários momentos da narrativa. O que parece paradoxal.

No primeiro andamento, apercebemo-nos de que as lembranças fluem ou são motivadas pela presença de certos objectos. Apercebemo-nos, também, de que a personagem é dominada por obsessões. Por exemplo, no primeiro andamento, é sobretudo a ideia de um galgo cor-de-rosa que ladra durante a noite, acordando-a, um bibelot que exibe uma rapariga com um cisne. Há, contudo, uma obsessão que atravessa o romance de uma ponta à outra e que tem a ver com um crucifixo pendurado sobre a cama dos pais e cujo movimento, mais ou menos ritmado, mais ou menos intenso ou o seu total silenciamento está sempre ligado à memória do acto sexual, sobretudo, dos pais (que em pequena não percebia) e que se repitará, quando casada, com o seu segundo marido. Com efeito, contabilizei oitenta recorrências do vocábulo «crucifixo».

Se a personagem é um construto, como lhe chamou um crítico americano, ou seja, resulta de um somatório de traços caracterizadores com que o autor a vai construindo, apercebemo-nos de outra obsessão que diz respeito ao pedido que o segundo marido lhe dirige, quando decorre o acto sexual. Trata-se da frase «– Diz, amor, diz» a que ela responde «eu sem vontade nenhuma um /– Amor» (p.243). Com isto, pretendo dizer que o autor torna a personagem feminina anafrodisíaca, o que leva o director do teatro a ter um ataque de raiva contra a mesma, quando pretende levar a cabo o acto sexual no seu gabinete e ela, de tão jovem («dezassete anos»), desajeitada, é incapaz de lhe corresponder (vide p.246).

A destruição da personagem é de tal ordem, que nunca nos é dito com certeza qual o seu nome. Há uma passagem em que é proferido o nome Celeste (p.34) e duas páginas a seguir o de dona Cidália (p.36). Mas o leitor, tal como a personagem, fica confuso. Ora, o nome é o que nos dá identidade, existência, a partir do momento em que até o nosso nome ignoramos, deixamos de existir enquanto «pessoa». Não deixa de ser curioso, a insistência em nomes começados por <C>, até porque a personagem suspeitava que antes dela tinha havido uma irmã chamada Corália

Por outro lado, e à medida que a doença progride, a personagem tem ainda a capacidade de reconhecer que perdeu as emoções, a capacidade de sentir:

«Às vezes não é que esteja triste, não estou triste, nunca mais
estive triste (…) não é que me sinta mal, não me sinto mal, não
sinto nada (…)» (p.253)

E tudo isto são memórias, recordações que a personagem saca do seu cérebro.

Entretanto, e para além do tema da doença (outra obsessão; o pai morre com uma doença do fígado; o avô de outra maleita, «uma tia Alice circunflexa»), da perda da faculdade da linguagem, outros temas, o autor convoca para o romance: o da solidão, o da invasão do corpo, designadamente, quando a senhora de idade procede à sua higiene e é-lhe difícil não sentir um certo pudor, a violência e o desprezo exercidos sobre os idosos, designadamente vindos da parte do sobrinho do marido e da sua mulher, para quem ela não passa de um fardo e desejam a todo o custo que ela desapareça para se apossarem dos seus parcos bens (o que começa ainda em vida, com as suas jóias).

Voltando ao título do romance, há duas ou três passagens que me levaram a identificar aquela que está sentada no escuro à minha espera com a mãe da personagem. A primeira, quando refere «a minha mãe morta sentada na cadeira dela com o terço na mão» (p.115); a segunda e, certamente a mais forte, quando diz «a certeza que uma senhora em silêncio sentada no escuro à espera deles, (…) num gestozinho breve / – Tu» (p.332) e, finalmente, «– Que pena filha ires morrer logo hoje» (p.342).

Para terminar, e apreciando aquelas modulações de voz que António Lobo Antunes tem, quando é entrevistado, as suas pausas, o seu discurso quantas vezes elíptico, como quem espera que o ouvinte siga o seu raciocínio e preencha o espaço do não dito, importa dizer o como tal surge, também, no enunciado narrativo. É surpreendente, emotivo e deixou-me (quantas vezes, meu Deus!) presa a determinadas construções frásicas, que outros poderiam ver como uma violação das regras de sintaxe. A título de exemplo e porque já vão longas estas minhas impressões de leitora, demos como exemplo, as seguintes: «de modo que daqui a pouco chuva de certeza» (p.18), ou até o entrelaçar de frases, cortando intencionalmente as palavras, para intervalar outras frases: «que esfregava no, eu a ordenar ao galgo / – Calado/ guardanapo, (…) (p.18) ou «(…) magra, de cabelo pin, já não vestida de garota, vestida de mulher, tado (…) (p.23)

Em suma, Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera é mais um romance de António Lobo Antunes onde o movimento descendente – «do cérebro para a mão» – como o mesmo referiu, me deixou fascinada, emocionada por este «saber falar» das angústias e das misérias do ser humano, por nos arrostar com a nossa condição de seres para a morte de forma magistral e sem apelar ao sentimentalismo piegas do leitor. E isso, só António Lobo Antunes o sabe fazer como ninguém, porque António Lobo Antunes é daquela raça de escritores que não admitem meio-termo: ou se amam, ou se detestam. No meu caso, só posso dizer: «um caso de puro, autêntico amor e admiração».


por Olga Fonseca
(e-mail de 28.12.2016)

[texto revisto por José Alexandre Ramos]

22 de dezembro de 2016

O Conhecimento do Inferno traduzido por Harrie Lemmens disponível desde Outubro na Ambos-Anthos (Países Baixos)

No fim de Outubro saiu, na Holanda, a tradução de Conhecimento do Inferno, por Harrie Lemmens, com o título Reis naar het einde (a editora Ambos-Anthos optou por não usar a palavra ‘hel’, ‘inferno’, no título, porque as livrarias não gostam disso, segundo informação do próprio tradutor)

Edição Ambos-Anthos, Holanda, Outubro 2016
Tradução de Harrie Lemmens

Harrie partilhou connosco duas breves críticas à edição deste livro:

Ger Groot no NRC (Holanda):
A extraordinária riqueza de metáforas, de aforismos e descrições visualmente sugestivas deixam-nos por vezes sem fôlego: durante a leitura os nossos olhos vão-se tornando cada vez mais sôfregos de imagens.
Que prazer deve ter tido o tradutor ao traduzir este texto!
E que prazer ver reluzir e brilhar em Neerlandês as cores, as formas, os fluxos de imagens e as associações estonteantes de Lobo Antunes!
Transformar tanta melancolia neste fantástico caleidoscópio: eis o selo de garantia da literatura.

