Mário Beja Santos: «Leituras Inextinguíveis - O romance de estreia de António Lobo Antunes»
Uma turbilhonante viagem através de um dia e de uma noite
Foi graças a um amigo já falecido que veio eufórico dizer-me, em 1979, que tinha uma bela surpresa para mim, uma prenda de Natal que talvez viesse a marcar a minha vida: "Vais ver, é uma literatura que rompe com todos os cânones, uma prosa desabrida, toda feita de imagens surpreendentes, o gajo é um psiquiatra, rompeu a relação com a mulher que ama profundamente, deve ter sido médico na guerra, está ali um bom bocado da nossa geração, e bem redimida numa escrita inconfundível."
E foi assim que Memória de Elefante, de António Lobo Antunes, Editorial Vega, 1979, entrou na minha vida e veio para ficar. Vamos diretos ao autor. Não esconde a sua profissão, era médico psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda, assim começa este devaneio que tem momentos alucinantes e o recurso a uma prática literária que se desconhecia:
O hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:
– A quotazinha da Sociedade, senhor doutor.
Puta que pariu os psiquiatras organizados em esquadra de polícia, pensava sempre ao procurar os cem escudos na complicação da carteira, puta que pariu o Grande Oriente da Psichiatria, dos etiquetadores pomposos do sofrimento, dos chonés da única sórdida forma de maluquice que consiste em vigiar e perseguir a liberdade da loucura alheia defendidos pelo Código Penal dos tratados, puta que pariu a Arte Da Catalogação Da Angústia, puta que me pariu a mim, rematava ele ao embolsar o retângulo impresso, que colaboro, pagando, com isto, em lugar de espalhar bombas nos baldes dos pensos e nas gavetas das secretárias dos médicos para fazer explodir, num cogumelo atómico triunfante, cento e vinte cinco anos de idiotia pinamaquinesca.
Escancara-se o mundo hospitalar, encaramos, sem dó nem piedade, sem artifícios de filigrana, com os profissionais de saúde e os doentes, de supetão apercebemo-nos que aquele médico esgravata na dor da separação da mulher amada e vive nos píncaros da solidão, e é manifesto que tem um passo desacertado com a prática da psiquiatria, tece considerações implacáveis aos delegados de propaganda médica, é procurado por um colega seguramente nacionalista, que lhe grita estridente se ele aprovava a entrega do Ultramar aos pretos e o psiquiatra rende-lhe uma catilinária, onde não falta o furor, a extrema zanga:
Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da Avenida, que sabe este caramelo de cinquenta anos da guerra da África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas grávidas espancadas pela PIDE, das minas a florirem sobre as rodas das camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão e do desespero?
Vamos vê-lo depois nos serviços da Urgência, a atender um caso graúdo, pai e mãe em grande desavença com o filho adolescente, vêm apelar ao seu internamento, o médico faz-lhe frente: Vocês vão levar o garoto para casa, pianinho e na calma, e voltam cá segunda-feira para uma conversa grande, sossegada, e isto é assunto de falas cumpridas e atempadas, sem pressa. E aproveitem o domingo para olhar para dentro um do outro e do pintassilgo da gaiola.
Vai depois almoçar com um amigo, dá-nos uma descrição bem vincada de um daqueles pronto-a-comer da época, desabafa, segue para o dentista, percorre a cidade, as memórias dançam-lhe febrilmente na cabeça, vai bisbilhotar a saída das filhas do colégio, entra depois num bar, mais uma vez relembra a mulher tão profundamente amada:
Nunca topei corpo para mim como o teu, disse-se o médico vertendo a cerveja na caneca, tão à medida das minhas humanas e desumanas medidas, as autênticas e as inventadas que nem por o serem o são menos, nunca topei uma tão grande e boa capacidade de encontro com outra pessoa, de absoluta coincidência, de ser entendido sem falar e de entender o silêncio e as emoções e os pensamentos alheios, que me foi sempre milagre o termo-nos conhecido na praia onde te conheci, magra, morena, frágil, o teu antiquíssimo perfil sério pousado nos joelhos dobrados, o cigarro que fumavas, a tua perpétua atenção de bicho, os muitos anéis de prata dos teus dedos, minha única mulher, minha lâmpada para o escuro, retrato dos meus olhos, mar de setembro, meu amor.
Segue a viagem numa sessão de análise, frequenta a terapia de grupo, se já teve um discurso de arrasar com o que se passa no Hospital Miguel Bombarda desvela agora o grotesco da sessão:
O grupo estava completo cinco mulheres, três homens (com ele) e o grupanalista amerzendado no lugar habitual, de olhos fechados, a brincar com o relógio de pulso pousado no braço da poltrona: meu cabrão, pensou o psiquiatra, uma sessão destas prego-te um pontapé nas partes para verificar se estás vivo e, como se o tivesse entendido, o psicanalista levantou para ele a pálpebra sonâmbula e neutra que se desviou de imediato para um quadro na parede da sala que representava aproximadamente uma paisagem de vila.
Cada um fala de si, o médico cogita que vem ali não sabe há quantos anos e não conhece aquela gente não entende o que eles querem da vida ou o que dela esperam, o leitor fica emudecido com o desarrazoado de toda aquela conversa, o médico parte para a noite de Lisboa, segue pela marginal, entra no casino do Estoril, dá consigo num engate com uma senhora bem crescidinha, Lobo Antunes põe nesta mulher uma tirada em monólogo do bom fingimento à portuguesa, o médico leva-a para a sua casa, esta companheira já bem metida nos anos, de nome Dóri, ali está a dormir de barriga para cima de braços abertos crucificados no lençol, e a dentadura postiça, descolada do céu da boca, respira num ritmo húmido de ventosa. São cinco da manhã, e naquele preciso instante o médico não sente a falta da mulher amada. Faz promessas para o dia de amanhã: será o adulto sério e responsável que a família aguarda, pontual e grave na chegada à enfermaria, limpará a linguagem de obscenidades pontiagudas. E diz, sabe-se lá com que grau de convicção, mas falando para a mulher amada, ele precisa de qualquer coisa que o ajude a existir.
Este romance foi um pontapé de saída, um contributo genuíno para a viragem literária que irá explodir na década de 1980, altura em que se anunciarão outros escritores de alto gabarito. A ritmo frenético, Lobo Antunes irá falar da sua experiência como médico em Angola, não esquecendo a profissão rodada em hospital psiquiátrico. Será um ciclo de romances de onde ele partirá para um conjunto de retratos de costumes do Portugal pós 25 de abril.
Memória de Elefante, mesmo reconhecido pelo autor, é uma obra com profundos desequilíbrios, mas tornou-se o marco miliário de uma nova atitude na literatura portuguesa contemporânea. Lê-se e relê-se com muito gosto é a originalidade na lavra da escrita.
por Mário Beja Santos
29.09.2025
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