Cid Ottoni Bylaardt: «O diálogo impossível entre a Literatura, a História e o Mercado Editorial», a propósito de Diccionario Da Linguagem Das Flores

Em 12 de novembro de 2020, a [editora] Publicações D. Quixote anunciava, em tintas vermelho-sangue, o lançamento sensacional de um novo livro de Lobo Antunes:

«O que leva um homem a sacrificar tudo por um ideal? A passar 19 anos em prisões políticas? Como chegou o grande rival de Cunhal a líder do Partido? A história oculta do PCP num romance extraordinário. Entre o fascismo e a homofobia, um relato de resistência, de ideais e de esquecimento.
Diccionario da Linguagem das Flores.
Lobo Antunes como nunca o leu. Já nas livrarias».

O romance anunciado havia sido publicado alguns dias antes, em 13 de outubro, e a propaganda  certamente teria como efeito pretendido alavancar as vendas do livro. Se alguém comprou o livro e o leu atraído pelas palavras da publicidade, deve ter se decepcionado profundamente. Em primeiro lugar, nenhuma das perguntas  motivadoras é respondida no romance. Não há a menor revelação do que quer que seja de oculto na história do Partido Comunista Português. Álvaro Cunhal, o rival de Fogaça,  sequer é mencionado na narrativa. O fascismo e a homofobia aparecem de forma bastante sutil. É quase impossível identificar no enredo algo como "um relato de resistência" — um relato "de esquecimento" talvez seja o que a propaganda tenha mais se aproximado do conteúdo do romance. O anúncio da [editora] Publicações D. Quixote continua dizendo:

«O novo romance de António Lobo Antunes, Diccionario da Linguagem das Flores, tem como personagem principal Júlio Fogaça, membro proeminente do PCP nos anos trinta do século passado. Ao longo de vinte e quatro capítulos, numa escrita disruptiva a que Lobo Antunes já nos habituou, o leitor é levado a interrogar-se sobre a verdadeira identidade desse protagonista. Temas como o tempo, a  memória e a identidade, caros ao autor, estão também presentes neste romance. Todavia, a verdadeira pedra angular da narrativa é a descoberta de um livro antigo, que está na origem do título do romance, e que origina uma surpreendente oscilação gráfica entre o português atual e o português do final do  século XIX».

Talvez por causa deste anúncio de lançamento, o romance foi apresentado e ficou conhecido como a história de Júlio Fogaça. Curiosamente, o nome "Júlio" só é citado em dois momentos nas 374 páginas  do livro. Não obstante, as citações em nenhum momento apontam uma referência certeira ao  personagem histórico Júlio Fogaça. Em 24 capítulos, há depoimentos de pessoas (exceto o último, cujo  enunciador é o citado livro antigo) que de algum modo estiveram ligadas a ele, e as vagas referências  que vão sendo enunciadas pelos depoentes vão construindo a figura de um homem bonito, educado,  elegante, de modos refinados, discreto, egresso de uma família rural abastada porém decadente,  perseguido pelo salazarismo e várias vezes preso, sem jamais ter denunciado nenhum camarada.  Juntando-se todas as referências, pode-se chegar à figura histórica de Júlio Fogaça, mas sem nenhuma  evidência de que seja uma narrativa biográfica, ou que o relato contenha alguma novidade ou tomada de partido em relação ao personagem.

Merecem destaque alguns dos vinte e quatro depoimentos sobre o personagem central. O capítulo 5, "A companheira dele", contém uma declaração de amor de uma mulher ao companheiro que lhe fora  designado pelo Partido, o qual, por sua vez, não tinha nenhum interesse por ela, a não ser cumprir as determinações superiores. A "companheira" do protagonista militante, juntamente com o pai dela, dão a ele um velho livro de presente, «o pobre tesouro que te oferecemos» (ANTUNES, 2020, p. 77), chamado Diccionario Da Linguagem Das Flores, com data de 1863 (a primeira edição é de 1859, e a  primeira palavra do livro grafa-se Diccionario, como no romance homônimo). Outro capítulo notável é  o 10, "A mãe dele" (p. 143). Ela (a mulher/ mãe), distribui suas aflições e angústias entre a  quinta decadente e abandonada, o filho comunista, a lembrança do pai que abandonou a família quando ela era pequena, o piano que ainda soava mantendo a propriedade de posse da família, as reuniões do marido com os funcionários do banco, as hipotecas, os empréstimos impagáveis. A derrocada, segundo ela, era inevitável.