Marijke Arijs no Standaard (Bélgica – Flandres)
O inferno de Dante não é nada comparado com o inferno de Lobo Antunes.
As imagens sobrepõem-se em camadas deslizantes como se de um filme se tratasse e a exuberância verbal penetra no fundo da alma, corrosiva e subversiva, irónica e amarga. Este Conhecimento do Inferno transforma-se assim numa experiência de leitura absolutamente arrebatadora.

21 de dezembro de 2016

La main de Lobo Antunes / A mão de Lobo Antunes

“On écrit quand le cerveau descend dans la main.”



Vous trouverez cette belle définition du travail de l’écrivain dans le premier numéro de ‘L’Entretien’, promenade inspirée avec quelques bons artistes du moment éclairant autant leur art que notre époque.

Et quand la main est heureuse, elle va toute seule, elle trouve son chemin, elle vous échappe et fait ce qu’elle veut. L’écrivain est moins celui qui raconte des histoires structurées par des intrigues incarnées par des personnages, que cette main heureuse qui entend des voix et tâtonne dans le noir. Des voix viennent, une main va, le noir le devient moins. La pensée qui se prolonge en geste donne l’écriture, don incertain qui fait vivre celui qui donne et exister celui qui reçoit.

“Écrire c’est comment écrire, ce n’est pas tellement l’intrigue ou l’histoire, c’est la manière dont tout cela est fait et dont un bon livre nous révèle à nous-mêmes” précise Antonio Lobo Antunes.

Ses titres sont des légendes de tableaux, des fragments de rêves, des ritournelles d’enfants, ‘Que ferai-je quand tout brûle ?’‘Il me faut aimer une pierre’, ‘Je ne t’ai pas vu hier dans Babylone’, ‘Bonsoir les choses d’ici-bas’, ‘Quels sont ces chevaux qui jettent leur ombre sur la mer ?’ ‘Au bord des fleuves qui vont’. Parfois ils ont la brutalité exaltée des traités antiques ou des sermons mystiques médiévaux, ‘L’ordre naturel des choses’, ‘La nature des dieux’, ‘Connaissance de l’enfer’, ‘Explication des oiseaux’, ‘Exhortation aux crocodiles’, ‘Le Manuel des inquisiteurs’. Certains semblent tout droit sortis de bons vieux romans picaresques, ‘Le cul de Judas’, ‘La farce des damnés’, ‘Le retour des caravelles’.

“L’écrivain est moins celui qui raconte des histoires que celui qui entend des voix ”

‘Jusqu’à ce que les pierres deviennent plus légères que l’eau’ sera sans doute le titre de son prochain livre.

Eduardo dos Santos, qui règne sur l’Angola depuis trente-sept ans, pays où Lobo Antunes participa comme médecin à la guerre de décolonisation dans les années 70, vient de placer sa fille, un de ses frères et une de ses sœurs aux postes clés du pouvoir, soit respectivement à la tête de la compagnie pétrolière publique, du fonds souverain d’État et du comité du MPLA. Ces trois-là, maîtres par leur pouvoir dynastique de 26 millions d‘Angolais, lisent peut-être celui qui fut médecin et psychiatre avant de devenir écrivain. Mais rien n’est moins sûr.

Dos Santos et Lobo Antunes ont exactement le même âge, 74 ans. À leur mort, le premier sera plus pleuré que le second, plus pleuré mais moins regretté. Il a fallu des guerres, des larmes et du sang pour établir le pouvoir de l’un, presque rien pour établir le règne de l’autre.
Il faut bien peu de choses pour faire un idiot fulgurant, puisque c’est ainsi que Lobo Antunes qualifie l’écrivain. D’autres écrivains aimés contre qui l’on écrit pour se défaire de leurs sortilèges, quelques phrases solitaires qui transfigurent votre expérience de la vie, un combat acharné contre sa propre langue, pas mal de solitude et encore plus de travail.

L’idiot fulgurant
Son chemin, le Portugais l’a trouvé en pensant au tennis.

Lisant par hasard une chronique sportive dans un journal américain, il tombe sur une explication de la supériorité de Borg : alors que les autres joueurs jouaient au tennis, le Suédois, lui, faisait autre chose. Il ne jouait pas au tennis, il faisait autre chose. Et l’écrivain de s’appliquer aussitôt la loi de Borg : “Je devais trouver mon chemin, je me disais, il ne faut pas que tu écrives des histoires, il faut que tu trouves autre chose”. Ainsi se mit-il à écouter des voix au lieu d’enchaîner des récits, ainsi fit-il du texte un espace stéréophonique sans début ni fin au lieu d’une petite bobine à dérouler le fil des histoires. L’idiot fulgurant était né, et avec lui l’homme qui écoute au lieu de parler, qui traque la présence des choses sous le voile du langage, qui capte dans la plus minuscule des expériences l’unité de la vie tout entière, qui laisse le cerveau descendre dans la main. Ensuite ? Presque rien puisque tout était posé. Quelques bonheurs de phrases comme avec Tchékhov : “Descends, descends là où sont les autres et mets-toi parmi eux”.

“Borg ne jouait pas au tennis, il faisait autre chose. Et l’écrivain de s’appliquer aussitôt la loi de Borg”

Ou avec Dickens : dans ‘Les Temps difficiles’, il y a ce passage, extrait d’un dialogue entre le fils et sa mère mourante. “Souffres-tu, chère maman ?” Et la mère de répondre “J’ai l’impression qu’il y a une douleur dans ma chambre mais je ne sais pas si elle m’appartient”. On croit mettre le monde au clair en le mettant en mots : illusion de l’intelligence dont l’idiot fulgurant n’est pas dupe.

“On écrit toujours dans le noir, on est profondément aveugle. On se pense lucide, doué d’intelligence. Peut-être est-on seulement l’enfant que l’on a toujours été, l’enfant qui tâtonne pour essayer de se frayer un chemin dans un monde qu’il ne connaît jamais tout à fait, qui le surprend à chaque pas, qui peut le faire rire ou pleurer à tout moment…”

Le mot silence
Plus le cerveau descend dans la main, et moins la main met la main sur les choses. Celles-ci s’effacent en mots qui s’effacent à leur tour en musique. “Dans l’écriture c’est la musique qui prime. Tout art tend vers la musique et la musique tend vers le silence. Nous ne faisons que tendre vers le silence et essayer de chasser les mots de nos livres. Derrière les mots, et entre les mots, il y a le mot silence. Comme dans les tableaux de Vermeer. Le temps s’insère dans les fissures des tableaux de Vermeer comme un mystère dans un autre mystère.”

L’entretien s’achève. Il nous a donné d’oublier, un instant, le bruit des bombes sur Alep, les miaulements des petits chats qui vont s’étriper pour la primaire de gauche, les bruits de botte des nouveaux cow-boys américains et la fin de règne de la dynastie Dos Santos.

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«Escreve-se, quando o pensamento desce para a mão.»

Encontrarão esta belíssima definição do trabalho do escritor, no primeiro número da «Entrevista», um passeio inspirado nalguns dos melhores artistas da actualidade, que lançam luz quer sobre a sua arte, quer sobre a nossa época.

