Visão: No mundo de Lobo Antunes
Visão - entrevista de Sara Belo Luís
8 de Outubro de 2009
«Os meus livros não vão morrer»
É na sua biblioteca pessoal que António Lobo Antunes fala sobre Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?. O novo romance ou, como diz, uma das personagens, "o testemunho" do escritor: "O que amarelece por aí quando não existires"
Não é indiscrição dizer que a casa nova de António Lobo Antunes fica no Conde Redondo. Nas crónicas que publica nas páginas da VISÃO, Lobo Antunes já ficcionou sobre aquelas ruas de Lisboa - as velhotas, as mercearias, os indigentes. Aos 67 anos, diz que há muito tempo que não se sentia tão bem numa casa. E tanto assim é que deixou de escrever em sítios mais ou menos impessoais. A resposta estará nas últimas palavras de Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?, o seu novo romance, que a Dom Quixote lançará no próximo dia 22, no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, em Lisboa: "É a casa que regresso." Eis o escritor com os livros em volta.
Há uma frase que se repete constantemente ao longo de Que Cavalos...: "Como esta casa é triste às três horas da tarde." Que frase é esta?
Estava a folhear Memória de Elefante e encontrei lá essa frase que sempre me impressionou muito por estar associada à velhice e à solidão, à miséria da solidão. Era uma história verdadeira: uma senhora que, quando era miúda, a mãe costumava levar a fazer visitas a casas cheias de móveis antigos. Também eu, na minha infância, ia com o meu avô visitar tias velhas em casas tristes como aquelas.
Como eram essas casas?
Eram muito sombrias, com corredores compridos, cortinas corridas, pianos e fotografias de mortos. Havia fantasmas a passar por trás de nós, banheiras com patas de leão e esquentadores antigos que pareciam marmitas de Papin. Tudo aquilo ficou dentro de mim.
Quando começou, era o que tinha?
Sim, essa frase e aquela outra "que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?", que é uma moda do século XIX, cantada por camponeses analfabetos. Também tinha vontade de fazer um livro com a estrutura da corrida de touros.
Gosta de touradas?
Gosto da tourada à espanhola.
Mas não é propriamente um aficionado?
Não, embora ache um espectáculo único, assisti a três ou quatro na vida. Aliás, já em Conhecimento do Inferno eu falava no Curro Romero e noutros toureiros. Tinha 7 anos quando, em Barcelona, vi uma tourada pela primeira vez. E lembro-me bem do mal estar que tudo aquilo me provocou, náuseas, angústia, vómitos. Nunca tinha visto tanto sangue, nunca tinha visto matar.
A tourada também tem um certo lado teatral.
Não lhe chamaria teatral, parece-me mais um ritual. E plasticamente é um espectáculo muito bonito. João Cabral de Melo Neto tem um poema sobre o que é a tourada. Também me veio à ideia um verso de Ovídio, que (juntamente com Vergílio e Horácio) é uma das minhas três paixões. Vou tentar traduzir: "Lentos lentos corram ó cavalos da noite." Julgo que esta frase, que nunca aparece, é que é a frase-chave do livro. "Lentos lentos corram ó cavalos da noite."
Percebe-se que tudo se passa no Ribatejo, numa quinta, com cavalos, touros e azinheiras. Não lhe interessa nomear os lugares?
Para mim isso não é importante. O que estou a fazer é tentar exprimir as paixões da alma. E, no fundo, a vida humana. Eu sei lá como é o Ribatejo. Não o conheço. Assim como não conheço a Angola de agora, de que falo. Podia chamar-se assim como outra coisa qualquer, são tudo territórios interiores. O significado não está no interior do livro, mas à volta dele, como diz Conrad.
Porque é que Que Cavalos... aparece identificado como "romance", quando há muito que recusa o género?
