Jason Manuel Carreiro disserta sobre Segundo Livro de Crónicas
A morte do autor e o nascimento do leitor: um estudo da crônica “Receita para me lerem”, de António Lobo Antunes (*)
Resumo
Neste estudo, problematiza-se a relação entre a voz narrativa e a voz autoral na crônica “Receita para me lerem”, de António Lobo Antunes, no intuito de discutir a função estética de um texto literário compreendido como pura exterioridade e as implicações de tal perspectiva na relação leitor – obra.
Palavras-chave: Autor; Narrador; Leitor; Estética; António Lobo Antunes.
I. Receita para me lerem?
O titulo “Receita para me lerem” (ANTUNES, 2002, p.109-11) pressupõe um texto preenchido por domínios codificáveis no intuito de atingir uma fórmula pronta que possa ser utilizada como ferramenta de leitura – afinal, uma receita é indicação minuciosa sobre uma certa quantidade de ingredientes e a maneira de prepará-los para atingir um resultado final.
Obviamente, a crônica em questão não fornece estes domínios codificáveis com facilidade – os textos de Lobo Antunes são construídos de modo a impossibilitar a apreensão prévia de significantes e significados. O texto do autor português possui uma direta relação com uma exterioridade (assunto a que retornarei de modo mais detalhado adiante) de modo que não há em “Receita para me lerem” o tal conjunto de ingredientes que possam ser misturados com facilidade e posteriormente digeridos:
(...) as palavras são apenas signos de sentimentos íntimos, e as personagens, situações e intriga os pretextos de superfície que utilizo para conduzir ao fundo avesso da alma. A verdadeira aventura que proponho é aquela que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana. Quem não entender isto aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares e menos importantes dos livros: o país, a relação homem-mulher, o problema da identidade e da procura dela, África e a brutalidade da exploração colonial, etc. temas se calhar muito importantes do ponto de vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada têm a ver com o meu trabalho. (ANTUNES, 2002, p.109-10)
O narrador da crônica (talvez possamos considerá-lo o escritor António Lobo Antunes, presente de modo implícito) afirma na citação acima que os elementos que dão a forma de seus romances são apenas “pretextos de superfície” para conduzir a um “fundo avesso da alma”. Ora, se há um fundo avesso a que o leitor possa ser conduzido, os “pretextos de superfície”, que deveriam ser os ingredientes desta “Receita para me lerem” não funcionam, afinal, segundo o narrador, esses elementos, que são os “mais parcelares e menos importantes dos livros”, nada têm a ver com seus livros. Se nada têm a ver, não pode haver então uma “Receita para me lerem”. Pode haver, talvez, uma “viagem ao negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana”, que leitor e narrador devem percorrer juntos:
Disse em tempos que o livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual dos dois somos. Tento que cada um seja ambos e regressemos desses espelhos como quem regresse da caverna do que era. É a única salvação que conheço e, ainda que conhecesse outras, a única que me interessa.(ANTUNES, 2002, p.111, destaques meus)
Essa jornada em companhia do narrador faz com que o leitor se apodere do texto, se sinta parte dele, pura interioridade no exterior que é o texto: “Peço-lhes que dêem por ela, compreendam que vos pertence e, além de compreender que vos pertence, é o que pode, no melhor dos casos, dar nexo à nossa vida” (ANTUNES, 2002, p.111, destaques meus). Anton Ehrenzweig (1977) diz que nossa mente observadora de superfície, por ter à disposição apenas as estruturas formais (Gestalt) articuladas, é incapaz de atingir as estruturas móveis e fluidas dissipadas nas camadas profundas da mente. Porém, as funções estéticas formais (som, cores, linguagem, etc.) podem permitir que a mente de superfície compreenda esse “negrume do inconsciente, raiz da natureza humana”,caverna do que éramos – mesmo que ele permaneça (e permanece) inatingível. Sua função diante dessa inatingibilidade, então, é dar nexo à vida – a arte como apaziguamento, consolo no angustiante percurso do homem em busca de si mesmo. No melhor dos casos.
II. O texto como exterioridade
Consideremos o narrador da crônica em questão uma “representação literária” do desejo do autor empírico – António Lobo Antunes – de falar acerca de seus romances, de sua escrita, enfim. Vimos no tópico anterior que esta escrita a que o narrador se refere é construída com elementos de superfície (pre-textos) no intuito de conduzir o leitor (numa viagem conjunta com o narrador) rumo a um negrume inatingível (inconsciente). Mas se esse negrume é inatingível e permanentemente disforme, como é possível percorrer um caminho em conjunto (narrador e leitor) se não há um objetivo a ser atingido, um porto seguro a ser alcançado?
