Visão - entrevista de Sara Belo Luís - 27 Novembro 2003
Esteve dois anos na guerra colonial cujo absurdo haveria de retrata em Os Cus de Judas. Ao regressar de Angola, António Lobo Antunes não era o mesmo homem. Em Lisboa tinha deixado a mulher (com quem havia casado pouco antes de partir) e uma filha que ainda não conhecia. Trazia também a certeza de que pretendia desistir da cirurgia e antes preferir uma especialidade médica que lhe permitisse escrever. Acabou por escolher psiquiatria, à qual foi buscar as técnicas de análise que, depois, utilizou para dissecar o País.
Agora, aos 61 anos, regressa ao território que sempre marcou a sua ficção. Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo, o volume de 554 páginas que as Publicações Dom Quixote acabam de lançar, era para falar das seitas religiosas mas acabou por tornar-se um romance sobre o tráfico (o de diamantes e o de influências), sobre o percurso de três homens (Seabra, Miguéis e Morais) que partem de Portugal para a terá devastada pelas guerras (a colonial e a civil) e pela cupidez humana. Em entrevista à Visão, o escritor desfia – como nunca o havia feito – as suas memórias de África. As do inferno e as do paraíso.
Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo é o livro do ajuste de contas com Angola?
Não tenho contas a acertar com ninguém. Estou em paz com os outros. O que sinto é que não vou ter tempo para fazer os livros que gostaria de escrever. Como Mozart que, nas margens do Requiem, escrevia «Não vou ter tempo»...
E uma espécie de catarse?
Também não sinto que tenha de me libertar de alguma coisa. Angola nunca saiu de dentro de mim. Ocupa um lugar muito profundo, mais até do que eu imagino ou penso. Vejo Angola como um paraíso perdido. Lembro-me da terra, dos cheiros, das cores, dos horizontes, de toda aquela sensualidade. Como, aliás, também acontece em relação à Beira Alta, onde agora vou cada vez mais. É uma espécie de regresso à infância onde fui tão feliz. Quando passo Carregal do Sal sinto logo o cheiro da Beira Alta. Dá-me uma certa paz interior.
Como é possível ter uma imagem de paraíso de algo que foi um inferno?
Mas tudo aquilo que envolvia a guerra era de uma beleza imensa. É curioso porque, afinal, foi um tempo doloroso.
De que maneira é que um romance sobre seitas religiosas se transforma num romance que tem o tráfico de diamantes como pano de fundo?
O outro romance começava em Angola e era para acabar com a casa destruída que aparece logo no princípio deste. Pensei que o livro pedia muito mais do que aquilo. Porque é que havia de estar a tocar uma gaita-de-beiços se podia estar a tocar um piano sem fim?
Esta é a imagem que tem da Angola pós-independência?
Enquanto escrevia o livro, interroguei-me várias vezes se não iria arranjar problemas.
Em que sentido?
Com a riqueza de Angola, não acredito que tenham desaparecido todos esses europeus e africanos que ainda hoje tentam explorar aquela terra. No livro também está presente a minha indignação em relação a todo esse neocolonialismo. Como é que se fazem determinadas coisas em nome da democracia e da amizade? Eu não queria entrar muito por aqui… Já deve ter reparado que sou sempre muito cauteloso. Por vezes tenho imensa vontade de escrever para a Visão sobre esse processo da Casa Pia, mas não me atrevo a fazê-lo porque as pessoas não teriam possibilidade de me responder.
A pergunta é para o psiquiatra…
... esse, coitado, já não existe.
Ainda deve saber umas coisas…
... poucas.
Arrisco, mesmo assim, a pergunta para ele: a questão da guerra está resolvida em si?
O psiquiatra? A questão da guerra? Não pode chamar-se àquilo uma guerra. Morria-se sem se ver ninguém. As minas, não se via quem as punha e, nas emboscadas, era tudo muito rápido. Uma guerra pressupõe um adversário e ali, ele era completamente invisível.
Não havia combates?
No sentido clássico do termo, não. Para fazerem sentido, as emboscadas não podiam demorar muito. Uns minutos e desapareciam. Depois, havia as populações, que me fascinavam.
Esse foi, de algum modo, o lado bom da guerra?