Não tinha escrito isso no manuscrito. Mas da mesma maneira que não gosto da capa... Devo ser o autor mais cómodo porque nunca discuti uma capa, nunca revi provas. Tive a felicidade de trabalhar com a Tereza [a editora Tereza Coelho, falecida no princípio do ano] e, agora, com a Maria da Piedade Ferreira, com quem também tenho uma relação muito boa. É curioso porque foi ela, que então estava na Bertrand, a primeira pessoa a recusar publicar Memória de Elefante. Coisa que eu compreendo porque aquilo, na altura, era estranho. Acontece: André Gide recusou Proust, Gallimard recusou Céline. Pedi à Maria da Piedade para continuar a trabalhar comigo, mesmo que ela queira sair da Leya. Contra alguns receios que tinha, aliás, só posso dizer bem do grupo Leya. Tem-se portado com uma correcção inexcedível, não tenho a menor razão de queixa.
Quer dar, como disse à Folha de São Paulo, "um trabalhão à crítica"?
Não acredite em tudo o que os jornais dizem, mas, com os instrumentos que existem agora, penso que é de facto muito difícil analisar este livro. Vamos ter de esperar algum tempo. É evidente que estou dentro dele e que, portanto, a minha visão será sempre parcial. Sinto, no entanto, que este é o livro onde cheguei mais fundo dos sentimentos e das emoções. Aquilo vem de regiões tão profundas que eu nem sei quais são. Tchekov diz qualquer coisa como isto: desce, desce, desce até onde se encontram os outros e tu no meio deles.
Quando chega lá ao fundo, o que se encontra é o conflito?
Julgo que em todos nós existe uma guerra civil constante, vários partidos dentro de nós que se digladiam. Até na política: a escolha de um partido, como a escolha de um clube de futebol, nunca é racional. Não costumo ver televisão, mas na noite das eleições liguei-a e fiquei muito surpreendido quando vi que todos estavam contentes com os resultados obtidos. Todos tinham ganho. Não sei se os líderes dos partidos estão conscientes disto, mas tudo parece irreal. Talvez Calderón tenha razão quando escreve que a vida é de facto um sonho. E a única coisa real é a nossa finitude. Que consolação posso eu ter? A consolação de os livros ficarem porque, aí, tenho a mesma convicção que Ovídio: acho que os meus livros não vão morrer.
E permanecerá através deles.
É quase indigno as criaturas ficarem e desaparecer a pessoa que as criou. Veja como mal conhecemos a cara da maior parte destes autores que aqui estão. Não sabemos como era Horácio, como era Camões, como era Bernardino, como era Dante. E, no entanto, a obra deles continua viva dentro de nós. Os seus livros ajudam-nos a viver, a entender o mundo e a nós mesmos. No outro dia, estava muito cansado, tinha escrito muitas horas. Fui à estante do corredor e tirei um livro ao acaso: Dickens, Hard Times, Tempos Difíceis. Abri uma página ao acaso e encontrei as linhas mais extraordinárias que já li na vida. Um homem vai visitar a mãe, que está muito velha e doente, e pergunta-lhe: tens dores, mãezinha? E ela responde: tenho a impressão que anda uma dor aí pelo quarto, mas não sei se me pertence. Isto é extraordinário, eu senti isto quando estava doente. Está ali uma dor no quarto, mas não sabemos se é nossa.
Por ter estado, há três anos, mais perto da morte, passou a escrevê-la de forma diferente?
Não, passei foi a viver de forma diferente. Sempre vivi a morte como uma espécie de nascimento para outra coisa qualquer. E, nos livros, a morte é um símbolo da vida. Em A Ordem Natural das Coisas, a morte da tia é sentida como um nascimento porque ela morre enquanto está a dar à luz a filha. Ou seja, há nela uma eternidade. Uma coisa, aliás, que me tocou quando trabalhei com suicidas foi o facto de haver dentro deles um sentimento de eternidade. Falo da morte para a negar. Pela mesma razão por que ouço sempre o Concerto de Ano Novo, com o qual me comovo até às lágrimas. Aquilo é um triunfo sobre a morte, uma afirmação da vida, do amor e da alegria de viver.