O capítulo 15 recebe o título de "Tarrafal" (p. 221), nome de uma conhecida prisão política salazarista  situada em Cabo Verde. A voz narrativa é a de um prisioneiro que convivera com o protagonista do  romance, e parece ter sofrido um sutil assédio do "camarada do piano". Suas lembranças são «imagens  confusas que flutuam em torno de mim» (ANTUNES, 2020, p. 221), o que confirma os débeis laços  entre a narrativa de Lobo Antunes e a História do Partido Comunista Português. Em certo momento, o narrador evoca o encanto paradisíaco de um cenário povoado de rosas, descrito no Diccionario da  Linguagem das Flores, que em seguida cede lugar, inadvertidamente, ao horror do campo de trabalhos  forçados do Tarrafal.

No capítulo 20, "A madrinha dele" (p. 307), uma voz feminina invoca as flores como contraponto à  atmosfera pesada que se abate sobre a família do protagonista. A madrinha havia sido colega de escola  da mãe dele, e fez o parto do menino. Ela evoca o ódio que o menino, depois o rapaz e depois o  homem, tinha do pai, da casa, da quinta enorme. Evoca ainda, os símbolos mais marcantes da família e  da propriedade: os sons do piano — aqui substituído pela harpa — as roseiras, as estátuas.

Chegamos  ao derradeiro capítulo do romance, o vigésimo-quarto, "Diccionario Da Linguagem Das Flores" (p.  373), com menos de duas páginas. O capítulo é uma compilação do "Prefácio" do antigo Diccionario. O texto equipara as flores às mulheres: elas foram «creadas para embellezar a vida, e não para partilhar os cuidados d’ella» (ANTUNES, 2020, p. 373).

Este capítulo fecha o romance deixando no ar um aroma suspeito de flores misturado aos odores da  guerra, das lutas, da tortura e dos amores das pessoas de alguma forma ligadas à saga do Partido  Comunista Português, entre as décadas de trinta e sessenta do século XX.

Outra afirmação curiosa do texto de apresentação do romance pelos editores é de que

«[...]
a verdadeira pedra angular da narrativa é a descoberta de um livro antigo, que está na origem do título  do romance, e que origina uma surpreendente oscilação gráfica entre o português atual e o português do final do século XIX». (anúncio da Publicações D. Quixote)

Bem, se a "pedra angular" ("verdadeira", reitere-se) é o livro mencionado, supõe-se que toda a  construção da narrativa se assente nesta pedra, nesta base, ou seja, todos os outros elementos da  narrativa seriam "assentados" de acordo com esta pedra. Isto certamente não se verifica no romance, e o resultado prometido pelos editores — de que a linguagem do livro antigo provocaria "uma  surpreendente oscilação gráfica entre o português atual e o português do final do século XIX" —  parece-nos uma justificativa pífia para a presença do Diccionario no livro, mesmo porque o próprio  romance não se mantém fiel à linguagem do Diccionario nas partes em que o cita.

Afinal, para que servem os dicionários? Para trazer um sentido, um significado, uma verdade  metalinguística às palavras. E um dicionário específico das flores, só delas? Mais do que descrever as  palavras que designam as coisas, um dicionário desse tipo procura estabelecer uma verdade sobre as  flores, atribuir-lhes um sentido, mesmo invocando a impossibilidade de os próprios poetas o fazerem.  Enfim, por que queremos, ou precisamos, saber o significado das flores? As flores têm um significado?  Se se pensar nas flores que vivem nos jardins, ou nos buquês, elas não pretendem nem têm que  significar nada, elas desejam apenas ser. A Natureza não precisa de dicionário para existir, não precisa  da atribuição de uma linguagem. Pelo menos não precisa da nossa linguagem, nem de ser traduzida. Admirá-la seria o bastante.

Enquanto os dicionários lutam para estabilizar os sentidos, a literatura caminha no sentido contrário,  provocando tensão. No romance tributário do dicionário, a firmeza dos signos está sob constante ataque da escritura, que não quer dar às palavras designativas de flores, o que pretende o texto estabilizador.

As flores aparecem, enchem o romance com sua presença, e desaparecem, deixando o vazio que se  preenche com a narrativa da aflição, sem apagar a lacuna. O dicionário das flores, assim, contrariando o nome dicionário, torna-se uma ficção, uma ficção feliz, que encobre a ficção do horror. Encobre mas  não sufoca, não disfarça, não ultrapassa. E ficam os dois ali, a quererem dizer sem propriamente dizer.  Quantos discursos inúteis serão necessários para que se diga algo?

Somos inicialmente apresentados ao Diccionario da Linguagem das Flores, o do século XIX, que é  convidado a integrar o romance homônimo, no título e na capa do livro de Lobo Antunes, a qual ostenta um vistoso desenho colorido escolhido no Diccionario: as flores da capa são as Ervilhas de Cheiro Azues, as Boas Noites e o Martyrio.