Sim, esse contacto foi decisivo para mim. Aprendi muito com aqueles povos, através da sua relação com a vida e com a morte. Apercebi-me também que o tempo africano – que é elástico, indefinido – podia servir-me para me mover melhor no espaço do romance.
Nunca teve oportunidade de regressar a Angola?
Oportunidade há sempre. Acho é que, se voltasse, não saía de lá. Gostava de ter u passaporte angolano, teria muito orgulho nisso. Não quero dizer que me sinta menos português, gosto cada vez mais de ser daqui, sinto-me muito bem no meu país.
Mas porque é que gostava de ter passaporte angolano?
Afectivamente, estou muito ligado àquela terra e àquelas pessoas.
Isso não é um contra-senso? No fundo, lutou contra a independência angolana…
Bom, eu fazia parte de um exército…
Que dependia de um governo que era contra a independência das colónias.
É verdade. Isto não pretende ser uma justificação, mas, naquela época, a gente tinha a sensação de que a ditadura era eterna. Ou se ia à guerra (como o Partido Comunista, que mandava os seus militantes ir à guerra) ou, então, ia fazer-se a revolução para os cafés de Paris. E, a certa altura, reparei que a maior parte das pessoas que emigrava fazia-o quando sabia que ia. Porque tinham medo. Aquilo metia medo. No entanto, as minhas razões não tinham nada a ver com estas. Não fui nem por valentia nem por ideais políticos. Ernesto Melo Antunes, o meu capitão, dizia que a revolução se fazia por dentro. A mim, contudo, a revolução não me dizia grande coisa… Sempre tive uma vida protegida, passei ao lado de todos os movimentos contra a ditadura; por cobardia, provavelmente.
Era um privilegiado.
Claro que sim. Nessa altura, de um modo geral, os rapazes que iam para as faculdades eram privilegiados. Mas não foi só por isso que a política – e até o próprio movimento estudantil – me passou ao lado. Eu nem às aulas ia, passei a faculdade a escrever e a jogar xadrez. Vivia completamente centrado sobre mim mesmo. Talvez esteja grato a Angola porque foi lá que aprendi a existência dos outros. Até então o meu mundo era ptolemaico. Na guerra, senti pela primeira vez uma camaradagem real, que ainda hoje se mantém.
Ainda se vêem?
Sim, de vez em quando. Nesse momento percebi que eu não era o centro do mundo.
Mantinha um diário?
Não, nunca fiz diários. Mas é curioso que, durante todo o tempo que estive em África, li e escrevi muito. À noite, enquanto escrevia os meus romances, tinha a sensação de estar em Lisboa porque havia um soldado que imitava os pregões dos ardinas.
Lembra-se do dia em que foi mobilizado?
Eu já sabia que ia, só não sabia era quando. Fiz a segunda parte da recruta no Hospital da Estrela e, depois, fui colocado no de Tomar. Estive lá uns meses e, um dia, o director chamou-me e disse-me que eu tinha que me apresentar em Santa Margarida. Só soube que ia para Angola já no barco.
Foi lá que conheceu Ernesto Melo Antunes?
Só vou encontrar o batalhão com que fui em Santa Margarida uns meses antes de embarcar, a 6 de Janeiro de 1971.
E para onde foi?
Fui para as Terras do Fim do Mundo, na fronteira com a Zâmbia, no saliente do Cazombo. Chagámos lá e, pendurada no arame farpado, estava uma tabuleta que dizia «Lisboa, 10 mil quilómetros. Moscovo, 13 mil». O leste angolano não correspondia nada à ideia que fazemos de África. É arenoso, com pouca vegetação e, de noite, fazia muito frio.
Não havia o que habitualmente se chama mato?
Havia, mas parecia sempre igual. Outra das coisas que me espantava era a capacidade que os nossos guias tinham em orientar-se. Havia um que lhe bastava pôr a orelha contra o chão para pressentir uma coluna ainda a quilómetros de distância. Outro, via mosquitos na outra banda e, aos domingos, punha uns óculos graduadíssimos. E nós, miúdos de 20 anos, não entendendo o significado simbólico do acto, fazíamos troça. Não percebíamos que aquela maneira de ser correspondia a uma cultura milenar. Vínhamos com toda uma carga de coisas europeias...
O médico recém-licenciado também descobriu outras «ciências»?