A sua dedicação à escrita é total. Às vezes não se sente sozinho, no meio de tudo isto?
Às vezes, sinto. Claro que sinto. Há um poeta latino que dizia: "Quando estou sozinho sou todo meu." Passava tardes com o Ernesto Melo Antunes e, praticamente, proferíamos dez ou 15 frases. As pessoas com quem me entendo melhor são, em geral, pessoas que falam muito pouco. Ou então são pessoas que falam muito porque me distraio, deixo de ouvir ao fim de cinco minutos e basta dizer que sim de vez em quando. Mas, depois da doença, aprendi a jogar com as cartas para cima porque, ao pé do nosso fim físico, tudo o resto perde importância.
Tem vontade de escrever sobre o cancro?
Isso seria como falar sobre a guerra. Diante das grandes coisas, pouco há a dizer. Por isso é que os livros têm que estar cheios de silêncio.
Para quem sempre preservou a sua vida privada, como é que se sente quando vê as suas relações amorosas estampadas nos jornais?
No princípio, senti-me furioso. Mas, depois, compreendi que aquilo não era a minha vida privada. Era a vida privada de uma criatura que inventaram a partir de mim. Nunca me passou pela cabeça que pudesse ser tema para vender jornais e revistas. Mas o que mais me impressionou foi sobretudo a falta de carácter, as mentiras e os exageros. Até porque a minha vida não tem interesse nenhum, o que interessa são os meus livros. E felizmente que as pessoas que lêem os meus livros não são leitores desses pasquins.
Como escolhe os livros que integram a Biblioteca António Lobo Antunes, uma colecção com o seu nome que a Dom Quixote está a publicar?
Tento escolher livros cujos direitos estejam no domínio público. São livros de que gosto muito e que penso que podem ajudar as pessoas a gostar de literatura. Faz-me muita impressão ver as livrarias cheias de livros sem interesse algum. Claro que este fenómeno dos chamados best-sellers sempre existiu porque, de certa maneira, é conveniente que exista.
Porquê?
O facto de as pessoas estarem a ler esse tipo de livros é muito tranquilizador para o poder instituído. Porque esses livros não põem nada em causa. Os best-sellers e as telenovelas desviam as atenções das pessoas. Aconteceu o mesmo com a industrialização. Até ao século XIX, passa-se imediatamente de criança a adulto. Quando os industriais começam a chegar, inventa-se a adolescência, um período de latência entre a infância e a idade adulta, no qual os indivíduos deixam de ter intervenção na res publica. A arte é, por natureza, profundamente subversiva. E, por isso, é muito mais tranquilizador se eu der às pessoas livros nos quais elas têm sempre pé. Que não as predispõem para a revolta necessária.
De que tipo de poder fala?
Todo o poder é conservador. Todo o colégio, toda a agremiação, todo o partido, toda a igreja, todo o exército. Qualquer poder é conservador sob pena de se desagregar. Se eu entregar às pessoas esses subprodutos, elas não só não fazem determinadas perguntas como não exigem determinadas respostas. E desta maneira a ordem não será subvertida.
A ordem precisa de ser subvertida?
Se as pessoas quiserem viver melhor, precisa. Claro que sim.
Foi votar nas últimas legislativas?
Isso é uma pergunta íntima.
Pode não querer responder, mas de íntimo a pergunta não tem nada.
Não, não fui votar. Não vejo diferença entre os partidos, vejo apenas duas frentes eleitorais, o PS e o PSD, sem qualquer ideologia. O único partido que tem um corpo ideológico coerente é o PCP, mas para mim é surpreendente que continue a haver pessoas que votem naquilo. Claro que houve excepções como De Gaulle e Churchill, mas já reparou na falta de sentido de humor dos políticos? Ora aí está: se tivéssemos uma arte boa, nenhum desses partidos existiria. Porque não respondem às nossas necessidades profundas, às nossas convicções, à nossa necessidade de felicidade. Se todos lessem A Odisseia e Dom Quixote provavelmente o mundo não seria o mesmo.