Partindo da perspectiva postulada por Tatiana Levy (2003) de que, conforme o pensamento de Maurice Blanchot, a arte se realiza na irrealização (ou seja, faz-se necessária uma negação do real para construir uma irrealidade fictícia), parece-me que o narrador da crônica compartilha da perspectiva de que não há algo a ser atingido: o negrume permanecerá negrume, mas há um caminho percorrido (no caso, o texto) que poderá (e deverá) ser interpretado através das vozes e chaves que o constituem. “A pessoa tem de renunciar à sua própria chave aquela que todos temos para abrir a vida, a nossa e a alheia e utilizar a chave que o texto lhe oferece”. (ANTUNES, 2002, p.109)
Operando durante o exercício da leitura com as chaves interpretativas espalhadas e por vezes, escondidas ao longo do texto, o leitor se fará parte do fora, ou no mínimo terá acesso à exterioridade que é o texto:
Fora é o próprio espaço – mas um espaço sem lugar – da literatura. A experiência literária constrói o Fora ela é o próprio Fora. E isso precisa ficar claro desde já, pois o Fora não é o espaço onde a literatura se constrói, mas a própria literatura.Em outras palavras, literatura não é algo que se dê num espaço exterior ao mundo. Ela é o Fora, esse não-lugar sem intimidade, sem um interior oculto, onde o artista é aquele que perdeu o mundo e que também se perdeu, uma vez que já não pode mais dizer Eu. (LEVY, 2003, p.29)
Note-se que a postulação “sem um interior oculto” na citação confere total autonomia e, porque não, liberdade ao texto, e remete diretamente ao “negrume do inconsciente” de que trata o narrador, uma escuridão interior oculta, que permanecerá oculta por se ausentar do texto devido ao seu caráter hermético e inatingível.
Para além da discussão acerca do gênero literário, a crônica, essa perspectiva considerará a manifestação literária como uma exterioridade pura. Mas se há nessa exterioridade um negrume que deixa de estar, (ele se ausenta na exterioridade do texto) se há um lugar que se percorre e se presume atingir, mas não se atinge jamais, no que consiste então o valor do ato de ler? Vejamos.
O narrador afirmará no início da crônica que se decepciona quando alguém lhe diz que leuo seu livro. Ele nos informa que seus livros não são para ser lidos conforme o sentido usual que se dá à leitura: “(...) a única forma parece-me de abordar os romances que escrevo é apanha-los do mesmo modo que se apanha uma doença”. (ANTUNES, 2002, p.109) Apanhar essa exterioridade como doença remete à perspectiva Nietzsche / deleuziana de que todo fenômeno se estabelece como um sintoma. Vânia Azeredo (2002), ao explicar a busca nietzschiana pela origem do valor dos valores (e Nietzsche remete à cultura Ocidental de modo geral) nos diz que a possibilidade de interpretar e avaliar os sintomas (fenômenos) somente será possível a partir do estabelecimento desse sintoma (para ilustrar a referência, considero aqui o texto como doença que desencadeará um sintoma no leitor) como um jogo de forças, de potência a ser “apanhado” como doença (como afirma o narrador da crônica). É o apanhamento da doença do texto que possibilitará o desencadeamento dos sintomas (fenômenos), de modo que este desencadeamento é o fator que possibilitará a escuta da voz do corpo, inebriado das forças do texto, possibilitando então a viagem rumo ao negrume inatingível e ausente do texto, porém, origem e fim da exterioridade enquanto processo criativo. “Abandonem as vossas roupas de criaturas civilizadas, cheias de restrições, e permitam-se escutar a voz do corpo”. (ANTUNES, 2002, p.111) Tais restrições a que o narrador se refere na crônica podem ser interpretados como a exigência de hierarquização, a ordenação, a apoliniedade exigida pela tradição Ocidental - são restrições que negam o obscuro, a maldade, a desordem, que querem calar o corpo, enfim.