E quando a mão é feliz, ela move-se sozinha, encontra o seu caminho, escapa-vos e acaba por fazer o que ela entende. O escritor não é tanto aquele que conta histórias estruturadas por intrigas encarnadas pelas personagens, mas antes esta mão feliz que ouve vozes e tacteia no escuro. As vozes chegam, a mão move-se e o escuro torna-se menos escuro. O pensamento prolonga-se no gesto, dá lugar à escrita, um dom indefinido que dá vida àquele que oferece e existência ao que a recebe.  

«Escrever é como escrever, não é propriamente a intriga ou a história, é antes o modo a partir do qual tudo isso é feito e em que todo o bom livro se revela a nós próprios», esclarece António Lobo Antunes.

Os seus títulos são lendas de quadros, fragmentos de sonhos, lengalengas de crianças,  “Que Farei Quando Tudo Arde?”; “Eu Hei-de Amar Uma Pedra”; “Ontem Não Te Vi em Babilónia”; “Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo”;“ Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?”; “Sôbolos Rios Que Vão”. Por vezes, eles assumem a brutalidade exaltada dos tratados antigos ou dos sermões místicos medievais, “A Ordem Natural das Coisas”; “Da Natureza dos Deuses”; “Conhecimento do Inferno”; “Explicação dos Pássaros”; “Exortação aos Crocodilos”; “Manual dos Inquisidores”. Alguns parecem ter saído directamente dos bons velhos romances picarescos, “Os Cus de Judas”; “Auto dos Danados”; “As Naus”.

“ O escritor não é tanto aquele que conta histórias, mas antes o que ouve vozes ”

“Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água” será, sem dúvida, o título da sua próxima obra.

Eduardo dos Santos, que reina sobre Angola há trinta e sete anos, país onde Lobo Antunes cumpriu serviço militar como médico, durante a guerra da descolonização, nos anos 70, acaba de colocar a sua filha, um dos seus irmãos e uma das suas irmãs em lugares-chave do poder, respectivamente, a chefiar a companhia petrolífera pública, a gerir os fundos de investimento financiados com dinheiros públicos e a presidir ao comité do MPLA. Estes três, donos pelo seu poder dinástico de 26 milhões de angolanos, lêem talvez aquele que foi médico e psiquiatra, antes de se tornar escritor. Mas não é certo que assim seja.

Eduardo dos Santos e Lobo Antunes têm exactamente a mesma idade, 74 anos. À sua morte, o primeiro será mais chorado que o segundo, mais chorado, mas menos lamentado. Foi preciso haver guerras, lágrimas e sangue para estabelecer o poder de um, e quase nada para estabelecer o poder do outro. É preciso muito pouco para fazer brilhar um idiota, já que é assim que Lobo Antunes classifica o escritor. Outros escritores amados contra quem se escreve para se desfazer dos seus sortilégios, algumas frases soltas que mudam a vossa experiência de vida, numa luta encarniçada contra a sua própria língua, nada mau no que diz respeito a solidão e mais ainda de trabalho.  

O idiota brilhante

O português encontrou o seu caminho, pensando no ténis.

Ao ler por acaso uma crónica desportiva num jornal americano, António Lobo Antunes depara-se com uma explicação da superioridade de Borg: enquanto os outros jogadores jogavam ténis, o sueco fazia outra coisa. Não jogava ténis. O escritor apoderou-se imediatamente da lei de Borg: “ Tinha de encontrar o meu caminho; dizia para mim mesmo: não tens de escrever histórias, precisas de encontrar outra coisa.” Assim, pôs-se a ouvir vozes em vez de encadear narrativas, fazendo, deste modo, do texto um espaço estereofónico sem princípio nem fim, em vez de uma pequena bobina que desenrolasse o fio das histórias. Tinha nascido o idiota brilhante, e com ele o homem que ouve, em vez de falar, que segue de perto a presença das coisas sob o véu da linguagem, que capta na mais minúscula das experiências a unidade da vida por completo, deixando fluir o pensamento para a mão. E de seguida? Quase nada, uma vez que tudo estava colocado. Algumas frases felizes como em Tchékhov: “Desce, desce para onde se encontram os outros e posiciona-te entre eles”.

“Borg não jogava ténis; fazia outra coisa. E o escritor apoderou-se imediatamente da lei de Borg”

Ou com Dickens, em “Tempos Difíceis”: há uma passagem, extraída de um diálogo entre o filho e a sua mãe moribunda. “Estás a sofrer, querida mãe?” E a mãe respondeu-lhe: “Tenho a impressão que há um sofrimento no meu quarto, mas não sei se me pertence.” Acredita-se em tornar o mundo mais claro, colocando-o em palavras: ilusão da inteligência da qual o idiota brilhante não está enganado.

“Escreve-se sempre no escuro; é-se completamente cego. Julgamo-nos lúcidos, dotados de inteligência. Talvez não sejamos senão a criança que sempre fomos, a criança que, às apalpadelas, procura traçar um caminho no mundo que desconhece completamente, que o surpreende a cada passo dado, que pode fazê-lo rir ou chorar a qualquer momento.

A palavra silêncio

Quanto mais o pensamento desce para a mão, menos a mão interfere nas coisas. Estas diluem-se em palavras que, por sua vez, se diluem em música. “Na escrita, a música está em primeiro lugar. Toda a arte tende para a música e a música tende para o silêncio. A tendência é para o silêncio, procurando expulsar as palavras dos livros. Atrás das palavras, e entre as palavras está a palavra silêncio. Como nos quadros de Vermeer. O   tempo infiltra-se através das fissuras dos quadros de Vermeer como um mistério noutro mistério.”

A entrevista termina. Por um instante, fez-nos esquecer o ruído das bombas lançadas sobre Aleppo, os miados dos gatinhos que vão esfolar-se para as primárias de esquerda, os ruídos das botas dos novos cow-boys americanos e o fim do reinado da dinastia Eduardo dos Santos.


Paul-Henri Moinet
20.12.2016

traduzido por Olga Maria Carvalho Santos Fonseca

7 de dezembro de 2016

Tamina Šop vence prémio tradução Miloš Đurić 2016 pela sua versão sérvia de O Manual dos Inquisidores

Tamina Šop vence prémio de tradução na Sérvia com obra de Lobo Antunes

A tradutora Tamina Šop venceu o prémio Miloš Đurić 2016 pela tradução para sérvio da obra "O Manual dos Inquisidores", de António Lobo Antunes, foi hoje anunciado pelo Camões Instituto da Cooperação e da Língua.

edição sérvia Geopoetika, 2016
tradução de Tamina Šop
O livro [em sérvio "Priručnik za inkvizitore"] foi publicado na Sérvia pela editora Geopoetika, com o apoio do Instituto Camões e da Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas de Portugal.