Mas a arte tem esse poder?
Se lhe derem espaço e se não a tentarem estrangular, tem. Depois do 25 de Abril, o que é que se fez pela cultura do nosso país? A cultura continua a ser uma qualquer coisa de marginal, para muito poucos. Para as massas, existem os best-sellers e as telenovelas. Porque, como já disse, a cultura é profundamente subversiva. A Igreja proibia os livros porque punham em questão um sistema, defendiam teses completamente inconcebíveis como o facto de a Terra andar à volta do Sol. E é tremendo, mas ainda hoje continuamos a acreditar que é o Sol que anda à volta da Terra. Ao introduzir o princípio da incerteza na física, Heisenberg foi recebido com imensa relutância.
Não gostamos do que nos desassossega?
Somos conservadores, conservamos tudo aquilo que nos tranquiliza. E quando, de repente, somos apanhados pela verdade horrível da agonia e da morte, descobrimos que já é demasiado tarde. Conrad tem razão quando diz que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que, normalmente, chega demasiado tarde. Lembro-me de, no 25 de Abril, a maior parte das pessoas estar cheia de medo da liberdade. E de o caseiro do meu avô defender que era preciso que os franceses viessem tomar conta de nós.
Quando lhe atribuem prémios, quando o elogiam, não se sente "institucionalizado"?
Às vezes penso se todos estes prémios não serão a forma mais perigosa de me neutralizar, que é adoptarem-me. Como quando os escritores vitorianos foram neutralizados. Ou como quando fizeram de Camilo Visconde de Correia Botelho.
Adoptado quer dizer institucionalizado?
Adoptado quer dizer integrarem-me neste sistema de que falo. E nada disto tem a ver com política.
Pelo contrário, tem tudo a ver com política.
No sentido de Aristóteles, mas não no sentido dos nossos políticos de agora. Claro que, de vez em quando, aparecem grandes homens...
Obama é um deles?
Isso não sei avaliar.
Quando, no ano passado, esteve em tournée nos Estados Unidos, sentiu que a América com Obama estava diferente?
Não. E gostei muito de John McCain, que é um homem de uma grande dignidade. No fundo, são iguais aos nossos políticos, mas em melhor. Encadernados e com melhor papel.
Há uma frase que se repete constantemente ao longo de Que Cavalos...: "Como esta casa é triste às três horas da tarde." Que frase é esta?
Estava a folhear Memória de Elefante e encontrei lá essa frase que sempre me impressionou muito por estar associada à velhice e à solidão, à miséria da solidão. Era uma história verdadeira: uma senhora que, quando era miúda, a mãe costumava levar a fazer visitas a casas cheias de móveis antigos. Também eu, na minha infância, ia com o meu avô visitar tias velhas em casas tristes como aquelas.
Como eram essas casas?
Eram muito sombrias, com corredores compridos, cortinas corridas, pianos e fotografias de mortos. Havia fantasmas a passar por trás de nós, banheiras com patas de leão e esquentadores antigos que pareciam marmitas de Papin. Tudo aquilo ficou dentro de mim.
Quando começou, era o que tinha?
Sim, essa frase e aquela outra "que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?", que é uma moda do século XIX, cantada por camponeses analfabetos. Também tinha vontade de fazer um livro com a estrutura da corrida de touros.
Gosta de touradas?
Gosto da tourada à espanhola.
Mas não é propriamente um aficionado?
Não, embora ache um espectáculo único, assisti a três ou quatro na vida. Aliás, já em Conhecimento do Inferno eu falava no Curro Romero e noutros toureiros. Tinha 7 anos quando, em Barcelona, vi uma tourada pela primeira vez. E lembro-me bem do mal estar que tudo aquilo me provocou, náuseas, angústia, vómitos. Nunca tinha visto tanto sangue, nunca tinha visto matar.
