Morten Høi Jensen: «Um grande escritor português capta a alegria e a miséria da vida familiar», sobre Não É Meia Noite Quem Quer

Em Midnight Is Not in Everyone’s Reach [Não É Meia Noite Quem Quer, título original], de António Lobo Antunes, uma mulher confronta-se com uma tragédia antiga ao longo de um fim de semana de verão.


edição em inglês Dalkey Archive
Os romances de António Lobo Antunes são invenções de uma interioridade em ebulição. Recusam-se a ser resumidos com um simples encolher de ombros. Se as nossas vidas interiores não se deixam facilmente resumir, parece dizer-nos Antunes, porque haveria um romance de o fazer? As suas frases, longas e sem pontuação tradicional, albergam frequentemente várias vozes ao mesmo tempo. E, no entanto, essa polifonia desmente a sua legibilidade essencial; nem sempre se percebe claramente o que está a acontecer, ou quem está a falar, mas o efeito é profundamente absorvente. Sim, pensa o leitor, é assim mesmo que funciona a mente: um tumulto de pensamentos, vozes, memórias meio lembradas ou totalmente inventadas, intrusões e evasões.

Lobo Antunes, frequentemente (e com razão) apontado como candidato ao Prémio Nobel, é provavelmente o maior escritor vivo português, autor de mais de 30 romances e admirado por críticos como George Steiner e Harold Bloom. Nascido em Lisboa, em 1942, Lobo Antunes formou-se em Medicina e exerceu Psiquiatria. Pouco depois de concluir o curso, foi mobilizado como médico militar na Guerra Colonial Portuguesa (1961–1974), uma tentativa longa, dispendiosa e, em última instância, fútil do ditador António de Oliveira Salazar de manter as colónias africanas sob domínio português. A experiência marcou profundamente o autor, que regressou repetidamente à guerra na sua ficção — não apenas pela intensidade do vivido, mas pelo silêncio público que se seguiu à queda do regime, em 1974. “Havia uma espécie de culpa indizível em Portugal”, afirmou. “Toda a gente queria apenas esquecer.”

A narradora de Não É Meia Noite Quem Quer, o mais recente romance de António Lobo Antunes traduzido para inglês, também anseia pelo esquecimento — embora de uma forma mais definitiva. Passado ao longo de um único fim de semana no final do verão de 2011, o romance acompanha a narradora, uma professora, até à casa na costa portuguesa onde passava os verões em criança e onde, significativamente, o irmão mais velho se suicidou no mar quarenta anos antes. “Já não tinha onze anos, tinha cinquenta e dois, ou melhor, aqui tinha onze e cinquenta e dois” (*), reflete a narradora. “Vim despedir-me desta casa, ou do meu irmão mais velho, ou de mim própria.” Também poderá ser significativo que 1971, o ano presumível da morte do irmão, tenha sido o mesmo em que Lobo Antunes foi destacado para Angola.

São estes os poucos marcos de que o leitor dispõe para navegar na narrativa tumultuosa do romance. A primeira frase abre com: “Acordei a meio da noite certa de que o mar me chamava através das portadas fechadas”, e só termina, propriamente dita, na página 32, com o fim do primeiro capítulo. (As três partes do romance, uma para cada dia do fim de semana, dividem-se em dez capítulos cada.) Mas ao contrário de solilóquios longos como os de W. G. Sebald ou Javier Marías, Lobo Antunes escreve frases povoadas de ruído e vozes, e a tradutora Elizabeth Lowe acerta ao compará-las ao jazz, “com improvisações que interrompem o fluxo narrativo e refrões que marcam a melodia”, como refere na nota de tradução.

Uma única página de Não É Meia Noite Quem Quer pode conter vozes de três ou mais personagens, situar-se em diferentes tempos e ser interrompida por uma linha de diálogo ou uma reflexão da narradora. Esta ausência de convenções gramaticais e narrativas exige, é certo, atenção constante; as primeiras páginas podem parecer difíceis de seguir, mas, tal como no jazz, a escrita gera ritmos subtis com o tempo — e o leitor acaba por entrar nesse compasso, cada vez mais absorvido.

À medida que o fim de semana na casa da praia se desenrola, percebemos que a narradora está a fazer um balanço da vida, prestes a tentar um último gesto de justiça ou compensação, revelando pouco a pouco os contornos mais precisos da sua biografia. Ficamos a saber que sofreu um aborto espontâneo e foi submetida a uma mastectomia, que o casamento está em ruínas e que há algum tempo mantém uma relação extraconjugal com uma colega mais velha. Mas sobretudo conhecemos a sua família de infância: o pai alcoólico e desempregado, a mãe distante e fria, o irmão mais velho que se suicida, outro irmão mais velho e sádico que nunca recupera da guerra em Angola, e um irmão surdo que repete incessantemente o trava-línguas: “Sheee saaills seeea sheells”. [no original em português o trava-línguas referido é "Ata titi ata a tia atou."]

Há memórias revisitadas obsessivamente, como feridas: o irmão mais velho a deixá-la sentar-se no guarda-lamas da bicicleta; o pai a desaparecer sempre na despensa para beber das suas garrafas; a mãe a queixar-se sempre a alguém: “Vês a cruz que me calhou?” Outras lembranças — “a quantidade de lixo, enterrado dentro de nós, que ressuscita […] trazendo mais ruínas consigo”, medita a narradora — surgem inesperadamente, e outras ainda nem sequer lhe pertencem: cada uma das três partes do romance termina com capítulos narrados por outra personagem.

Ao longo de quase 575 páginas, este escrutínio implacável da memória revela também algo da sua futilidade desesperada. Incapaz de mudar o passado, a narradora duvida e pondera, acusa e argumenta, recorda ofensas e acerta contas: “O que é que eu fiz?”; “porque é que as pessoas se afastam umas das outras”; “foste tu que o mataste, mãe”; “para onde foram todos”. E com que propósito? Apenas para desejar “paz, e um tecto de oceano em que as ondas se mexam sem magoar”.

A prosa de António Lobo Antunes, viscosa, metafórica e barroca nos romances iniciais, adquire aqui uma substância mais leve, mais hesitante, feita de sobressaltos, lampejos e confusões da consciência: “A morte, não tenho medo de morrer, só tenho medo de sofrer, da dor, mentira, tenho medo do Alto da Vigia, e do meu corpo, do meu corpo a cair e não de sofrer ou da dor, é a morte que me apavora, nenhum irmão mais velho à minha espera na água, eu indefesa e mesmo assim tenho de o fazer, não por ele, por mim.”

Nesta elegia por uma família — ou pela família que poderia ter sido — Lobo Antunes evoca magistralmente a força obsessiva da vida familiar, a intensidade peculiar das suas alegrias e misérias. “Tínhamos falhado a felicidade por um triz”, pensa a certa altura a narradora, “o que é que fizemos mal.” Os leitores não devem deixar-se intimidar pela desordem narrativa ou pela escassez de enredo; Não É Meia Noite Quem Quer é ficção da mais alta qualidade.


por Morten Høi Jensen
artigo em The Washington Post
01.07.2025
[traduzido do inglês por José Alexandre Ramos]

(*) Notar que as citações são tradução do artigo em inglês, portanto, citações da versão em inglês do livro. Não foram usadas as citações do original em português na tradução do artigo

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