Maria de Lourdes Soares: Até ao fim do mundo
D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da guerra, o mais recente livro de António Lobo Antunes (Lisboa, 1942), reúne cartas enviadas pelo autor à sua mulher, entre 1971 e 1973, quando ele combateu no Leste de Angola, na fase final da guerra colonial portuguesa. Assinam o prefácio as organizadoras do volume, Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, filhas do casal. O projeto do livro, extremamente cuidadoso, além dos aerogramas, inclui fotografias e algumas notas, que “fazem algumas contextualizações da época e explicam parte das referências feitas nas cartas”, assim com um glossário, “que trata da linguagem relativa à África, à guerra e a alguma gíria usada nas cartas” (ANTUNES, 2005: 12).
A leitura deste livro provoca ao mesmo tempo comoção e reflexão. Comove e faz refletir já a partir do contraste entre a emanação de felicidade da fotografia da capa – um jovem casal de noivos - e os presságios de desgraça, evidenciados no subtítulo. A comoção desta foto amplia-se na foto em página dupla, referente ao aerograma de 17.5.71 (ANTUNES, 2005: 164-165), ante a beleza e desprevenida alegria das faces dos nubentes, vivendo a ilusão de um futuro que logo se quebrará. Punge pela maravilhada inocência do que está no começo, pela promessa de felicidade, pura potencialidade de ser – o casamento, a profissão, a literatura, os sonhos... -, e que irremediavelmente será atingida pelas “malhas que o império tece”, como diria Fernando Pessoa (PESSOA, 1977: 146). Toca-nos porque essa é também a nossa história, de alguma forma contemporâneos e de alguma maneira atingidos pelo monstro da guerra e pelo espectro da morte.
Os quase trezentos aerogramas do médico alferes à amada Maria José (dois dos quais dedicados à filha recém-nascida, batizada, por decisão de Lobo Antunes, com o nome da esposa) constituem “uma espécie de diário do amor ausente [aerograma de 12.11.71]” (ANTUNES, 2005: 294), um amor suspenso, em pleno vigor da juventude, adiado por contingências históricas, por uma guerra absurda e inútil como soem ser todas as guerras. Ele parte deixando para trás um casamento recém-iniciado, a esposa grávida, impedido de acompanhar a gestação, o nascimento e os primeiros meses de vida da filha. “Porque não nos deixam ser felizes? Porque nos tiram assim alguns dos melhores anos da nossa vida? [aerograma de 15.6.71]” (ANTUNES, 2005: 198).
O material epistolográfico constitui um longo e obsessivo discurso da ausência. Nas palavras de Roland Barthes, “devo infinitamente ao ausente o discurso da sua ausência; situação com efeito extraordinária; o outro está ausente como referente, presente como alocutário” (BARTHES, 1986: 29). Escrita compulsiva, praticamente diária, a tentar enunciar o amor por toda a parte, ocupando todo o espaço disponível no papel, inclusive as margens, e a suplicar angustiadamente pela pronta resposta. Ainda com Roland Barthes, esta é a dialética particular da carta de amor: “como desejo, a carta de amor espera sua resposta; ela impõe implicitamente ao outro de responder, sem o que a imagem dele se altera, se torna outra” (BARTHES, 1986: 33).
O autor dessas cartas de amor em tempo de guerra do Ultramar revela-se, portanto, um remetente apaixonado e, como tal, hiperbólico no envio de beijos e na enumeração das qualidades da amada, objeto de singulares epítetos e comparações, de que serve de exemplo o início desta longa carta-poema: “Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa (...) [aerograma de 17. 4.7] ” (ANTUNES, 2005: 131).