A tourada também tem um certo lado teatral.
Não lhe chamaria teatral, parece-me mais um ritual. E plasticamente é um espectáculo muito bonito. João Cabral de Melo Neto tem um poema sobre o que é a tourada. Também me veio à ideia um verso de Ovídio, que (juntamente com Vergílio e Horácio) é uma das minhas três paixões. Vou tentar traduzir: "Lentos lentos corram ó cavalos da noite." Julgo que esta frase, que nunca aparece, é que é a frase-chave do livro. "Lentos lentos corram ó cavalos da noite."
Percebe-se que tudo se passa no Ribatejo, numa quinta, com cavalos, touros e azinheiras. Não lhe interessa nomear os lugares?
Para mim isso não é importante. O que estou a fazer é tentar exprimir as paixões da alma. E, no fundo, a vida humana. Eu sei lá como é o Ribatejo. Não o conheço. Assim como não conheço a Angola de agora, de que falo. Podia chamar-se assim como outra coisa qualquer, são tudo territórios interiores. O significado não está no interior do livro, mas à volta dele, como diz Conrad.
Porque é que Que Cavalos... aparece identificado como "romance", quando há muito que recusa o género?
Não tinha escrito isso no manuscrito. Mas da mesma maneira que não gosto da capa... Devo ser o autor mais cómodo porque nunca discuti uma capa, nunca revi provas. Tive a felicidade de trabalhar com a Tereza [a editora Tereza Coelho, falecida no princípio do ano] e, agora, com a Maria da Piedade Ferreira, com quem também tenho uma relação muito boa. É curioso porque foi ela, que então estava na Bertrand, a primeira pessoa a recusar publicar Memória de Elefante. Coisa que eu compreendo porque aquilo, na altura, era estranho. Acontece: André Gide recusou Proust, Gallimard recusou Céline. Pedi à Maria da Piedade para continuar a trabalhar comigo, mesmo que ela queira sair da Leya. Contra alguns receios que tinha, aliás, só posso dizer bem do grupo Leya. Tem-se portado com uma correcção inexcedível, não tenho a menor razão de queixa.
Quer dar, como disse à Folha de São Paulo, "um trabalhão à crítica"?
Não acredite em tudo o que os jornais dizem, mas, com os instrumentos que existem agora, penso que é de facto muito difícil analisar este livro. Vamos ter de esperar algum tempo. É evidente que estou dentro dele e que, portanto, a minha visão será sempre parcial. Sinto, no entanto, que este é o livro onde cheguei mais fundo dos sentimentos e das emoções. Aquilo vem de regiões tão profundas que eu nem sei quais são. Tchekov diz qualquer coisa como isto: desce, desce, desce até onde se encontram os outros e tu no meio deles.
Quando chega lá ao fundo, o que se encontra é o conflito?
Julgo que em todos nós existe uma guerra civil constante, vários partidos dentro de nós que se digladiam. Até na política: a escolha de um partido, como a escolha de um clube de futebol, nunca é racional. Não costumo ver televisão, mas na noite das eleições liguei-a e fiquei muito surpreendido quando vi que todos estavam contentes com os resultados obtidos. Todos tinham ganho. Não sei se os líderes dos partidos estão conscientes disto, mas tudo parece irreal. Talvez Calderón tenha razão quando escreve que a vida é de facto um sonho. E a única coisa real é a nossa finitude. Que consolação posso eu ter? A consolação de os livros ficarem porque, aí, tenho a mesma convicção que Ovídio: acho que os meus livros não vão morrer.
E permanecerá através deles.