Sob o aspecto médico eram culturas muito mais avançadas que as nossas. Não havia cáries, por exemplo. E lavavam os dentes com um pau… Doutro ponto de vista, a organização social era perfeita, não havia conflitos sociais e as decisões eram tomadas em assembleias muito complicadas. Uma vez, numa aldeia, estiveram uma tarde inteira para deliberar se me davam um galo. Eram muito sábios e, sentindo o absurdo daquela situação fugiam para norte. Nós queimávamos as aldeias com desfolhantes e com tudo isso de que é proibido falar. Eu vi napalm. O marechal Costa Gomes, que era meu comandante-chefe, dizia que não existia napalm. Nós tínhamos napalm e bombardeávamos com napalm. Esta é a verdade. E quem disser o contrário está a mentir.
No terreno dizia-se que o regime estava a definhar?
Não, não se tinha a noção porque não tínhamos notícias nenhumas. O nosso batalhão, composto por três companhias de combate, cobria um território com a mesma extensão de Portugal Continental do Mondego ao Algarve. Naquela altura, o MPLA estava a entrar pela Zâmbia com o objectivo de cercar o planalto central. Era, portanto, uma zona tremenda. E era suposto nós servirmos de tampão. Mas como é que três companhias e combate – ou seja, 450 homens – podem patrulhar uma zona tão grande? Era impossível.
Discutia-se política?
Não, não se discutia política. Nem era possível discutir. Nunca assisti a cenas como as de Manoel de Oliveira no qual os militares vão nos Unimogs a discutir a legitimidade da guerra. A partir do momento em que morreu o primeiro rapaz, até o Melo Antunes (que era um homem muito politizado, que discordava da guerra) deixou de falar nisso. Nesse momento disse «Vamos vingar o Ferreira». O primeiro morto desencadeia uma raiva enorme. Ninguém queria ir para o mato, ninguém queria matar ninguém. Não aquele país, olhávamos para o céu, não conhecíamos as estrelas. Nada daquilo nos fazia lembrar Portugal. Absolutamente nada. Estávamos ali, não havia nada à volta. Só havia a casa do chefe do posto em ruínas onde eu dormia. Portanto, que vontade tinha eu de combater? O quê? Quem?
Estavam apenas preocupados em chegar ao dia seguinte?
Eu queria voltar vivo. Tínhamos sido treinados para a guerra, mas o objectivo era acumular o maior número de pontos possíveis para irmos para um sítio com menos guerra. Um prisioneiro tantos pontos, uma arma apreendida tantos pontos e, ao fim de não sei quantos pontos, mudávamos de lugar. Nunca ouvi – entre oficiais ou soldados – uma única palavra contra o a favor da guerra. A gente queria era sair dali. O mais depressa possível. Não queria falar da crueldade e da violência porque, no meio das atrocidades, também havia uma grande generosidade. Os nossos soldados ganhavam uma miséria e estavam sempre na aflição de saber como é que estavam as suas famílias em Portugal. As notícias que chegavam eram poucas, o correio só vinha uma vez por semana...
Que atrocidades não conseguiu esquecer?
Coisas horríveis. Havia uma delegação da PIDE junto à sede do batalhão e eu assisti a dois ou três interrogatórios. Nunca vi o exército fazer tais coisas. Lembro-me de um soba me dizer «O Sr. PIDE manda mais que o Senhor Governador». A PIDE era, de facto, o terror dos civis. Noutro dia, fizeram-se uns prisioneiros e, como era preciso comunicar à polícia, veio um PIDE de helicóptero. Quando chegou, a primeira coisa que fez foi dar um pontapé na barriga de uma mulher grávida. O Melo Antunes puxou da pistola e apontou-a ao PIDE. Nem imagina os problemas que ele teve por causa disso… Estávamos ali, mas de vez em quando vinham uns do «ar condicionado» para dizer como é que devíamos fazer a guerra. Recebiam o mesmo subsídio e apareciam de camuflado novinho em folha. E nós de camuflado todo desbotado...
Tudo isso é político…
Eram ordens militares. E não vinham embrulhadas em qualquer consideração do género «Estamos a defender Portugal». Não me recordo de um comandante, um general, um coronel ou um brigadeiro me falar da pátria. Não me lembro de alguma vez ter ouvido um discurso patriótico que advogasse a civilização contra o comunismo ateu.