De acordo com o instituto, pela primeira vez desde 1968, quando este prémio foi criado, um livro de literatura portuguesa vence na categoria de prosa, depois da tradução de uma parte da obra de Fernando Pessoa, por Jasmina Neskovic, ter recebido o mesmo reconhecimento na categoria de poesia, nos anos 1990.

Em "O Manual dos Inquisidores", publicado em 1996, António Lobo Antunes conta o desmoronamento de uma família da alta burguesia do antigo regime, rica e considerada, centrando-se na figura do patriarca, um influente e poderoso governante do regime de Oliveira Salazar.

A acção decorre antes e depois do 25 de Abril de 1974, relatando a mudança drástica na vida da família, com a queda do regime fascista.

A entrega do prémio Miloš Đurić 2016 realiza-se na quarta-feira, às 18:00, na Associação de Tradutores Literários da Sérvia, em Belgrado.



Fonte: Lusa
06.12.2016

24 de novembro de 2016

Crítica de Isabel Lucas a Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera

Quando já se perdeu o nome


“Eu não tenho personagens”, afirmou António Lobo Antunes numa entrevista a este jornal [Público], em 2014, quando publicou Caminho Como uma Casa em Chamas, um romance centrado num prédio de Lisboa e nos seus habitantes. Podia-se acrescentar que também não tem enredos, ou que os livros têm cada vez menos aquilo a que se convenciona chamar uma acção, com princípio meio e fim. São antes deambulações acerca do que é a vida, íntima e de um colectivo, contadas a partir de uma voz interior, quase sempre errática, que recorre a outras vozes convocadas pela memória nas suas falhas ou momentos iluminados, e que preenchem um vazio que vai ganhado sentido(s). Não há início ou epílogo. Há um percurso que o leitor apanha num dado ponto e segue, tantas vezes tacteando, até ele se extinguir. O livro é o que fica entre esses dois momentos.

Como este, o 27º romance de António Lobo Antunes. Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera acompanha um período que se adivinha derradeiro da memória doente, alterada e muito fragmentada, de uma mulher de 78 anos, ex-actriz com uma carreira mediana que passou a infância em Faro e se mudou para Lisboa porque queria trabalhar no teatro. O nome da doença nunca é revelado, mas é a doença que determina a forma e o conteúdo. “e que doença senhor doutor, nem sequer sou velha, aos setenta e oito anos ninguém é velho ainda, qual velha, sou uma actriz a descansar durante esta peça para, como diz o director do teatro, entrar na próxima num papel à minha medida…”

É esta a voz, a voz que profissionalmente decora outras vozes até esquecer a sua, a que o leitor tem acesso privilegiado. Frágil, mas o único meio para se situar num livro que se passa todo ele no espaço mais privado de uma mulher cuja identidade se vai revelando em espasmos à medida que essa identidade também se dilui. Ela é “Dona Celeste”, “filhinha”, “miúda”, mulher do tio, “minha senhora”. Depende do tempo cronológico ou do interlocutor. Se quem a chama ou se lhe dirige é o médico, o pai, a mãe, o sobrinho do marido, a senhora de idade que vai lá a casa dar-lhe comida, mudar-lhe a fralda, ou um dos dois maridos que lhe suplica afecto. Ela nunca gostou mesmo de nenhum. Com um casou-se por interesse, era familiar do director do teatro, e o outro porque sim. “… de há tempos para cá, começo agora a notar, escapam-me episódios, pessoas, até o meu nome palavra…” E a memória recente a perder para a memória remota num jogo literário que se ajusta ao modo de escrita de Lobo Antunes, cada vez mais próximo do que parece ser a deriva da mente, ele que se diz na literatura uma espécie de mediador ou tradutor de vozes.

Esta mulher, como o homem doente, internado num hospital em Sôbolos Rios Que Vão (2010) é tudo o que temos, numa solidão em véspera de fim, perspectiva única ao contrário do que acontece, por exemplo, no monumental romance anterior, Da Natureza do Deuses (2015), onde em vez de uma voz interior existem várias que se cruzam e revelam o tal colectivo tão comum em Lobo Antunes: um país na sua história, com personagens tipo e modos de o verbalizar; e sempre a linguagem, mesmo quando já resta só silêncio, a dizer mais do que qualquer outra coisa sobre o que se é, o que se pensa, e sente e faz.

Sexo, outro por exemplo, de que se sabe porque há um crucifixo que abana no espaldar da cama. Ela nunca amou. A não ser o pai, que além de filhinha lhe chamava cotomiça. “… uma tarde encontrei o meu marido e simpatizámos, ao segundo ou terceiro encontro levou-me para casa dele, sentia-se sozinho, coitado conforme eu me sentia sozinha, passado tempos casámos e pronto, umas palavras, uns papéis, o foguete de um carimbo a estalar no fim, sem estrelinhas, só tinta…”

A doença avança e o tempo e os espaços encadeiam-se numa vertigem de sentidos. As pessoas de uma vida cruzam-se nas suas falas e sabemos de tudo por isso, pelo modo de dizer que confere identidade e que Lobo Antunes conhece e como ninguém nas suas nuances: a língua portuguesa nas suas múltiplas manifestações, apropriações de classe ou género, urbanas ou rurais. E diz-se que continua cada vez  mais próximo da música, pelo modo como tudo soa, do que propriamente da literatura. Sem condescendência para com o leitor que se quiser o acompanha, se estiver para esse exercício de concentração profunda, onde a biografia do escritor aparece muito menos do que nos livros iniciais, mas a metáfora permanece crucial. Entra-se num livro de Lobo Antunes e reconhece-se o lugar onde se está mesmo sem ver a sua assinatura. Neste não é diferente. Há uma toada, ora harmoniosa ora obsessiva, disruptiva, tantas vezes. É uma memória a desfazer-se num livro divido num prólogo e três andamentos — terminologia  musical — e uma espécie de dormência onde todas as associações são permitidas. Serve tão bem ao actual Lobo Antunes que explora mais uma vez os limites dessa semi-consciência onde parece situar-se ao escrever, e onde está a tal mão que o guia, como costuma repetir nas entrevistas.