Ao reafirmar o Diccionario, ao citá-lo, o romance concorda que é preciso dar uma alma às flores, para  que tenhamos, enfim, uma "linguagem universal". Enfim, temos uma "linguagem gentil" que se forma  desde a antiguidade. Hoje, temos caracteres lidos "n’esse livro immenso", cujas folhas se espalham pela terra.

Como se disse, quem ler o livro seguindo as indicações da editora certamente vai se decepcionar. Talvez a leitura possa recair, então, em dois principais pontos: 1) como é possível comentar a presença do  Diccionario da Linguagem das Flores em meio à trajetória do militante comunista português?; 2) como a História e o personagem histórico Júlio Fogaça são tratados no romance?

Nunca é demais lembrar as palavras de Julia Kristeva: «todo texto se constrói como mosaico de  citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto» (KRISTEVA, 1974, p. 64). Não se pode pensar aqui em intertextualidade de uma maneira simplista, levando em conta semelhanças entre  textos. Lobo Antunes é um escritor experiente, que joga com linguagens. Temos, assim, uma relação complicada entre o discurso histórico, o livro antigo e uma linguagem extremamente contemporânea, para não falar das deformações que o autor opera na linguagem do livro antigo. Pode-se falar em uma pluralidade semiótica, que desconsidera semelhanças ou linearidades reguladoras.

Kristeva fala em «melancólico momento de crise», «perda da voz e do significado», «origem vazia e  deslocada», «conquista rebelde de uma nova expressão polimorfa» (KRISTEVA, 2002, p. 3). É aí que  reside a força do texto, em seus deslocamentos e instabilidades.

Reencontramos assim as perguntas motivadoras sobre as presenças das flores e do Júlio Fogaça no  romance. Permitimo-nos ainda, para fechar, convidar a uma reflexão com Jacques Derrida.

Em Demeure, Derrida faz considerações sobre o dever de verdade do testemunho confrontado com o  poder da arte, da ficção, à qual chega a atribuir o traço de falso testemunho, de alucinação fantasmática. Ele diz que se opera um milagre entre testemunho e ficção, seu «trait d’union essentiel» (DERRIDA, 1998, p. 98) [«traço de união essencial»]. Ele atribui, então, à paixão da literatura os atributos de «le miraculeaux, le phantasquique, le phantasmatique, le espectral, la vision, l’apparition, le touché de  l’intouchable, l’éxpérience de l’extraordinaire, l’histoire sans nature, l’anomalie». (DERRIDA, 1998, p. 98) [«o milagroso, o fantástico, o fantasmático, o espectral, a visão, a aparição, o toque do intocável, a  experiência do extraordinário, a história sem natureza, a anomalia»]. Desse modo, o nosso referente, o  Júlio, de personagem histórico a espectro do romance, é estruturado na narrativa pela lei da  fantasmaticidade, cuja configuração excede a oposição entre real e irreal, atual e virtual, efetivo e  fictício. Podemos considerar essa configuração exclamando perplexos: isto não aconteceu, senão na  instituição literária, na linguagem, na narrativa, na "paixão sem mais" que constitui a literatura. A leitura do romance não depende do que aconteceu ou deixou de acontecer.

Emendando os elementos das duas perguntas propostas, ousamos respondê-las invocando o grande  objeto de estudo de quem se dedica às letras: a linguagem. Flores não são flores, a história não é  história, Júlio Fogaça não é Júlio Fogaça, lemo-los todos «n’esse livro immenso, do qual as folhas  estão espalhadas por sobre a terra» (ANTUNES, 2020, p. 374). E ao final reencontramos Mallarmé em  suas considerações sobre a poesia: as flores, e sua linguagem, são as ausentes de todos os buquês, assim como o Júlio do romance é o ausente da História, de onde se infere que todo o discurso da editora não  passa de uma estratégia de venda.


Referências:
ANTUNES, António Lobo. Diccionario da Linguagem das Flores. Lisboa: Dom Quixote, 2020.
ANTUNES, António Lobo. Diccionario da Linguagem das Flores. Terceira Edição. Lisboa: Typographia Lusitana, 1869. Edição em fac-simile: https://purl.pt/13929 (acessada em 21/09/2022)
DERRIDA, Jacques. Demeure. Paris: Éditions Galilée, 1998.
KRISTEVA, Julia. “Nous deux or a (hi)story of intertextuality”. The Romanic Review, v. 93, 2002. Disponível em: <http://www.questia.com/library/journal/1G1-110221070/nous-deux-or-a-hi-story-of-intertextuality>. Acesso em: 10 set. 2022.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MALLARMÉ, Stéphane. Divagations. Eugène Fasquelle (ed.) Paris: Bibliothèque-Charpentier, 1897


por Cid Ottoni Bylaarrdt
fonte: SCRIPTA




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