III. Conclusão: a morte do autor e o nascimento do leitor
Atingindo a exterioridade do texto, apanhando esse “fora” como doença, dando voz ao corpo e seus sintomas oriundos da “doença literária”, o narrador afirma não ter nenhuma pretensão de fazer com que o leitor se consuma no exercício que remete ao ermo profundo do ato da leitura, enquanto perpassa vozes e dialoga com a cultura. Recomenda apenas que se faça o caminho como num sonho:
Caminhem pelas minhas páginas como num sonho porque é nesse sonho, nas suas claridades e nas suas sombras, que se irão achando os significados do romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos instintos de claridade e às sombras da vossa pré-história. E, uma vez acabada a viagem e fechado o livro convalesça. (ANTUNES, 2002, p.110)
Caminhando pela dimensão onírica e convalescendo da doença apanhada, o leitor terá voz entre as vozes do texto, mas vale ressaltar que o texto é para ser lido e apanhado, e o leitor não será consumido neste exercício, mas ao mesmo tempo, fará parte dele:
Exijo que o leitor tenha uma voz entre as vozes do romance ou poema, ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar a fim de poder ter assento no meio dos demônios e dos anjos da terra. Outra abordagem do que escrevo é limita-se a ser uma leitura, não uma iniciação ao ermo onde o visitante terá a sua carne consumida na solidão e na alegria. Isto não se tornará complicado se tomarem a obra como a tal doença que acima referi: verão que regressam de vocês mesmos carregados de despojos. (ANTUNES, 2002, p.110)
Esquivando-me da pretensão de encerrar a questão proposta por Manuel Gusmão (1998) no ensaio intitulado “Anonimato ou alterização?”, parece-me pertinente considerar que a perspectiva proposta por Barthes, de que “(...) a morte do autor paga-se com o nascimento do leitor” (BARTHES, 2004, p.64) indica realmente, como propõe o crítico português, um processo de alterização, pois o nome do autor realmente acaba por “se assinar” (conforme podemos notar na crônica estudada) dentro e fora do texto. Afinal, em meio à miríade de vozes que clamam no percorrer do texto, é a criação do autor e a leitura dessa manifestação artística que constituem o processo que verdadeiramente importa: “Reparem como as figuras que povoam o que digo não são descritas e quase não possuem relevo: é que se trata de vocês mesmos”. (ANTUNES, 2002, p.111)
Conforme Barthes (2004), podemos concluir que um texto é feito de escrituras múltiplas, diversas chaves culturais que se parodiam, se contestam, dialogam. E o local de encontro dessa multiplicidade não está no autor, conforme o narrador da crônica “Receita para me lerem” postula. Este local está no leitor, que é o alguém a quem se destina a escritura, é esse alguém que deve abandonar a faculdade de julgar em proveito da luminosidade inerente ao texto que passará a lhe pertencer para, na melhor das hipóteses, dar nexo à sua vida de leitor e auxiliar no apaziguamento da dor de sua existência.
Abstract
This paper studies the relation between the narrative and authorship voices in António Lobo Antunes’s chronicle “Receita para me lerem”, with the purpose of discussing the aesthetic function of a literary text considered as pure exteriority, as well as the implications of that perspective in the relation between reader and literature.
Key words: Author; Narrator; Reader; Aesthetics; António Lobo Antunes.
Referências
ANTUNES, António Lobo. Receita para me lerem. In: Segundo livro de crónicas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002. p.109-11.
AZEREDO, Vânia Dutra de. Bom e mau, bom e ruim. In: Nietzsche e a dissolução da moral.São Paulo: Discurso Editorial / Editora UNIJUÍ, 2000. p.47-90.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64.
EHRENZWEIG, Anton. Psicanálise da percepção artística: uma introdução à teoria da percepção inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. (Col. Ditos e escritos III) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p.264-98.
GUSMÃO, Manuel. Anonimato ou alterização? Revista Semear, Rio de Janeiro, nº.4, Abr/1998. Disponível em http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/revista/4sem_18.html Acesso em 06 jun. 2003.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Pró-Reitoria de Graduação. Sistema de Bibliotecas. Padrão PUC Minas de normalização: normas da ABNT para apresentação de trabalhos científicos, teses, dissertações e monografias. Belo Horizonte, 2004. Disponível em http://www.pucminas.br/biblioteca/normalização_monografias.pdf
(*) Trabalho final do curso “O saber da escrita na ficção portuguesa contemporânea”, ministrado pela Profª. Drª. Lélia Maria Parreira Duarte, no 2º semestre de 2004, no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas.
por Jason Manuel Carreiro
Escritor, graduado em Filosofia, mestre em Literaturas de Língua Portuguesa na PUC Minas.
originalmente publicado em Cadernos CESPUC de Pesquisa. Belo Horizonte : PUC Minas, Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros, n.14 (jun. 2006), p. 88-95
e-mail de 05.06.2008
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