Antunes escreve sempre contra Antunes, já se sublinhou em relação ao romance anterior. Há um livro e a comparação inevitável com os anteriores. Ele falha quando não se supera? Da Natureza dos Deuses foi um livro grande de Antunes. Ele sabe disso. Neste seguinte, confirma que continua a perseguir a perfeição e a retratar um modo de ser português — seja lá isso o que for, nem que seja só uma maneira de dizer — como nenhum outro escritor em português o faz. Também por isso é injusto dizer que não arrisca, que se limita a ir com a tal voz única que parece sempre a mesma, ainda que seja múltipla. Este não será o seu melhor romance, mas é mais um grande romance e se nem todos os leitores estão para Antunes, os que estão sabem nunca sair a perder.


por Isabel Lucas
em Público
23.11.2016

22 de novembro de 2016

Melina Balcazar Moreno sobre Da Natureza Dos Deuses

António Lobo Antunes ou o núcleo das trevas

Edição Christian Bourgois, 2016
tradução de Dominique Nédellec
«O mundo foi feito ao contrário», proferiu um dia um velho, num hospital psiquiátrico, a António Lobo Antunes.  Um homem a quem «os médicos chamavam «esquizofrénico» e que, atormentado por tais palavras que o torturavam, ofereceu ao jovem escritor a mais simples lição de escrita de sempre:  não se pode escrever senão a partir do que antecede as palavras. Ou seja, as emoções, as pulsões que lhe conferem forma e, ao mesmo tempo, deformam a memória. Assim, em «Receita para me lerem: «as palavras não passam de signos das nossas emoções, e as personagens, as situações, e as intrigas, pretextos aparentes para atingir o avesso escondido da alma. A verdadeira aventura que persigo é a de que narrador e leitor partilhem as entranhas do inconsciente, sede da alma humana» (Livre de chroniques III *). Uma vez que, e tal como Lobo Antunes faz questão de nos lembrar, não há nada de mais contingente, mais imprevisível, que o passado.

Em Da Natureza Dos Deuses, o seu último romance – ou talvez devêssemos antes dizer um longo poema, já que a fronteira entre os géneros parece tão frágil –, o escritor aborda o destino de uma importante família portuguesa, com fortes ligações ao poder e ao dinheiro. Uma história repleta de incertezas, lacunas, de sombras, contada de modo fragmentário por um cruzamento de vozes, tempos e de níveis de consciência. O leitor vê-se, por conseguinte, confrontado com frases sincopadas, marcadas pela ausência de vírgula ou de maiúscula, arrastado por esta sucessão de vozes, atormentadas por outras vozes, que se interrompem  e permanecem frequentemente em suspensão. Estes monólogos tendem, todavia, a dirigir-se à figura de um homem, que nunca será designado senão por «senhor doutor», detendo, porém, um poder de decisão sobre a sua vida, quer na qualidade de patrão, dono, marido, amante ou pai. Aliás, o próprio Senhor acabará, por sua vez, por tomar a palavra, deixando emergir a sua própria angústia perante a solidão e a morte: «se além dos bancos mandasse na vida das pessoas proibia-as de morrer». Mais do que uma reflexão sobre os mecanismos do poder, Lobo Antunes explora [neste romance] de forma magistral o seu avesso, a sua fragilidade, até mesmo a sua impotência.

Sobre a infância e o medo do escuro

A escrita de Lobo Antunes procura, pois, situar-se para além da narrativa, para se concentrar no modo como as recordações, em particular as da infância, se apoderam do presente, a ponto de o fazer vacilar. «veja-se o poder que a infância tem, enfia-se no interior da gente e, sem que se espere, zás, salta». Da Natureza Dos Deuses apresenta-se, assim, como «um espelho no qual nos vimos [reflectidos] tal qual somos, nus e sem  defesa». É sem sombra de dúvida o desafio mais importante lançado por este romance ao leitor, que se encontra incessantemente confrontado com as suas lembranças, com o seu (próprio) «núcleo de trevas», com a sua solidão: o que se encontra no âmago das personagens, no centro da sua fala, é evidentemente o ferrete que a infância neles deixou e que se prolonga pela sua vida adulta. Apesar dos conflitos e da violência patente nos seus relacionamentos, a hierarquia que rege a sua existência, esta infância continua a fermentar, a amadurecer, acabando mesmo por juntá-los. As alegrias e as feridas da infância emergem e minam silenciosamente o papel que (eles) desempenham nas representações sociais. É o caso do senhor doutor que, na intimidade, com a sua mulher, torna-se uma criança:
                                           
«despindo-se no outro canto do quarto e eu surpreendida de que os homens assim, imaginava-os menos indefesos, mais fortes e então dei-me conta de que não é connosco que estão, é a criança que foram, estendida ao meu lado sem se atrever a agarrar-me
– Não vais fazer-me mal pois não?
sou tão pequeno, protege-me, toma conta de mim, o meu marido, dono de bancos, de companhias, das empresas todas do mundo
– Não cresci
(…)
e o meu marido meu marido a pouco e pouco enquanto se vestia, ao apertar a gravata autoritário, feroz» 

O poder do sofrimento da infância e o medo do escuro é com efeito imenso. Toma de assalto o sujeito, fazendo-o regredir à vulnerabilidade própria desta idade: crianças submetidas ao domínio dos adultos, vítimas da sua indiferença, da sua violência, testemunhas silenciosas dos seus fracassos.

A infância tem também uma ligação única com a linguagem, que actua em profundidade com a questão da rememoração de que são feitas as personagens. São palavras que se «pegam, entranham-se, não nos deixam jamais», como aquela que o pai do senhor doutor lhe dirigia, «sevandija», e a que regressa incessantemente, pontuando a injustiça e a violência dos seus actos, cometidos apesar dele, como se nada mais fizesse que submeter-se, de algum modo, à infâmia do mundo.

Da ferida secreta de todo o ser

Por ocasião de uma  entrevista, António Lobo Antunes evoca um diálogo na obra de Dickens que lhe terá provocado uma forte impressão: um homem pergunta à sua mãe moribunda, «tens dores mamã?»; ao que ela responde: «tenho a impressão de que há uma dor no quarto, mas não sei se sou eu que a sinto». O mesmo parece ser uma das questões principais que atravessa este romance. A quem pertence, afinal, a dor que se sente? Porquanto se trata de uma dor que ultrapassa o sujeito, uma dor que se estende aos lugares, aos animais, e cuja presença se encontra tão impressa ao longo do livro: “muito choram alguns bichos, quebram-se no mesmo ruído do que as pedras, agonizam calados”. Homens, animais, crianças se parecem assim pela sua vulnerabilidade, pelo abandono e indiferença a que estão sujeitos: “a gaivota na estrada sem uma alma que a salvasse”.

Os fluxos de falas das personagens cristalizam-se então à volta de um núcleo de sofrimento, cuja origem remonta a um tempo ancestral que poderíamos descrever, com Georges Didi-Huberman, enquanto «jogo impuro, tenso, este debate das latências e das violências» que mina desde o interior a tirania da ordem social. E é sem dúvida o que a figura silenciosa, mais persistente, do sem abrigo que atravessa as narrativas das personagens e tenta fazer-nos compreender. Parece lembrar-nos esta solidão, esta lassidão originárias que, a exemplo dessas vozes do romance, tentamos ocultar por falsas aparências: «não podia tocar no sem abrigo no caso de ele passar por mim e verificar se era um anjo conforme o senhor doutor sugeriu uma vez, examinando-lhe as costas à procura de asas apesar de ele nunca próximo de ninguém, desviava-se sempre, da mesma forma que Deus nunca perto de mim em nenhuma época da vida, ora aí está outro que não calculo o que Lhe fiz para não me ligar».