É quase indigno as criaturas ficarem e desaparecer a pessoa que as criou. Veja como mal conhecemos a cara da maior parte destes autores que aqui estão. Não sabemos como era Horácio, como era Camões, como era Bernardino, como era Dante. E, no entanto, a obra deles continua viva dentro de nós. Os seus livros ajudam-nos a viver, a entender o mundo e a nós mesmos. No outro dia, estava muito cansado, tinha escrito muitas horas. Fui à estante do corredor e tirei um livro ao acaso: Dickens, Hard Times, Tempos Difíceis. Abri uma página ao acaso e encontrei as linhas mais extraordinárias que já li na vida. Um homem vai visitar a mãe, que está muito velha e doente, e pergunta-lhe: tens dores, mãezinha? E ela responde: tenho a impressão que anda uma dor aí pelo quarto, mas não sei se me pertence. Isto é extraordinário, eu senti isto quando estava doente. Está ali uma dor no quarto, mas não sabemos se é nossa.
Por ter estado, há três anos, mais perto da morte, passou a escrevê-la de forma diferente?
Não, passei foi a viver de forma diferente. Sempre vivi a morte como uma espécie de nascimento para outra coisa qualquer. E, nos livros, a morte é um símbolo da vida. Em A Ordem Natural das Coisas, a morte da tia é sentida como um nascimento porque ela morre enquanto está a dar à luz a filha. Ou seja, há nela uma eternidade. Uma coisa, aliás, que me tocou quando trabalhei com suicidas foi o facto de haver dentro deles um sentimento de eternidade. Falo da morte para a negar. Pela mesma razão por que ouço sempre o Concerto de Ano Novo, com o qual me comovo até às lágrimas. Aquilo é um triunfo sobre a morte, uma afirmação da vida, do amor e da alegria de viver.
A sua dedicação à escrita é total. Às vezes não se sente sozinho, no meio de tudo isto?
Às vezes, sinto. Claro que sinto. Há um poeta latino que dizia: "Quando estou sozinho sou todo meu." Passava tardes com o Ernesto Melo Antunes e, praticamente, proferíamos dez ou 15 frases. As pessoas com quem me entendo melhor são, em geral, pessoas que falam muito pouco. Ou então são pessoas que falam muito porque me distraio, deixo de ouvir ao fim de cinco minutos e basta dizer que sim de vez em quando. Mas, depois da doença, aprendi a jogar com as cartas para cima porque, ao pé do nosso fim físico, tudo o resto perde importância.
Tem vontade de escrever sobre o cancro?
Isso seria como falar sobre a guerra. Diante das grandes coisas, pouco há a dizer. Por isso é que os livros têm que estar cheios de silêncio.
Para quem sempre preservou a sua vida privada, como é que se sente quando vê as suas relações amorosas estampadas nos jornais?
No princípio, senti-me furioso. Mas, depois, compreendi que aquilo não era a minha vida privada. Era a vida privada de uma criatura que inventaram a partir de mim. Nunca me passou pela cabeça que pudesse ser tema para vender jornais e revistas. Mas o que mais me impressionou foi sobretudo a falta de carácter, as mentiras e os exageros. Até porque a minha vida não tem interesse nenhum, o que interessa são os meus livros. E felizmente que as pessoas que lêem os meus livros não são leitores desses pasquins.
Como escolhe os livros que integram a Biblioteca António Lobo Antunes, uma colecção com o seu nome que a Dom Quixote está a publicar?
Tento escolher livros cujos direitos estejam no domínio público. São livros de que gosto muito e que penso que podem ajudar as pessoas a gostar de literatura. Faz-me muita impressão ver as livrarias cheias de livros sem interesse algum. Claro que este fenómeno dos chamados best-sellers sempre existiu porque, de certa maneira, é conveniente que exista.
Porquê?
