Diário de Notícias: «O jogo da tradução de Lobo Antunes que se transformou num vício»
Artigo publicado no DN
em 9 de Março 2025
Chegou às livrarias holandesas a tradução de Harrie Lemmens de O Tamanho do Mundo, o último romance de António Lobo Antunes.
Após 14 romances publicados na sua editora holandesa, o tradutor de sempre para esta língua, Harrie Lemmens, encontrou um novo editor para a última obra de António Lobo Antunes, O Tamanho do Mundo, a Van Maaskant Haun. O romance é descrito como contendo “todos os principais temas de Lobo Antunes: a infância, a aldeia e a cidade, a memória, a solidão, as carências e a distância intransponível”, e definido como uma “história muito visual e cheia de humor”, fechando com a afirmação de que “com este livro, Lobo Antunes concluiu com dignidade a sua gigantesca obra”.
Lançado há poucos dias, Harrie Lemmens espera pela reação dos leitores e antecipa que a chegada de cada nova obra do escritor português é sempre “apreciada pela crítica e pelos seus leitores habituais”. Considera que, como todos os “escritores do seu nível, o público não é o de um bestseller, mas as opiniões são sempre muito positivas”. Dá como exemplo a reação a um anterior romance, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura: “Foi de espanto, mesmo que ao início tivesse de explicar como se o deve ler porque os leitores achavam difícil". O conselho era: «Ler em voz alta dentro da cabeça e ouvir as vozes que falam nesses livros dessa forma. É assim a arte dele, sem dúvida magistral, de um escritor que atingiu um nível fantástico no seu trabalho. O leitor só necessita de se deixar levar e dessa maneira conhecer um dos escritores contemporâneos mais importantes e inovadores.”
O próprio tradutor teve essa experiência ao descobrir a obra do escritor português quando veio viver para Lisboa em 1985. O primeiro romance com que teve contacto foi Fado Alexandrino: “Fiquei intrigado com o romance e tentei lê-lo. Como ainda não compreendia a língua portuguesa, ao tentar lê-lo fui aprendendo o português e este conhecimento deve-se na quase totalidade à leitura desse romance”. Também se interessou de imediato por Os Cus de Judas, que completou a sua “entrada no mundo do escritor”. Seis anos depois de chegar a Lisboa, Harrie Lemmens deu início à colaboração com Lobo Antunes no que respeita à tradução para holandês dos seus livros.
Um dos livros que mais marcaram o tradutor foi Os Cus de Judas devido à dificuldade em entrar no texto: “Precisava de descobrir a maneira de penetrar naquela turbulência, num vendaval e numa catarata de imagens e de metáforas. Não era fácil confrontar-me dentro de uma única frase com três ou quatro metáforas”. Resume o desafio assim: “A tradução foi uma espécie de jogo que se tornou num vício”. Uma dificuldade que já não encontrou no último livro que traduziu, O Tamanho do Mundo: “Já estou muito habituado a Lobo Antunes e ao estilo dos últimos livros, que tem vindo a firmar nos últimos vinte anos e que se tornou na forma definitiva da sua escrita. Acho que este livro é uma bela despedida, em que a guerra não aparece mas estão lá todos os temas fundamentais da sua obra, os da memória. Está tudo muito claro, bem como partes autobiográficas”. Dá um exemplo: “Quando fala sobre o mês de setembro de 1942 e diz que foi um ano em que nada aconteceu, mas é o mês do seu nascimento! É uma espécie de resumo sobre o passado, insistindo nos seus temas fundamentais. Contudo, cada livro é sempre um mundo novo”.
O processo de tradução não é mais complicado em António Lobo Antunes do que nos outros autores que tem traduzido para a língua holandesa, por exemplo, José Saramago e José Eduardo Agualusa, entre outros. A razão, explica Harrie Lemmens, é simples: “Não é mais difícil, é diferente. Cada autor cria dificuldades próprias devido ao estilo, no entanto, após ter traduzido tantos livros de Lobo Antunes já sinto de antemão aonde o texto me vai levar. Claro que cada livro é um outro livro e uma outra relação, o que me obriga a reconhecer a originalidade do texto e encontrar uma equivalência para o holandês. A experiência facilita o processo, mas não se pode comparar a dificuldade em traduzir Os Cus de Judas com O Tamanho do Mundo; reconheço a voz do autor, mas o estilo e o formato são outros. Apesar disso, quem lê um novo livro dele reconhece sempre o tom, apesar de ser difícil associar o último romance aos primeiros para quem o começa a ler agora." Se tiver de fazer uma comparação com os romances de Lobo Antunes com alguns pintores, Lemmens não tem dificuldade em as encontrar: “De início, o seu registo era o de Hieronymus Bosch, com o mundo quase surrealista daquelas imagens do inferno; lentamente, foi seguindo em direção a um Francis Bacon. Este é agora o mundo de Lobo Antunes, aquele em que aparece em retratos distorcidos”.
Harrie Lemmens não tinha por hábito levantar muitas dúvidas a cada tradução que fazia dos romances de Lobo Antunes: “Não costumo fazer muitas perguntas; do que gosto é conhecer os escritores que traduzo. Ver a cara, conhecer a pessoa, ouvir a voz e conversar. Essa é a parte importante para mim e foi que aconteceu com ele. Conheço-o desde 1986, muitos anos antes de o começar a traduzir. Isso ajudou-me muito. Somos amigos, sei que às vezes tem uma relação difícil com as pessoas, mas tem um outro lado, o de ser muito caloroso. Por exemplo, nas apresentações públicas comporta-se muitas vezes no início como um adolescente, sem vontade de falar; depois avança e seduz a plateia. Lembro-me de uma vez em Bruxelas ter feito um monólogo de 45 minutos muito forte, no qual disse «Nunca saímos da guerra». A frase que vivia na cabeça dos soldados que lutaram em África ou em qualquer outra guerra. Ou como nas crónicas, em que conseguia em duas páginas contar a vida inteira de alguém. Nunca me esqueço de uma, a melhor para mim, a que descrevia como a morte se aproxima lentamente da pessoa, «como um cachorro atirado para um abismo», uma frase do romance de Malcolm Lowry, Debaixo do Vulcão.”
Quanto às dúvidas nas traduções, Harrie Lemmens considera que o escritor não deve ajudar no processo: “Cabe ao tradutor resolver os problemas com que se confronta, principalmente no caso do holandês, que tem dificuldades muito específicas. Não me lembro de lhe ter feito muitas perguntas, até porque a relação entre escritor e tradutor tem várias modalidades: há os que adoram receber perguntas do tradutor, outros que detestam: os que desconfiam se o tradutor não levanta questões e outros quando são muitas as dúvidas.”
Quanto à próxima tradução da obra de António Lobo Antunes ainda está tudo em suspenso, como Lemmens explica: “Gostaria que fosse o Memória de Elefante, também As Naus, de que gosto muito. São duas possibilidades, mesmo que exijam um certo conhecimento por parte do leitor holandês que este não possui porque têm muitos personagens históricos portugueses. Há outros que merecem ser traduzidos também: A Morte de Carlos Gardel, que é fantástico, o Tratado das Paixões da Alma e o Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo, outro de que gosto muito. Todos eles contêm imagens muito fortes que só Lobo Antunes consegue.”
fonte: Diário de Notícias
artigo de João Céu e Silva
09.03.2025
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