Que permanece pois neste mundo abandonado pelos deuses? 

Permanece, apesar de tudo, este livro, que nos é aconselhado, entretanto, a deitar fora: «larguem o livro no lixo já que a sombra do voo dos pássaros lá fora escureceu as páginas». É certamente uma grande lição de trevas que Lobo Antunes nos oferece aqui, neste romance, e que finalmente nos deixa escutar o rumor dos mortos.


por Melina Balcazar Moreno
16.06.2016

tradução do francês por Olga Maria Carvalho Santos Fonseca revista por Dominique Nédellec
texto final traduzido revisto por José Alexandre Ramos

Nota da tradução:
* refere-se ao terceiro volume de crónicas publicado em França pela Christian Bourgois (Livre de chroniques III, traduzido por Carlos Batista), cuja compilação de textos não corresponde ao volume Terceiro Livro de Crónicas editado pela Dom Quixote em Portugal.

17 de outubro de 2016

Crítica de Bruno Vieira Amaral a Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera

Que voz é esta, Lobo Antunes?

Em várias entrevistas no início da sua carreira literária, António Lobo Antunes afirmou que só publicou o primeiro livro quando encontrou uma maneira pessoal de dizer as coisas. Ao longo dessa carreira, que conta com vinte e sete romances e cinco livros de crónicas, a concepção que o escritor tinha da literatura e do seu ofício sofreu alterações. Na década de 80, dizia, por exemplo, que as suas referências eram os escritores norte-americanos, que sabiam contar uma história. Longe vão esses tempos. No entanto, aquela afirmação inicial não perdeu relevância. Lendo os livros – chamemos-lhes romances ou, como o autor, “exercícios de ambição” – torna-se claro que o escritor foi apurando – e também depurando – aquela maneira pessoal de dizer as coisas. Uma maneira pessoalíssima, única e, no entanto, contagiosa, ao ponto de uma geração inteira ter contraído, a certa altura, uma espécie de lobo-antunite, a olhar para o mundo da perspetiva de Lobo Antunes e a tentar descrevê-lo através daquela forma de expressão muito pessoal e, aparentemente, muito transmissível.

Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera, vigésimo-sétimo romance de Lobo Antunes, é mais um capítulo desse labor contínuo. A certa altura, generalizou-se a ideia de que o escritor se repete e, no fundo, está a escrever o mesmo livro há muito tempo. É uma ideia popular, sobretudo junto daqueles leitores que se apegaram aos primeiros livros e, depois, desistiram ou não conseguiram acompanhar o ritmo de publicação de Lobo Antunes. Havendo um fundo de verdade nessa ideia – e lá chegaremos – o certo é que nenhum outro escritor contemporâneo trouxe tanto Portugal e tantos Portugais para os seus romances. Obedecendo à máxima de Balzac, que o próprio Lobo Antunes por várias vezes citou, segundo a qual o verdadeiro romancista tem de ter vasculhado toda a vida social porque o romance é a história privada das nações, o escritor português vasculhou e escreveu sobre o Portugal suburbano, a burguesia lisboeta das Avenidas Novas, a classe média urbana, a velha fidalguia rural, os esquecidos dos bairros periféricos, os pornograficamente ricos das moradias de luxo, os banqueiros e os delinquentes menores, os deslocados do campo para a cidade, os deslocados das colónias para a metrópole, as cabeleireiras e os empregados de balcão, os políticos, os enfermos, os traficantes de diamantes e de influências. Portanto, quer se fale dos temas ou do meio social retratado, a acusação de repetição não tem fundamento.

Aquela dicção inconfundível

Veja-se o caso deste romance. A protagonista da história (e estes termos têm de ser utilizados com cautela) é uma ex-actriz de setenta e oito anos que na juventude veio de Faro para Lisboa, onde conheceu um moderado sucesso nos palcos e foi casada por duas vezes, a primeira por conveniência económica e a segunda, digamos, por desinteresse. Agora, num processo de degenerescência mental, aos cuidados do sobrinho do marido e de uma senhora de idade, recorda o que lhe aconteceu, os tempos de infância no Algarve, os passeios com o pai, a carreira no teatro, os casamentos e olha para o mundo com a confusão de um cérebro devastado, incapaz de se lembrar onde é o quarto e com as memórias antigas mais vivas e luminosas do que nunca, como o pavio de uma vela que se aproxima do fim.

Então, a protagonista é esta, o cenário é este, a história é esta. O livro, bem, o livro é outra coisa. Porque aquelas coisas estão no interior do livro, mas são tanto o livro como um ser humano é o seu esqueleto. Estão no seu interior, mas não são a sua essência. Estão dentro mas, para o que interessa, são exteriores ao livro. O romance olha para muitas coisas lá fora, mas avança às ordens da voz que o constrói. Essa voz está no centro do romance e, ao mesmo tempo, paira sobre ele, organiza-o e, ao mesmo tempo, flui, arrastando para si as outras vozes – das personagens, da narradora, do autor – tornando-a uma só. Porque aqui não há polifonia, no sentido em que As Ondas, de Virginia Woolf, ou Na Minha Morte, de William Faulkner, são romances polifónicos. O que há é uma monofonia em vários tons em que a mesma voz atravessa todo o romance e atrai para si tudo o que encontra pelo caminho: os detritos e as pérolas, os trejeitos linguísticos que assinalam uma personagem e as imagens poéticas que denunciam o criador.

Por isso a narradora que numa página diz “derivado à doença” noutra fala de “uma casita de madeira onde me dava a impressão de ferver uma colmeia de horas”; numa, “o avental de não me sujar”, noutra, “a gravata um nó de suicida hesitante”; a certa altura diz “não entendo o motivo de se haver encrençado por mim” e, mais à frente, “um rafeiro parecia conversar erguendo uma pata traseira em confidências de pingos” sendo esta construção aquilo a que poderemos chamar de lobo-antunismo, uma forma peculiar de dizer, uma dicção inconfundível que, apesar de menos recorrente do que os excessos de virtuosismo metafórico das primeiras obras, continua a pontuar os romances do escritor, como uma assinatura. Há vários exemplos:

o meu cabeleireiro apagado com os capacetes de astronauta à espera das viajantes interplanetárias da manhã”; “as cadeiras de alumínio encaixadas umas nas outras numa procissão de vértebras”; “os uivos de bebé de uma ambulância na rua”; “tudo aquilo se despenhava num rebuliço de folhas”; “escolhia entre cápsulas em gestos de açucareiro com a pinça de dois dedos e engolia numa delicadeza de comunhão”.

