Norberto do Vale Cardoso: «Sermão de António (Lobo Antunes) aos peixes: Sapiência e Memória no Pós-colonial »
Sermão de António (Lobo Antunes) aos peixes:
Sapiência e Memória no Pós-colonial”
Norberto do Vale Cardoso [1]
António Lobo Antunes no aquário da proto-memória
Dissolvo-me, parado, na banheira cheia, como imagino que os peixes morrem, evaporados numa espumazinha viscosa à tona, como decerto os peixes morrem no rio, de órbitas apodrecidas a boiarem. (CJ, 159)
A Memória desempenha, como sabemos, importante papel na obra de António Lobo Antunes, desde logo a partir do elemento titular do seu primeiro romance, Memória de Elefante, em que se destaca, antes de mais, a “proto-memória”. Por esta devemos entender o conjunto de hábitos e automatismos resultantes do processo de socialização, aspecto presente de forma constante na obra antuniana, sobretudo pelo papel preponderante atribuído à infância, período crucial para a sua formação. Esta foi levada a cabo num Portugal em que a memória era criada com intenções maquiavélicas (cf. Lourenço 1975, 80), pois o regime construía uma “memória colectiva” que confinava o indivíduo a um mero receptáculo. Essa memória matricial é referida por Lobo Antunes como tendo sido uma “bolha” (CALA, 50) protectora que o alheava então de todo o tipo de intervenções e preocupações. Era, porém, uma memória fechada, que, como um bloco, compartimentava os tempos, isto é, que não dava azo à sua interligação. Ora, Lobo Antunes (2006, 9) afirma que foi com a guerra que deixou “de ter uma concepção ptolomaica do mundo”.
De facto, a mobilização de Lobo Antunes para a Guerra Colonial representa um futuro infausto, que reavalia a sua “memória autobiográfica”. Devemos aqui, pois, referir que o si autobiográfico, que se sustenta da memória autobiográfica, é alterado ao longo da vida através da aquisição de novas experiências. O si autobiográfico é aquele que congrega a experiência passada e a perspectiva futura que o sujeito consciente faz de si próprio, o que só sucede com a descristalização da bolha em que vivia. Portanto, a guerra rasura o passado e enviesa a perspectivação do futuro, o que tem implicações na memória autobiográfica e no si autobiográfico (Damásio 2004, 206).
Assim, podemos dizer que o auto-conhecimento de António (Lobo Antunes) se alcança pelo rompimento social para com a sua Família e a sua Pátria. Este “conhecimento” traduz-se na procura activa de recordações, a que chamaremos “memória”, e que já não está limitada à fronteira - passiva - da proto-memória. Sublinhemos que, no caso de Lobo Antunes, a memória será a aquisição da experiência colonial no seu lado mais agudo, a guerra, o que conduzirá o sujeito a uma reavaliação da sua socialização, ou, mutatis mutandis, da sua proto-memória. Portanto, a guerra será um “conhecimento”, ainda que à base da violência, da loucura, da morte e da abjecção. Dado que a memória implica o rompimento da proto-memória, isto é, das instituições que o inseriam socialmente e lhe davam uma identidade, o sujeito terá dificuldade em criar uma metamemória, uma auto-representação. Essa aquisição violenta é a “memória traumática”, que se diferencia da normal aquisição da memória, pois há uma “falha em integrar uma experiência perturbadora numa memória autobiográfica” (Goleman 2006, 165). A memória traumática é, assim, uma “desordem” ou anomalia que leva o sujeito à “fragmentação” e à “dissociação”, o que o impede de se autoconstituir identitariamente como sujeito (Quintais 1999, 16), relativizando quer a proto-memória quer a metamemória. Assim, a “memória autobiográfica” (arquivo organizado de dispositivos que nos mostra quem fomos, somos e seremos, Damásio 2004, 204-205), por ser uma coisa contínua, altera-se com a experiência de guerra e, por consequência, adultera o si autobiográfico, isto é, a consciência que o eu tem de si mesmo.
A guerra é, então, assimétrica, apresentando-se, em simultâneo, como: 1º) Um factor negativo, uma vez que a experiência adquirida leva à reavaliação da memória autobiográfica e à deturpação do eu (o si autobiográfico), simbolizado através da sua metamorfose em “peixe”. Ao matar e torturar, o sujeito deixa, grosso modo, de reconhecer em si aquilo que até então o fazia ter consciência de si, as características básicas de si como organismo; 2º) Por outro lado, a guerra dar-lhe-á a possibilidade de experienciar/ conhecer o mundo com a sapiência que, antes, desconhecia, o que, sublinhe-se, o faz cognoscěre a proto-memória como um aquário/ “bolha”. Este segundo ponto fornece novas características ao si autobiográfico e à re-construção autobiográfica do sujeito no romance. Clarifiquemos, assim, que, nos três primeiros romances de António Lobo Antunes, há uma interconfluência de memórias, dado que, neles, o sujeito, após a “dolorosa aprendizagem da agonia” (CJ, 38), reavalia a sua proto-memória para reformular a sua identidade. É verdade que nesses romances estamos perante “uma memória de família” (Catroga 2001, 27), mas essa confronta-se com a “memória de guerra”. Essas memórias coexistem e implicam-se mutuamente. Ao falarmos de Memória de Elefante não estamos a referir-nos a uma só memória, nem a uma memória “elefantizada”, mas, antes, às “impurezas da memória” (Eakin 1992, 86), ou seja, à hibridez e à infixidez da cultura que caminha rumo ao pós-colonial (Said 1993, 15).
Esta Memória é, precisamente, uma “textura contínua”, uma construção que se sobrepõe ao “calendário petrificado” (ME, 49) ocidental. Ora, como romance que é, esta Memória constitui-se de palavras, posteriores ao conceito e ao objecto (Damásio 2004, 219), o que implica que estejamos perante uma memória como imaginação, isto é, como ficção literária que procura integrar na memória autobiográfica aspectos até então tidos como estranhos à identidade do sujeito. A “arte da memória” levá-lo-á, não à vida que perdeu, mas à vida que ainda tem de viver (Eakin 1992, 292): a vida de um peixe.
Para ler o artigo completo, consultar Memória & Sabedoria (coord. José Pedro Serra, Helena Carvalhão Buescu, Ariadne Nunes, Rui Carlos Fonseca), Centro de Estudos Clássicos e Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, V. N. Famalicão, Húmus, pp. 291-304.
[1] (Doutorado pela Universidade do Minho: Instituto de Letras e Ciências Humanas).
enviado por e-mail
03.01.2011
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