Quem lê é a classe média
Diário de Notícias - entrevista de Maria Augusta Silva
18 Novembro 2003
Quem lê é a classe média
Vinha a apostar comigo mesma: desta vez vou encontrá-lo sem as calças de ganga...
Ando com calças de ganga há tantos anos. Já não me vejo vestido de outra maneira. Acho que nem tenho nenhum casaco, nem gravata. Ando sempre assim, umas calças, umas camisolas.
Que prazeres lhe dá a vida?
Com a idade, os prazeres vão-se afilando. O da leitura, no entanto, continua intacto.
Novo romance: Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo tem como pano de fundo uma África em guerra civil. Gostaria de ter escrito este livro na Muxima?
Não quis voltar a Angola. Às vezes sinto-me dividido, apetece-me voltar, nunca vi um país tão bonito, tão sensível como Angola, a permanente exaltação dos sentidos.
África, uma vertigem?
De África só conheço a guerra (colonial), a mata, camponeses, aquartelamentos. A minha África não é a das cidades.
Não tendo voltado a Angola, como pôde abordar com tanto realismo ambientes da guerra civil? Dá a sensação de que alguém tirou "radiografias" e deu-lhas para as interpretar...
Não falo da guerra. O que me interessava mais era o comportamento de pessoas colocadas em situações extremas. Parti para o livro a querer escrever sobre seitas religiosas mas depois tomou essa inflexão inesperada Não estava à espera do tráfico de diamantes.
Como pode ser tão pobre um país tão rico?
Precisamente porque é muito rico e há muita cupidez. Não são os angolanos, ou serão alguns angolanos, mas o povo de Angola não é assim. Não se encontra fora das cidades ambições materiais. Quis-me parecer durante este tempo todo que são muito hedonistas, procuram um bem-estar com eles mesmos e com os outros.
Um povo mais próximo da espiritualidade e da natureza?
E os europeus não sabem da espiritualidade dos africanos. Queremos impor a África os padrões europeus. Por exemplo, a medicina deles, dizem que são feitiços, mas vi-os a curarem hepatites em dois dias.
Enquanto médico, como se sentia perante situações dessas?
Tentei perceber o que punham e nunca me quiseram explicar. E os partos eram feitos pelas mulheres velhas. Eu só resolvia o que elas não eram capazes.
O velho em África é uma figura respeitada...
Ao contrário daqui. Nenhum soba, nenhum chefe tomava uma decisão sem ouvir o conselho dos velhos. Havia uma tolerância e um respeito pela velhice que sempre me surpreendeu e não encontramos cá, tal como havia pela doença. Seguiam uma higiene maior que a nossa, mais perfeita até naquilo que comiam. E a gente não se dava conta e queríamos à força europeizá-los sem nenhum respeito por uma cultura milenária. As recolhas de poesia oral que faziam é extraordinária.
Estará a ser salvo esse património milenar?
Não sei até que ponto as elites africanas não estão europeizadas no pior sentido do termo. A tirania europeia não se faz agora através da Europa, faz-se através do filho espúrio da Europa que são os EUA. Quer-me parecer que, pelo menos a actual Administração, tem uma ideia de valores culturais, civilizacionais, sociais e afectivos que me parece errada, e vêem-se as consequências.
Nomeadamente quanto à questão do Iraque?
Sim, e já antes disso. Este imperialismo e este colonialismo continuam a existir, por vezes exercido por africanos. Mete muito dinheiro em jogo.
Como lida com os diferentes tempos de um romance?
O tempo é muito curioso. À medida que se envelhece o tempo é mais rápido. Ainda agora foi Natal e já vai ser natal outra vez. Quando se é novo pensa-se que o tempo vai resolver os problemas e depois a partir dos 40 percebe-se que o tempo é que é o problema. Sou muito consciente de que tenho muito pouco tempo, de que posso fazer mais dois ou três livros, e depois acabou. preciso, no mínimo, de dois anos para escrever um livro.
O tempo nunca lhe resolveu nenhum problema?
O problema é o de tempo para escrever mais livros. Se tiver de morrer cedo, ao menos que pudesse acabar o livro [indica novo livro que está a rever] para isto não ficar inacabado e venham a publicá-lo sem estar pronto. As editoras já de si não são muito boas, o respeito pelos autores não será talvez a coisa mais importante, temos de lutar pela dignificação do nosso trabalho.
Não receia que o romance agora publicado possa causar algum desagrado nas sociedades africana e portuguesa, inclusive no meio militar?
Tenho um grande respeito pelos militares. Foi de um militar, o meu avô, que até hoje recebi o maior amor e carinho da parte de um homem. Seria incapaz de tratar depreciativamente quem sempre me tratou bem desde que nasci. Os três anos e tal que estive no exército não tive razão de queixa. Portaram-se todos comigo com uma lisura como nenhuma outra classe profissional se comportou. Apenas escrevi o livro. A forma como será recebido já não me diz respeito.
