Susana de Carvalho sobre Eu Hei-de Amar Uma Pedra: «o amor como resistência espiritual em António Lobo Antunes e o diálogo com Andrei Tarkovsky»

Eu hei-de amar uma pedra: o amor como resistência espiritual em António Lobo Antunes e o diálogo com Andrei Tarkovsky

A obra Eu hei-de amar uma pedra, de António Lobo Antunes, é uma das expressões mais poéticas e simbólicas da literatura portuguesa contemporânea. O título, retirado de uma moda alentejana popular, já anuncia a sua tensão fundamental: a tentativa de amar o inanimado, o desejo de dar afeto àquilo que não pode retribuir. Neste texto, Lobo Antunes transforma uma simples canção tradicional num profundo exercício de reflexão sobre o amor, a solidão e a condição humana, explorando as fronteiras entre a emoção e o silêncio, o humano e o inerte, o sensível e o indiferente.

A expressão que dá o título à obra tem origem numa moda alentejana caracterizada pela declaração do eu poético, que prefere amar uma pedra a continuar amando alguém falso ou indiferente — uma metáfora de resignação e de teimosia afectiva. Um canto tradicional distinguido pela sua melancolia, lentidão e profundidade emocional. O refrão — “Eu hei de amar uma pedra, deixar o teu coração, uma pedra é mais firme, tu és falsa e sem razão” — exprime a amargura do amor traído e a teimosia afectiva de quem decide amar o que é inerte. A “pedra”, nesse contexto, representa simultaneamente a frieza e a estabilidade, sendo o símbolo daquilo que não muda, que resiste ao tempo e à emoção.

A estrutura verbal do título — “hei-de amar” — exprime promessa e destino. Amar a pedra torna-se uma decisão, uma afirmação de vontade perante a impossibilidade. O eu poético, ao declarar o seu amor por algo inanimado, afirma a necessidade humana de continuar a sentir, mesmo no vazio. António Lobo Antunes transforma esse canto colectivo numa voz interior, despojada de ruralismo, mas carregada de universalidade. O que na moda era expressão de um amor não correspondido, torna-se, na sua prosa, uma metáfora do amor humano em sua dimensão ontológica — amar como gesto que justifica a existência, mesmo quando o objeto amado permanece silencioso. Este gesto é comparável ao pensamento existencialista de Albert Camus, para quem a vida deve ser vivida apesar do absurdo. Do mesmo modo, Lobo Antunes sugere que amar, mesmo sem esperança de retorno, é um ato de resistência espiritual — uma forma de “manter acesa a vela da alma” no meio da indiferença.

“Amar uma pedra” converte-se, portanto, na metáfora central da humanidade que resiste à petrificação emocional. É o amor como gesto puro, gratuito, sem recompensa. O texto de Lobo Antunes apresenta uma prosa poética de forte cadência musical, onde a repetição do título e das imagens cria um ritmo circular e hipnótico. A sintaxe fragmentada, a ausência de narrativa linear e a densidade imagética conferem à obra uma dimensão meditativa. Esse ritmo ecoa a musicalidade da própria moda alentejana, cuja lentidão e repetição reforçam o sentimento de persistência e de tempo suspenso. Assim, a forma e o conteúdo convergem: o texto “soa” como uma canção sobre o silêncio e a espera.

Neste sentido, o texto transcende o tema do amor romântico e entra no campo filosófico e existencial: amar uma pedra é recusar o cinismo, é persistir na ternura ainda que num mundo frio e indiferente. A pedra, portanto, representa o limite da comunicação e da empatia, mas também a pureza do amor incondicional, que não exige resposta.

Eu hei-de amar uma pedra encontra ressonância no cinema de Andrei Tarkovsky, cuja obra interroga, também, o lugar da fé, do amor e da beleza num mundo em ruínas. Em filmes como Stalker (1979) e Nostalghia (1983), Tarkovsky propõe uma estética da lentidão e da contemplação, onde o silêncio e a matéria adquirem valor espiritual. No final de Nostalghia, o protagonista, Gorchakov, tenta atravessar uma piscina vazia carregando uma vela acesa — gesto aparentemente inútil, mas dotado de sentido transcendente. Esse movimento é comparável à promessa de Lobo Antunes de amar uma pedra.

Em ambos os autores, o que importa não é o resultado do acto, mas a sua pureza e persistência. Amar o inanimado ou proteger uma chama contra o vento são manifestações da mesma crença na dignidade da alma humana. O amor e a arte surgem, assim, como formas de resistência silenciosa contra a frieza da matéria e a indiferença do tempo.

A simbologia da pedra é ambígua: é obstáculo e fundamento, frieza e eternidade. Representa tanto a imobilidade do mundo moderno, petrificado pela indiferença, quanto a força que sustenta o ser. Ao amar uma pedra, o sujeito encontra um modo de reconciliar-se com o eterno — de ver naquilo que não sente uma forma de pureza inatingível.

Esta leitura aproxima António Lobo Antunes da tradição mística, embora o autor se mantenha fora da religiosidade explícita. Trata-se de uma mística do humano, uma espiritualidade sem transcendência dogmática, onde amar é o acto mais elevado de fé.

Ao longo de toda a obra, Lobo Antunes eleva uma expressão popular do Alentejo à condição de símbolo universal da resistência espiritual. O amor, aqui, não é emoção passageira, mas força ética e existencial: um modo de afirmar a humanidade num mundo que se tornou inerte.

Ao dialogar com a estética de Andrei Tarkovsky, “Eu hei-de amar uma pedra” revela que a arte — seja literária ou cinematográfica — partilha a mesma missão: restituir sentido e beleza ao silêncio. Tal como o protagonista de Nostalghia protege a sua vela até o fim, também o sujeito de António Lobo Antunes promete amar a pedra, mesmo que nunca receba resposta. Ambos resistem ao absurdo pela fidelidade ao amor — uma fidelidade que, em última instância, é o próprio gesto de SER.



por Susana de Carvalho
email de 24.10.2025

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