O facto de as pessoas estarem a ler esse tipo de livros é muito tranquilizador para o poder instituído. Porque esses livros não põem nada em causa. Os best-sellers e as telenovelas desviam as atenções das pessoas. Aconteceu o mesmo com a industrialização. Até ao século XIX, passa-se imediatamente de criança a adulto. Quando os industriais começam a chegar, inventa-se a adolescência, um período de latência entre a infância e a idade adulta, no qual os indivíduos deixam de ter intervenção na res publica. A arte é, por natureza, profundamente subversiva. E, por isso, é muito mais tranquilizador se eu der às pessoas livros nos quais elas têm sempre pé. Que não as predispõem para a revolta necessária.
De que tipo de poder fala?
Todo o poder é conservador. Todo o colégio, toda a agremiação, todo o partido, toda a igreja, todo o exército. Qualquer poder é conservador sob pena de se desagregar. Se eu entregar às pessoas esses subprodutos, elas não só não fazem determinadas perguntas como não exigem determinadas respostas. E desta maneira a ordem não será subvertida.
A ordem precisa de ser subvertida?
Se as pessoas quiserem viver melhor, precisa. Claro que sim.
Foi votar nas últimas legislativas?
Isso é uma pergunta íntima.
Pode não querer responder, mas de íntimo a pergunta não tem nada.
Não, não fui votar. Não vejo diferença entre os partidos, vejo apenas duas frentes eleitorais, o PS e o PSD, sem qualquer ideologia. O único partido que tem um corpo ideológico coerente é o PCP, mas para mim é surpreendente que continue a haver pessoas que votem naquilo. Claro que houve excepções como De Gaulle e Churchill, mas já reparou na falta de sentido de humor dos políticos? Ora aí está: se tivéssemos uma arte boa, nenhum desses partidos existiria. Porque não respondem às nossas necessidades profundas, às nossas convicções, à nossa necessidade de felicidade. Se todos lessem A Odisseia e Dom Quixote provavelmente o mundo não seria o mesmo.
Mas a arte tem esse poder?
Se lhe derem espaço e se não a tentarem estrangular, tem. Depois do 25 de Abril, o que é que se fez pela cultura do nosso país? A cultura continua a ser uma qualquer coisa de marginal, para muito poucos. Para as massas, existem os best-sellers e as telenovelas. Porque, como já disse, a cultura é profundamente subversiva. A Igreja proibia os livros porque punham em questão um sistema, defendiam teses completamente inconcebíveis como o facto de a Terra andar à volta do Sol. E é tremendo, mas ainda hoje continuamos a acreditar que é o Sol que anda à volta da Terra. Ao introduzir o princípio da incerteza na física, Heisenberg foi recebido com imensa relutância.
Não gostamos do que nos desassossega?
Somos conservadores, conservamos tudo aquilo que nos tranquiliza. E quando, de repente, somos apanhados pela verdade horrível da agonia e da morte, descobrimos que já é demasiado tarde. Conrad tem razão quando diz que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que, normalmente, chega demasiado tarde. Lembro-me de, no 25 de Abril, a maior parte das pessoas estar cheia de medo da liberdade. E de o caseiro do meu avô defender que era preciso que os franceses viessem tomar conta de nós.
Quando lhe atribuem prémios, quando o elogiam, não se sente "institucionalizado"?
Às vezes penso se todos estes prémios não serão a forma mais perigosa de me neutralizar, que é adoptarem-me. Como quando os escritores vitorianos foram neutralizados. Ou como quando fizeram de Camilo Visconde de Correia Botelho.
Adoptado quer dizer institucionalizado?
Adoptado quer dizer integrarem-me neste sistema de que falo. E nada disto tem a ver com política.
Pelo contrário, tem tudo a ver com política.
No sentido de Aristóteles, mas não no sentido dos nossos políticos de agora. Claro que, de vez em quando, aparecem grandes homens...
Obama é um deles?
Isso não sei avaliar.
Quando, no ano passado, esteve em tournée nos Estados Unidos, sentiu que a América com Obama estava diferente?
Não. E gostei muito de John McCain, que é um homem de uma grande dignidade. No fundo, são iguais aos nossos políticos, mas em melhor. Encadernados e com melhor papel.
08.10.2009
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