Quanto mais proclama a desmedida e quase insuportável dor da ausência, mais grita a dor da guerra, dor nem sempre descrita, quase abafada, controlada, por várias razões (para não afligir a esposa grávida, por não ser permitido tocar nesse assunto em aerogramas...). A saudade e o desespero crescentes tornam-se materialmente visíveis na grafia alterada do aerograma de 5.4.72, que apresenta letras imensas e algumas expressões em maiúsculas: “Tudo visto e pesado, prós e contras, VEM, VEM JÁ. Estou farto de viver sem ti. Espero apenas que me digas o dia, e que seja o mais próximo possível. Espero-te com todo amor do mundo. António” (ANTUNES, 2005: 396).
O livro põe-nos diante das fronteiras do literário: (Auto)biografia? Romance epistolar?Memórias do Ultramar? Contribui para o seu caráter híbrido o material nele incluído: algumas fotografias referidas nas cartas (registros do “viver aqui neste papel descripto” do remetente, em flagrantes de campanha, e também da destinatária, mantendo-se sempre esplendorosamente bela durante a gravidez e após o parto) e reproduções da cartilha de alfabetização do MPLA [aerograma de 1.3. 71] (ANTUNES, 2005: 70-71), que agregam à dimensão estética outras dimensões, notadamente as de cunho histórico e sócio-cultural.
O título do livro remete à literatura, mais precisamente a um trecho de uma carta de um dos poetas ligados ao grupo de Fernando Pessoa, Ângelo de Lima (Porto, 1872 - Lisboa, 1921), que viveu muitos anos internado para tratamento psiquiátrico em Hospitais do Porto e de Lisboa. Ângelo de Lima sempre foi muito apreciado por Lobo Antunes, segundo informam as organizadoras do livro, e o seu caso clínico por ele estudado, de que resultou o premiado trabalho: “Loucura e criação artística: Ângelo de Lima, poeta de Orpheu”. O titulo deste volume de cartas anteriormente havia sido escolhido por Lobo Antunes e recusado pela editora para dar nome ao que viria a ser o seu primeiro romance: Memória de elefante (1979): “o título original de Memória de Elefante era a frase final da autobiografia de Ângelo de Lima, deixo de viver aqui, neste papel onde escrevo, mas o editor disse que era muito comercial, que era muito grande” (ANTUNES, 1982). Nessa primeira escolha, portanto, já se desenhavam e entrelaçavam as duas linhas que marcariam a trajetória do autor: a sua paixão pela literatura e o seu imenso interesse pela psiquiatria.
Literatura, aliás, é um dos mais fortes temas que atravessam as missivas de António Lobo Antunes, tendo a destinatária como interlocutora privilegiada e leitora primeira de excertos de seus escritos, que incluíam também algumas tentativas poéticas. Assim, tomamos conhecimento de suas leituras, dos autores amados e detestados e, sobretudo, da sua postura sempre exigente face à literatura, inclusive diante dos próprios escritos (a ponto de pedir à mulher para deitar ao lixo alguns textos que deixara em Portugal ou de ele mesmo destruir inúmeras páginas escritas em Angola). E surpreendemo-nos a acompanhar o nascimento de um escritor, um Lobo Antunes ainda desconhecido, às voltas com a escrita do seu primeiro título, oscilando entre a euforia de quem conseguiu escrever páginas perfeitas e a convicção de que tudo precisa ser revisto ou destruído.
Há uma expressão obsessivamente reiterada em D’este viver aqui neste papel descripto,afirmando o amor “até ao fim do mundo”, figura análoga a “eu-te-amo”, que se refere ao “repetido proferimento do grito de amor”, na acepção de Roland Barthes: “eu-te-amo não é uma frase: não transmite um sentido, mas se prende a uma situação-limite: ‘aquela em que o sujeito está suspenso numa ligação especular com o outro’. É uma holofrase” (BARTHES, 1986: 97-98). Esta expressão nos remete a um dos elementos presentes no mais apaixonante dos mitos portugueses: o dos amores de D. Pedro e Inês de Castro, episódio amoroso cantado por Camões e por muitos outros poetas, ficcionistas e pintores ao longo dos séculos. Segundo conhecidas interpretações da epígrafe dos túmulos de Pedro e Inês («A:E AFIN DO MUNDO»), a inscrição pode significar “Até ao fim do mundo”, e consigna o amor eterno jurado pelos célebres amantes. Por esta razão, um dos cognomes de D. Pedro é “O-Até-ao-Fim-do-Mundo-Apaixonado” (Note-se, aliás, que os seus demais cognomes – Pedro-o-cru e Pedro-o-justiceiro – de certo modo também estão relacionados ao seu “desvario” pela linda Inês).
