José Alexandre Ramos: opinião sobre O Manual dos Inquisidores
O Manual dos Inquisidores, de António Lobo Antunes: Antes e depois
O décimo primeiro título da obra de António Lobo Antunes é, antes de tudo, agora que vão mais de uma vintena de livros escritos, uma ponte que liga a obra anterior à mais actual. Pode muito bem servir como ponto de partida para o leitor iniciante neste autor: prepara-o para prosseguir cronologicamente a fim de se inteirar da evolução do estilo da escrita até aos dias de hoje, ao mesmo tempo que lhe inspira curiosidade para ler a obra anterior, de mais fácil leitura mas nem por isso menos densa e rica. Para os leitores menos acostumados a um discurso analéptico onde muitas vezes se perde o fio condutor – porque a António Lobo Antunes não lhe interessa contar uma história mas expor o ser humano que somos –, onde uma única voz interpreta a voz de todas personagens, e resumindo: para o leitor que não está habituado a outro tipo de escrita diferente da do romance comum, com personagens, actos, cenários, espaços e tempos claramente definidos, iniciar-se na leitura de Lobo Antunes deverá ser gradual, começando do princípio, para que se habitue a incarnar os livros um a um para poder digerir os mais ricos e complexos sem grande dificuldade, principalmente a partir de Que Farei Quando Tudo Arde?. Essa iniciação pode ser feita com O Manual dos Inquisidores, cujo tema do antes e pós 25 de Abril, recorrente mais ou menos na maioria dos livros publicados até 2000, entusiasmará o leitor curioso para saber de nós portugueses durante todo esse período e para além dele.
Porém, desengane-se quem poderá pensar que se trata apenas de um romance de carácter político ou social, e desengane-se também quem procura aqui indícios de um romance histórico. O Manual dos Inquisidores, na continuidade dos anteriores, retrata personagens que nos são próximas, não tanto pelo que viveram na transição do regime político, mas pela sua condição humana: a vaidade, o poder, a frustração, a resignação, a fraqueza, a desilusão, a sua soberania e o desamparo, a ascensão e a degradação. Ingredientes que misturados num caldo de factores psicológicos e morais nos dá a matéria de que somos feitos, nós os portugueses: com muita facilidade nos podemos ver retratados, nos reconhecemos nas personagens que vão surgindo gradualmente, como que se apresentando umas às outras. Um jogo de espelhos, de que muito fala o autor nas suas entrevistas.
Se quiséssemos resumir o livro à história que tem por trás como argumento, diríamos que é um livro sobre um influente ministro do antigo regime, traído pela sua mulher e que após algum tempo se resigna, abusando do seu poder, tendo casos com as empregadas da sua quinta em Palmela, quinta onde recebia Salazar para orientações de como governar o país e que acaba num lar de idosos, na sua fase de decadência, depois de se ter isolado durante o período da revolução na sua quinta lutando contra a ameaça comunista, colocando todos os seus empregados na rua. Tem dois filhos: João, fruto do seu casamento, que cresce desamparado e medíocre, e Paula, nascida da aventura com a cozinheira e que é dada aos cuidados de uma viúva. Mas é tão pouco para dizer do que este livro trata, porque cada personagem, isto é, cada voz que vem falar, traz consigo outras histórias paralelas, uma vez que abordam, em constantes analepses, vivências passadas e presentes, entrelaçando-se com o que disse a personagem anterior e o que dirá a personagem que a seguir vem falar. As vozes mais presentes, no entanto, são do ministro Francisco, da sua Governanta Titina, do filho João e da filha Paula, e também da sua amante Milá. Todas estas personagens trazem consigo outras vozes que enriquecem não uma trama mas a vivência humana e o estado psicológico destas pessoas que atravessaram um momento conturbado da nossa história recente. Nota a salientar é que estas vozes, estas vivências e finalmente estas pessoas pretendem ser a voz de uma facção da sociedade desse momento histórico. Como disse o autor, o livro “é visto sempre pelas pessoas que estão todas de um lado só”, ou seja o “retrato daquilo que se chama direita visto pela própria direita” não havendo qualquer “personagem revolucionária”, mesmo incluindo as personagens que são mais pobres, os subordinados do ministro, a viúva que toma conta da filha bastarda, a mãe da amante, etc.
O humor, não sendo uma característica exclusiva deste livro uma vez que está presente em praticamente toda a obra de Lobo Antunes, faz com que O Manual dos Inquisidorestenha uma faceta alegre, algumas vezes assumindo a caricatura para desanuviar possíveis tensões na narrativa. Não há vilões e heróis: comovemo-nos com a ternura do ministro carente do amor da sua mulher, vivemos a angústia do filho na sua solidão, do seu grito mudo, da sua frustração por ser manipulado, sorrimos com a ambição medíocre da filha depois de tomar consciência de quem é o pai, condoemo-nos do amor silencioso da governanta pelo seu patrão, rimos das atitudes mesquinhas das personagens face às circunstâncias. São todas estas personagens pessoas, de osso carne sangue e nervos, capazes de ternura e atrocidade, de amor e violência, de piedade e indiferença para com os outros.
É um livro rico em fabulações, imagens e metáforas de toda a ordem que faz a delícia do leitor que só tem a ganhar com a sua leitura. Porque aprende. Definitivamente aprendemos a conhecermo-nos ao lermos António Lobo Antunes. Somos nós que lá estamos, antes e depois deste livro.
José Alexandre Ramos
25.04.2008
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