Andrei Barros Correia: opinião sobre O Manual dos Inquisidores

Gosto de escrever pela manhã. Mas terminei de ler O Manual dos Inquisidores agora e já é noite. As impressões estão fortes na cabeça, talvez não deva perder a oportunidade, mesmo que saia mal pensado e apressado.

Há dois anos, mais ou menos, o Miguel me dizia da leitura do Lobo Antunes que era difícil. Eu enchia a paciência dele a perguntar de autores portugueses, que excepto por Eça e Saramago pouca coisa tinha lido. Com a paciência de quem gosta do assunto, Miguel falava de um e outro. Do Lobo Antunes lembro-me da advertência.

Tanto que ficou muito para depois o Lobo Antunes, para agora. O homem facilita a percepção de que ele seja meio louco, diz que escreve talvez para remediar-se. Que escrever e ser psiquiatra são coisas próximas. E fica a parecer real, porque muito psiquiatra é médico para tratar de si mesmo. Mas, deixo isso para lá.

Não andei em busca de críticas e resenhas do livro, apenas li aquelas bobagens que vêm nas orelhas e nas contra-capas. Sempre são bobagens, é impressionante. O lugar-comum é decadência, embora ninguém saiba o que é isso. Querem significar com isso tempo, história?

Devem querer dizer história, porque é a coisa mais difícil de perceber que existe e, por isso mesmo, a que é chamada por mais nomes diferentes é multi-significantes. As personagens envelhecem e ficam decrépitas, é isso, acho, que leva o comentador a falar em decadência. Ora, decadência sempre há, não pode ser o elemento distintivo de alguma coisa.

O bom autor Lobo Antunes fala de história, é claro. Muito mais que de histórias particulares das personagens, mas da história de um período: o salazarismo do meio para o final. A história apreendida nas suas expressões em cada camada social, porque o quadro completa-se com as realidades múltiplas.

O formato do livro é quase destituído de surpresas, excepto para quem entenda linearidade como evolução cronológica ritmada. A linearidade narrativa do livro está na integração evidente das idas e vindas do tempo contado ao depois. Os episódios são perfeitamente necessários, uns aos outros.

Os relatos e comentários, partes que sempre se sucedem, são mudanças de ponto de vista, como fotografias de uma coisa tiradas a partir de locais diferentes e dão ideia de profundidade, porque assim pode-se relacionar as percepções diferentes de um episódio. É algo diferente de versões, devo apontar, são visões distintas de um mesmo processo.
 
Um processo que evidencia algo terrível e tão terrível que muitos ignorarão, porque somos treinados desde cedo para não ver esse ponto essencial. Nos processos históricos e mesmo naqueles que têm grandes mudanças políticas e rompimentos, há um grupo que nunca perde.

Há um grupo que sofre, aqui e acolá uns problemas, mas sempre arruma-se, permanece quase que acima da história. Por isso mesmo, é superficial falar em decadência ou, talvez, fale-se em decadência muito superficialmente. Ela acontece para os grupos movidos e para os indivíduos particularmente, mas não para um grupo. No livro, isso é claríssimo e, de tão terrível, ocupa somente uma porção inicial dele.

Por outro lado, a grande personagem do livro fez-me lembrar outro livro, por conta de uma associação bastante livre, que não é propriamente literária. Falo do Médico e o Monstro, de Stevenson, que geralmente é visto como algo meio extraordinário no sentido de ficcional, ou de algum terror.

O livrinho de Stevenson é das mais profundas análises da alma humana que se fizeram. Eles convivem em todos, o médico e o monstro, é questão de despertá-los. E convivem até pacificamente, é questão do médico perceber o monstro ou de não o perceber em absoluto. Se eles entendem-se razoavelmente, superficialmente, aí é que a convivência é conflituosa.

O Ministro do livro, o Ministro de Salazar que vai de poderoso a velho de sanatório, não percebe o monstro absolutamente. Até ao final ele não se vê além de como sempre se viu, então ele conta o que torturou por mandar, o que matou por mandar matar, o que comprou de gente por comprar e simplesmente conta.

Ele é a figura vulgaríssima de pessoa com apetites e meios para satisfazê-los, com apetites e sem meios para satisfazê-los;,mas sempre com apetites. O que muda são as disponibilidades dos meios o que equivale a dizer tempo. Ele é só ele, não tem propriamente pensamentos, mas recordações e apetites. Não tem crítica, mas imagens que se referem a ele e só a ele.

Um morto ou vários mortos, um morto na frente dele morto por ordem dele é um elemento de recordação que faz sentido na lembrança de toda sua vida, que é muito bem alinhavada na narrativa, a despeito das idas e vindas cronológicas e do texto sem vírgulas. Uma vida extremamente coerente, diga-se, quase uma vida de coerência da razão de Estado.

E as outras personagens, subsidiárias, evidentemente, são a mesma coisa. Claro que são coisas socialmente diferentes, mas fica evidente que feitas da mesma matéria. Elas são as suas posições sociais, enfim, são móveis de pouca ou nenhuma liberdade. O livro, e aqui devo dizer, é terrível para quem acredita em liberdade.

A única liberdade que há é de lembrar-se e de querer, de ter apetites. De tê-los e satisfazê-los, de tê-los e não os satisfazer, de continuar a tê-los e não os poder mais satisfazer, pouco importa. O que houve, todos os fragmentos, foram somente partes de uma trajectória, não implicam qualquer coisa que não se refira a si mesmo.

Várias personagens ligadas, como é de um romance ou novela, com vidas ligadas, deixam claro que as ligações são muito menos que cada um. Que cada um percebe o mundo em si e vai até ao final assim.


por Andrei Barros Correia
11.03.2011

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