A morte torna-se mesmo uma rotina na guerra?
Fazia sempre sofrer muito. Uma vez levei para o meu quarto um rapaz que tinha morrido numa emboscada. Não quis que o tirassem de lá. Estava só a dormir. A morte de um camarada era uma coisa horrível. E mesmo os feridos, que nunca mais voltávamos a ver. Quando havia amputações, eu fazia o penso ao coto, vinha um helicóptero e levava-os.
Como é que vê, hoje, as diferenças entre a guerra que conheceu e estas guerras cirúrgicas?
Não conheço estas, só conheci aquela. Mas a guerra é sempre um momento absurdo porque ninguém ganha. Isto foi o que, de mais claro, trouxe da guerra. Na guerra não há vencedores. Todos – militares, famílias, populações – são vencidos. E os militares são os que menos culpa têm porque se limitam a fazer aquilo que o poder político pretende. Sob este aspecto, o exército português sempre foi muito disciplinado. O Melo Antunes, por exemplo, impunha uma disciplina completamente feroz que eu não compreendia. Ele contrapunha que aquela era a maneira de termos menos baixas. Obrigava-nos, entre outras coisas, a pôr gravata para jantar, na areia...
A disciplina passava por aí?
Também, o que não o impedia depois de jogar vólei com os soldados. Estes, de resto, eram muito bem treinados. Quando uma coluna foi atacada, o alferes teve medo e escondeu-se debaixo de um cepo. O pelotão ficou uma presa fácil porque todos estavam à espera que aquilo funcionasse.
O medo era encarado como um sinal de fragilidade?
Borrar-se de medo? Cagar-se de medo? Tudo isto é real, não são figuras de retórica. Ele tinha as calças do camuflado encharcadas de merda. Casos destes, no entanto, não havia muitos. Todos tínhamos medo, mas os nossos soldados eram de facto extraordinários. Não eram como os americanos que estavam lá no Vietname e, de dois em dois meses, tiravam uma semana de férias. Em Angola nunca vi ninguém negar-se a ir para a mata. Quando o rapaz que tinha sido sorteado para conduzir o rebenta-minas – a viatura, como então dizíamos que ia à frente – vinha despedir-se de mim, fazia-o sem quaisquer dramatismos. Ao princípio ainda marcávamos os dias no calendário, mas a partir de certa altura a vida já não tinha grande valor. Uma das cruzes de guerra que tivemos foi o apontador de metralhadora, já ferido no pescoço, ter continuado a disparar para salvar os que estavam cá em baixo. Havia um espírito de corpo muito intenso. Lá, éramos todos a mesma coisa. Estou a conseguir falar disto sem falar do horror...
Ainda sonha com a guerra?
Às vezes tenho um pesadelo tremendo. Sonho que me estão a chamar para voltar para África. Tento explicar que já fui, argumentam que tenho que ir. E o sonho acaba aqui. Nunca sonhei com tiros ou com morteiradas. No meio daquilo tudo havia muito humor. Havia um homem, o Bichezas, que cuidava do morteiro que estava ao pé da messe. Tínhamos mais medo dele do que do MPLA porque o Bichezas disparava com o morteiro na vertical. Aquilo subia…e toda a gente fugia. Apesar de tudo, penso que guardávamos uma parte sã que nos permitia continuar a funcionar. Os que não conseguiam são aqueles que, agora, aparecem nas consultas. Ao mesmo tempo, havia coisas extraordinárias. Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata e, assim, não havia ataques.
Parava a guerra?
Parava a guerra. Até o MPLA era do Benfica. Era uma sensação ainda mais estranha porque não faz sentido estarmos zangados com pessoas que são do mesmo clube que nós. O Benfica foi, de facto, o melhor protector da guerra. E nada disto acontecia com os jogos do Porto ou do Sporting, coisa que aborrecia o capitão e alguns alferes mais bem nascidos. Eu até percebo que se dispare contra um sócio do Porto, mas agora contra um do Benfica?
Não vou pôr isso na entrevista…
Pode pôr. Pode pôr. Faz algum sentido dar um tiro num sócio do Benfica?
Visão
27.11.2003
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