Essa voz dobra o tempo, relativiza-o, amachuca-o, traz o passado para a porta de casa, intromete fiapos de diálogos nas frestas do discurso, faz assomar as recordações à janela da memória, sendo que a memória devastada da velha actriz torna credível o caos cronológico pois ela logo de início nos avisa que há muito que o tempo se fixou, “dá a ideia que se altera mas é o mesmo sempre e é no interior desse tempo que continuo a esmorecer devagar”. A voz, como tal, constrói o tempo e é também ela feita de tempo, um tempo que não é o tempo real (se é que tal coisa existe) nem é o tempo da ficção, não é o tempo da sanidade nem o da loucura, é uma amálgama de todos esses tempos derretidos. Essa voz que, mais do que construir um edifício narrativo, compõe um movimento musical (embora às palavras falte o rigor matemático das notas musicais), sustenta-se em motivos ou repetições. No caso deste livro, há o motivo do galgo do avental, do “motor” do gato, do comprimido, do relógio de cucos e do crucifixo a bater na parede como sinalizador do sexo, todos a marcar o compasso da voz e do tempo.

A realidade nos pormenores

Os romances de Lobo Antunes são, portanto, gestos radicais que não obedecem a nada que lhes seja exterior, apenas às exigências da voz, dessa forma voraz de ver, apreender e devolver o mundo. O maior problema dessa condição – e a razão de se acusar o escritor de escrever sempre o mesmo livro e de se repetir – é que, por muito diferentes que sejam as realidades que lhe servem de ponto de partida, todas elas são sacrificadas no altar da voz que as assimila e depois recita como se fossem idênticas. É como se a cada romance Lobo Antunes olhasse para diferentes realidades e as submetesse ao mesmo tratamento indistinto. É aqui que se trava o combate decisivo do escritor e, diria, de toda a literatura. Partindo do princípio que há uma realidade fora dos romances, realidade da qual eles partem (e é inegável que os romances de Lobo Antunes partem de realidades históricas e sociais concretas), até que ponto os romances se devem organizar em função dessa realidade? Nos romances de Lobo Antunes encontramos o Portugal real, com os naperons e os bibelôs, as Cátias do Seixal e as mulheres que tratam o marido pelo apelido, ou uma construção literária autónoma, um país de linguagem a que, por conveniência, chamamos de “Portugal”?

Sobre os romances, diria que o país neles retratado é uma construção daquela voz, embora semeada de pormenores colhidos na realidade e que, pela forma como são distribuídos pelo texto, dão a impressão de resultarem mais de um cruzamento do instinto, da capacidade de observação e da memória com a imaginação do que de uma investigação aturada, digamos, sobre os teatros de Lisboa ou sobre as ruas de Faro em meados do século XX, como acontece em Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera. Nos romances de Lobo Antunes, o real – o das personagens, o do país, o da humanidade – manifesta-se nos pormenores, nos pequenos gestos, objectos e frases que permitem que o leitor vislumbre o mundo que tem por realidade:

uma Nossa Senhora fosforescente numa prateleirinha”, “uma mulher de roupão a apanhar lençóis de um estendal guardando as molas no bolso”; o “carrito de rodas de pano de xadrez que vai saltando no passeio na sensação de quando era pequena e puxava um pato de brinquedo pelo cordel”; “a maneira de coçar uma perna com o tornozelo da outra”; “o interruptor junto à porta que deitava sempre faíscas”; “um tubo de pastilhas para a garganta destinado aos alfinetes”; o pai a correr e “a segurar as algibeiras do casaco com as palmas”; “uma capela onde se guardavam batatas” (diz a narradora de uma capela que, no entanto, só vê de passagem); “um albino de bicicleta com pinças de estendal a apertarem as calças”; “duas alianças na mão esquerda e portanto viúva”; “o peixe de baquelite que me punha na banheira”.

Não se trata meramente de um artifício literário para assegurar a verosimilhança, para que o leitor diga “isto é mesmo assim”, é a prova de que a voz que arrasta tudo consegue, ainda assim, reparar nas pequenas coisas, segurá-las com delicadeza e oferecê-las generosamente. É, pois, uma questão de atenção, de vasculhar toda a vida social e trazer à superfície os fragmentos aparentemente insignificantes que a revelam.

Com este gesto, a voz que devora e anula as realidades que se propõe descrever, redime-se. Sem início, sem enredo e sem desfecho, o romance é uma voz que se acende e que, lida a última página, se extingue, deixando o leitor abandonado ao silêncio a que aquela voz, mais do que a qualquer tradição literária, mais do que a qualquer realidade, pertence. “A minha casa ergue-se no cruzamento de dois silêncios”, escreveu Antoine Blondin, escritor que Lobo Antunes já apontou como uma das suas grandes influências. O que está neste livro não é uma história – o autor já renunciou a essa missão – mas uma voz que se ergue entre dois silêncios, uma casa de sombra entre duas escuridões profundas. Nesse sentido, consideremo-los mais ou menos realistas, os romances de Lobo Antunes parecem-se muito com a vida.


por Bruno Vieira Amaral
17.10.2016

14 de outubro de 2016

Artigo de Norberto do Vale Cardoso sobre Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera (publicado no Jornal de Letras)

António Lobo Antunes:

Os misteriosos matusaléns do escritor


O novo romance de António Lobo Antunes, Para Aquela Que Está Sentada No Escuro à Minha Espera, realça um tema sobejamente importante na obra deste autor: a memória. Numa linha de continuidade, este romance retoma aspectos de obras anteriores, em constantes reenvios e alusões que devem ter em conta o corpus textual antuniano (constituído hoje por 27 romances publicados).
Alguns desses aspectos passam por: referência a cantilenas («– Pico pico sardanico quem te deu tamanho bico» ou «– Dança o cão dança o gato dança o feijão carrapato», que é título de uma crónica) e passagens bíblicas (a parábola do grão de mostarda, a título de exemplo), bem como intertextualidades (citação de excertos do poema “A lua de Londres”, de João de Lemos, autor do século XIX); e, acima de tudo, uma profusão de temas e lateralizações, quase sempre presentes nos romances de Lobo Antunes, tais como: o suicídio (de que encontramos, em Para Aquela…, três situações); a casa (lugar matricial, também aqui presente através da casa dos pais da protagonista, em Faro); alusões onomásticas (a prima da protagonista chama-se ‘Antonina’; o pai da personagem principal teria tido uma relação extra-conjugal com a ‘filha do Antunes’); a exclusão social (a homossexualidade, o travestismo e a miséria); a importância do voar (a entidade feminina recorda como a mãe lhe dava de comer enquanto ela voava) e da figura paterna (o pai era o único que a tratava por «- Filhinha» e não pelo nome próprio); as menções ao mundo do espectáculo (a protagonista foi actriz; o pai parece-se a um ‘Charlot’; um amigo do pai pertence a uma companhia de teatro ambulante); e a doença (a irmã chamava-se Corália e faleceu de difteria, o que intensificou a responsabilidade de viver da narradora que, aliás, também padece de uma doença).
Não obstante todos esses temas e micro-narrativas, é em torno da memória que gira a temporalidade da narrativa de Para Aquela Que Está Sentada No Escuro à Minha Espera, romance que não é estruturado apenas em narrativas descontínuas ou emaranhados, mas especialmente numa fruição da própria memória, feita, afinal, de descontinuidades, incertezas, interditos, elipses, avanços, recuos, esquecimentos e recordações. A protagonista e narradora do romance é de facto alguém que sofre de perdas de memória que a incapacitam para a vida profissional (era actriz e principia a esquecer-se das falas, tendo ‘brancas’ quando procura as palavras) e – paulatinamente - para a vida pessoal, o que a impede de viver sem o auxílio de alguém, aguardando-se, em última análise, o seu falecimento. A memória, como os três andamentos em que o romance se estrutura (tendo cada um deles oito capítulos), tem graus de velocidade e a personagem recorda, a partir da doença que a assola no presente, a infância passada em Faro, a relação entre os pais (com destaque para o ‘crucifixo’ que ora se move ora se silencia), um amigo que andara com o pai na tropa e que augurava para ela um futuro promissor nas artes dramáticas, os ex-maridos e uma coterie de objectos (animados e inanimados, mudando e suspendendo-se de forma a meio da noite, como a estatueta de uma rapariga agarrada a um cisne) que, entre a luz e as sombras da recordação, vai cruzando o mundo do espectáculo com o da memória.
A memória é, pois, o compasso que controla o ritmo do presente, tendo em conta que a ex-actriz padece de Alzheimer (palavra não pronunciada, sempre subentendida), oscilando entre perdas de memória e espantosas recordações. Podemos dizer que essa situação conduz ao que William Faulkner diz numa passagem de Uma Luz Em Agosto: «A memória acredita antes de o conhecimento recordar. Acredita por mais tempo que recorda, por mais tempo até que o conhecimento se interroga (…)» (ed. D. Quixote, 2016, p. 107). Assim, em Lisboa, ao cuidado de uma senhora de idade, sob a supervisão do sobrinho do marido já falecido, a voz feminina recorda todos os que estão mortos, mas, ainda assim, vivos dentro dela, como se constata: «que estranha forma de viver têm os mortos» (Para Aquela…, p. 74). Ora essa capacidade de a memória acreditar antes de o conhecimento recordar, leva a mulher a pensar que os seus pais (mortos há anos) tocam à campainha e se regozijam por ela estar prestes fazer setenta e oito anos. Estabelece-se aqui uma ligação entre a memória do que aconteceu e a memória do que se imaginou acontecer, potencializando-se, na escrita ficcional, um abalo na fronteira entre o mundo dos vivos e o dos mortos:

[…] a senhora de idade para a minha mãe
– Não lhe pergunte seja o que for que ela para além de não falar
não se recorda de nada
o meu pai para a senhora de idade espantado
– Não se recorda de nada?
mortos há tanto tempo e no entanto aqui, como deram comigo em Lisboa no apartamento que não conhecem de uma rua que não conhecem também […]
(Para Aquela…, p. 263)

Esse esbatimento torna-se evidente quando se refere que a própria actriz faleceu antes dos pais (Para Aquela…, p. 311), o que coloca o leitor perante a impossibilidade de toda a narrativa memorialística. As fugas da memória conduzem a deslizamentos da verdade. A referência central poderá ser Pedro Páramo, de Juan Rulfo, que nos revela como a fronteira entre a vida e a morte é ténue na literatura. Em Pedro Páramo, a procura da mãe há-de traduzir-se num encontro insólito, para, no final, tudo ser colocado em dúvida. Ora em Para Aquela Que Está Sentada No Escuro à Minha Espera, é a filha quem procura o pai, partindo da doença, que – não o descuremos – metaforiza o processo da criação romanesca, ligado à memória. Daí também a importância da noite ou do escuro, pois a entidade feminina procura o seu quarto no escuro da casa, acorda de manhã e apercebe-se de que as coisas mudam durante a noite, desde o olhar do gato (símbolo heterogéneo da ligação entre o terreno e o além) ao rosnar do galgo (o que lembra a raposa de A Ordem Natural das Coisas). Não há apenas rememoração, mas uma construção imagística.
Escrita, espectáculo e memória – três motivos interligados e centrais no romance. Ora a actriz foi perdendo as palavras até ficar muda, mesmo que no seu interior ela não acredite nessas perdas. Como em Pedro Páramo, o silêncio permite que se apaguem de nós os ruídos e as vozes dos outros para escutarmos a nossa própria voz, o que sucede com a entidade feminina que deixa de verbalizar o que, afinal, passa a falar interiormente. O sobrinho do marido e o médico acham que ela não fala, mas essa (in)aptidão para usar as palavras liga-se ao ofício da escrita como uma criação inquietante. Não deixa, pois, de ser curioso que, no romance de Lobo Antunes seja aquela que duvida e se esquece das coisas (a irmã existe e não existe; o gato morreu com uma injecção dada pelo veterinário; o galgo que desaparece e é apenas uma imagem num avental) quem se ocupe da escrita do livro (p. 193).
A escrita-espectáculo-memória aparece-nos em todo o seu esplendor quando Lobo Antunes encontra ligações entre elementos díspares. A título de exemplo, a mulher doente que vai ao cabeleireiro, que se pinta, que se reinventa para parecer e se sentir sã, é comparada ao travestismo; os aplausos do público no teatro são comparados aos do médico e do sobrinho por afinidade quando ela se lembra de algo que a doença parecia ter apagado em definitivo. Isto sem esquecermos que ela desejava que «as pessoas» aplaudissem o pai «ao aplaudirem-me» (Para Aquela…, p. 60), e também que, no final do romance, o pai é referido como um ‘palhaço’ e um ‘pateta’ na direcção de quem ela corre, pois deverá ser ele quem a espera no escuro. O jogo burlesco faz parte da mundividência antuniana, servindo de base para o entendimento do que é a memória:

– Há meses que não a via assim bem disposta a falar do teatro a
falar dos pais dá ideia que recuperou a memória lembra-se das traineiras das gaivotas
lembra-se de praticamente tudo o estafermo, que misteriosos os matusaléns, dão ideia que a cair e quando menos se espera arrebitam (Para Aquela…, p. 231)

Eis que a memória, definida como misteriosos matusaléns (recordando aqui o Livro do Génesis, onde se afirma que Matusalém viveu novecentos e sessenta e nove anos), será, afinal, a palavra que se deseja longeva, ou seja, a sobrevivência da literatura à passagem do tempo, às brancas que a memória possa ter no espectáculo da vida. 


por Norberto do Vale Cardoso
em Jornal de Letras nº 1201 (ano XXXVI)
Outubro de 2016

Este texto foi disponibilizado para o acervo de antonioloboantunes.pt por cortesia do seu autor.

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