José Mário Silva: «Não é uma biografia de Júlio Foçaça, é um romance de António Lobo Antunes» - crítica a Diccionario Da Linguagem Das Flores
Júlio Fogaça (1907-1980) foi um dos principais dirigentes do Partido Comunista Português e é, ainda hoje, um dos menos conhecidos. As razões para esse esquecimento foram explicadas por Adelino Cunha na biografia que lhe dedicou (Júlio de Melo Fogaça, Desassossego, 2018). De origens burguesas, refutou eventuais suspeitas quanto à sua opção de classe com um comportamento exemplar. Membro do Secretariado do partido desde 1935, foi deportado duas vezes para o Tarrafal, passou pelas prisões políticas de Caxias e Peniche (num total de 19 anos), sofreu todo o tipo de torturas e nunca denunciou ninguém. Após a morte de Bento Gonçalves, em 1942, ombreou com Álvaro Cunhal pela liderança do PCP, com linhas estratégicas opostas. Em vez do "levantamento nacional" para o derrube de Salazar, proposto por Cunhal, defendia uma "transição pacífica", integrada na luta unitária dos movimentos oposicionistas. Na sequência da sua prisão em 1960, e imediatamente antes de Cunhal ser escolhido como secretário-geral, foi expulso do partido e apagado da sua história, em circunstâncias ainda hoje não totalmente esclarecidas, mas em que terá um peso importante o facto de Fogaça ser homossexual.
Ao fazer deste homem o centro do seu novo livro, António Lobo Antunes prolonga uma das linhas de força do anterior romance (A Outra Margem do Mar), que abordava um episódio histórico concreto: a chamada "revolta do algodão", conduzida em 1961 por António Mariano, rebelde apoiado pelos congoleses, na Baixa do Cassange (Norte de Angola). Todavia, ao fim de quase 40 obras de ficção, só um leitor muito ingénuo, ou desprevenido, esperaria de Lobo Antunes uma abordagem linear e devidamente enquadrada. Num caso como no outro, os acontecimentos reais existem apenas como ponto de partida para a habitual maquinaria narrativa lobo-antuniana; ou seja, como pretexto para explorar isso a que chamamos a experiência humana.
Mais do que a trajetória heroica e trágica de Júlio Fogaça, o que encontramos em Diccionario da Linguagem das Flores é o relato da sua ausência. Nos 24 capítulos, cada um funcionando como uma unidade autónoma, vão surgindo as várias figuras que coexistiram ou se cruzaram com Júlio (só nomeado uma vez): o amante que trabalhava como mecânico nas Pedralvas, «colina de pobres a norte de Lisboa»; o pai; a mãe; a irmã; a professora de música da irmã (que por ele se apaixonou, apesar de nunca lhe ter dirigido a palavra); o afinador do piano; camaradas; controleiros; agentes da PIDE; etc. O próprio Fogaça é como se não existisse. Não se dá com ninguém, não fala, desaparece dias inteiros. É uma sombra, um fantasma. É o sol em torno do qual todas as personagens do livro gravitam, mas um astro ausente, mera força gravítica. Sabemos que entrega panfletos, que fala com camponeses e operários, que há sempre um carro à sua espera «do outro lado do muro» para o levar, sabemos que paira à sua volta a aura do resistente, o homem a quem partiram o braço e tentaram vergar com a tortura do sono e da estátua, sem que nunca entregasse um camarada, sabemos das suspeitas de homossexualidade e de como isso pode contribuir para a sua queda, mas nunca o ouvimos de viva voz...
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por José Mario Silva
em Expresso
24.10.2020
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