Parte dessa expressão – “fim do mundo” - aparece também na correspondência de Lobo Antunes enviada à amada, mas bem menos vezes e com outro sentido, não ligado às eternas juras de amor, mas ao sentido corrente em Portugal de lugar inóspito, distante da terra natal, desprovido de tudo: “Isto é o fim do mundo: pântanos e areia. A pior zona de guerra de Angola: 126 baixas no batalhão que rendemos, embora apenas com dois mortos, mas com amputações várias. Minas por todo o lado” [aerograma de 27.1.71] (ANTUNES, 2005: 29). Em suma, um lugar situado nos “cus de Judas”, expressão que dá título ao segundo romance de Lobo Antunes (1979), palco onde se desenrola o “gigantesco, inacreditável absurdo da guerra”, conforme o narrador deste livro, um ex-miliciano recém-retornado ao seu país (ANTUNES, 1984: 44). Segundo depoimento do autor, “Curiosamente a Memória de Elefante é que era o título do livro Os Cus de Judas.Os Cus de Judas foram arranjados depois, na altura da obra sair. A expressão quer dizer traidores, para negros” (ANTUNES, 1982).
E é este sentido de traição, de dupla traição, de irreparável traição do destino (um dos possíveis nomes dos senhores da guerra), que a expressão parece sublinhar. Roubou aos amantes os melhores anos. Manchou-lhes a promessa de felicidade. Secou no escritor estreante o pendor para a poesia. Abortou sonhos. Mutilou corpos e almas. Deixou em todos envolvidos, de aquém e de além mar, marcas indeléveis, feridas difíceis de cicatrizar. No campo devastado dos amores e da guerra, entre ruínas e destroços, algo, porém, insiste em fulgir ainda, uma declaração de amor, entoada em forma de pungente canção do exílio, no aerograma de 13.4.71: “Estar aqui traz-me constantemente à memória, não sei porquê, paisagens como aquela estrada entre Santarém e Alpiarça, com os plátanos fechando-se por cima das cabeças, o jardim público de Montemor, a Golegã deserta a qualquer hora e de portas fechadas, o Tejo assoreado reduzido a imensos bancos de areia. Eu gosto desesperadamente do meu país e da minha amada língua portuguesa, a mais bela de todas. Quero ser enterrado aí, onde quer que morra, sob o ‘vento que muxe coma unha vaca’ ”[1] (ANTUNES, 2005: 126). Consola um pouco pensar que, apesar de todos os pesares, este persistente afeto do soldado-escritor por sua língua e pelo seu “pequeno e triste país de viúvas a descer para o mar [aerograma de 13.4.71]” (ANTUNES, 2005: 126) nada nem ninguém conseguiu minar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, António Lobo. Memória de elefante. Lisboa: Vega, 1979.
––––––. Os cus de judas. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984.
––––––. Entrevista com António Lobo Antunes. Jornal de letras, artes e idéias, Ano I, nº 23, Janeiro de 1982.
––––––. D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da guerra. Organização e prefácio Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2005.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 6ª ed. Tradução de Hortência dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
PESSOA, Fernando. Obra poética. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977.
[1] António Lobo Antunes atribui o verso citado à poeta galega Rosalia de Castro [Santiago de Compostela, 1837 – Padrón, 1885]. Na realidade, porém, de acordo com a nota das organizadoras, “a citação é de Garcia Lorca, conforme vem correctamente identificada mais à frente” (ANTUNES, 2005: 126).
por Maria de Lourdes Soares
em CiFEFiL (Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos - Brasil)
12.02.2006
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