Carla Vigário: «Um regressar ao passado», sobre Não É Meia Noite Quem Quer
Ler este livro foi um martírio. Uma narrativa pesada, densa,
sem propriamente um fio condutor, uma data, um local, um nome, nada a que me
agarrar na sufocante escrita. Para mim António Lobo Antunes é alta patente, um
homem vivido, sui generis, complexo, culto, acima da banalidade, jamais achei
possível, e continuo com a mesma convicção, de conseguir alcançá-lo. Este livro
é um exemplo de que por vezes vale a pena resistir.
Esta narrativa acompanha os pensamentos de uma mulher de 50 anos, que regressa à casa de praia onde passou as férias da sua infância. Nós estamos dentro da sua cabeça e vamos assistindo às suas memórias desconexas, às suas emoções não categorizadas, que vão saltando a uma velocidade feroz, de acontecimento em acontecimento durante a sua vida, indiferentes à época, como se antes nos tivesse sido dado contexto, exatamente da mesmíssima forma como são os pensamentos, incontroláveis e supersónicos. Por este motivo considerei difícil seguir a narrativa, de encontrar o leme onde me agarrar. Nunca sabia bem onde estava, se na infância, se na vida adulta, se antes ou depois de dados factos, isto na mesma frase.
Consegui extrair, neste oceano de memórias, especificamente duas que me emocionaram e levaram à escrita deste post: uma cena particular que me deixou profundamente triste e à qual regresso com alguma frequência, relacionada com um momento entre mãe e filha pequena, relação essa atrita, mas que naquele simples e aleatório instante foi de pura felicidade, em que as duas dançavam livremente. Deixou-me um travo agridoce, o experenciar de um momento mágico que nos sustenta naquilo que poderia ser uma vida melhor, não fossemos seres faltantes ao sabor do acaso.
Também me arrepiou a forma como o pai chamava menina à sua filha, como a pedir socorro e desculpa ao mesmo tempo, de um poço sem fundo de onde nunca pára de cair. Não sei como Lobo Antunes conseguiu, usando apenas um alfabeto e pontuação, mostrar tantas emoções, ser tão profundo a níveis viscerais, é como se tivéssemos um coração nas mãos e não um manuscrito. Foi uma leitura abismal, ainda assim, considero existir um certo desrespeito do escritor pelo leitor, na maneira como nos atira para aquele fluxo desordenado de uma mente em constante ação, do género "estou a borrifar-me se percebes ou não, vou escrever como me dá na real gana", e isso é libertador, a coragem para fugir das normas, independentemente das consequências, como o eventual afastamento de leitores.
As personagens somos nós, feitos de falácias, de falta de tacto, de incapacidade para lidar com o que vai surgindo, mas ainda assim ter de o fazer. A forma como aquelas pessoas ficaram agarradas a mim, aquilo que viveram, deixou-me desconfortável. Não pelos eventos serem trágicos (embora também os haja), mas sim porque é como se nos mirássemos ao espelho, sem subterfúgios, despidos, tal como somos, e isso é aterrador. Trata-se de outros corpos, de outro passado, outros desenrolares, outras histórias, ainda assim, não deixámos de ser nós. A vida humana em bruto, genuína, sem aquela moral fastidiosa que tentam dar à literatura, sem dicotomias, só a vida a acontecer, com injustiças, dramas, insuficiências, mas também alguma beleza. Talvez Clarice Lispector me tenha feito sentir coisas análogas, não obstante serem estilos absolutamente diferentes.
Achei original e magnífica a capacidade de Lobo Antunes para simular os pensamentos dentro de uma cabeça humana, exatamente da forma como eles acontecem, sem qualquer lógica e voláteis. Decerto fiquei a anos-luz de perceber o conteúdo, ou de chegar ao cerne do mesmo, ainda assim, fico feliz por não ter desistido, mesmo que nostalgia seja a palavra que melhor caracteriza esta leitura cinzenta e cabisbaixa. Finalmente conheci um [cisquinho] do escritor reservado e encontrei nele uma forma única de ler. Nem todos os livros ficam tatuados em nós, mas este imprimiu em mim a sua marca.
PS 1: Também há uns capítulos reservado à guerra colonial, pela voz de um irmão.
PS 2: Não percebi o título, o que só prova o quanto o livro me escapou.
Comentários
Enviar um comentário