E no povo africano não poderá haver alguns melindres?
O povo africano anda preocupado em sobreviver que provavelmente não irá ler livro nenhum. Fiz o que tinha de fazer, não estava na minha cabeça magoar ou apoucar fosse quem fosse. Nem tenho nenhum motivo para atacar ninguém, não tenho tempo para odiar. É apenas a literatura que me interessa.
Não tem traumas de guerra?
Tenho com certeza mas não me são conscientes. Uma vez, na Alemanha, um jornalista dinamarquês perguntou qual é a sensação de matar. Nessa noite tive pesadelos horrorosos. Foi a única vez que me aconteceu. Revivi isso mais com a doença do Ernesto Melo Antunes; nunca falávamos da guerra mas quando estava já muito doente ele falava. Foi o homem mais corajoso que vi debaixo de fogo, andava de abrigo em abrigo com uma lanterna, era um alvo. Dizia-me: «Sabes, é que às vezes apetecia-me morrer.» isto não é partilhável. Nunca poderia escrever um romance sobre a guerra, no fundo está em todos os livros porque a guerra existe sempre dentro de mim. Como é que uma pessoa que não escreve consegue suportar o absurdo da vida?
Na guerra mata-se...
Não vamos falar sobre isso. Essas coisas só podem ser compreendidas por quem passou por elas. E o que me espanta é a ausência de culpabilidade mesmo a posteriori.
Tem três livros neste romance que vai ser lançado amanhã, embora seja um mesmo livro...
Foi um jogo comigo mesmo para me tornar a tarefa mais difícil.
Procurou com esta obra dessacralizar as ideologias?
Não tenho pensamentos abstractos quando estou a escrever. Estou tão preocupado a fazer o livro que nem sequer me pergunto o que é que isto quer dizer, nem sequer me pergunto o que estou a escrever. Às vezes nem sequer sabemos se estamos a acertar no papel. Só quando se começa a trabalhar é que se vê se acertamos ou não.
Dedica este livro a Júlio Pomar. No entanto, não será um livro que pertence também um pouco a Melo Antunes?
Não. Há um livro que lhe é dedicado (O Manual dos inquisidores), felizmente antes de ele morrer. A morte de um amigo é uma ferida que não cicatriza nunca. Cada pessoa tem um lugar insubstituível. Uma vez disse ao Zé Cardoso [Pires] que a viuvez da amizade é uma coisa... Ainda hoje tenho muitas saudades do Zé, era uma amizade diária, um homem difícil, duro. Das poucas vezes que retirou o que disse foi como quem arranca a espada da barriga de um adversário. Mas em tantos anos de amizade nunca houve um amuo e tivemos coisas profundamente diferentes. Se tivermos dois ou três amigos estamos cheios de sorte.
Não gosta de falar de amor, eu sei. E a dor tem palavras?
Sempre me ensinaram que o pudor em face das coisas realmente graves da vida como a morte ou a doença que conduz à morte. Coisas que a gente guarda só para nós e que obviamente aparecem nos livros. Os livros estão a rebentar de ternura por todos os lados mas não são muito demonstrativos.
Há quem julgue que não há ternura em si...
Às vezes é difícil dizer que uma pessoa tem um coração em cada objecto.
Tem acompanhado a criatividade literária africana?
O Pepetela é um homem de que gosto, sou amigo dele. Um homem de grande dignidade e coragem, de uma grande qualidade humana. E não tenho dúvidas em dizer que é um escritor sério, qualidades raras. Como me parece que o Mário Cláudio é um escritor muito sério e que a Mafalda Ivo Cruz tem um talento inegável; como me parece que o José Eduardo Agualusa tem talento, já lhe disse isso várias vezes, mas acho que é um preguiçoso. E haverá mais alguns nomes.
As literaturas africanas são visíveis em Portugal?
E a literatura portuguesa é visível? O nível médio daquilo que se publica, seja onde for, é muito baixo. Esta é a verdade em todo o mundo. As pessoas compram aquelas coisas que falam sobre o hoje e quando o hoje se tornar ontem já ninguém vai ler aquilo.
Um livro pode ajudar a repensar o mundo?
Tenho uma certa desconfiança em relação à palavra pensar. Quando se está a escrever, pode-se pensar enquanto indivíduo, mas enquanto escritor... Sempre me fez confusão as pessoas que dizem: tenho um livro na cabeça só me falta escrever.
Isso não lhe acontece quando parte para as suas folhas?
Parto sem nada.
Cada livro nasce do nada?
Nasce de coisas vagas, muitas vezes nem sequer estão cristalizadas. Nos primeiros livros fazia planos muito detalhados. Agora, não. Comecei a entender que o livro é um organismo que vive independente e surpreende-nos a cada passo. Um livro não se faz com ideias, faz-se com palavras. São as palavras que se geram umas às outras. E com trabalho.
Se fosse crítico literário só criticaria os livros bons?
Seria incapaz de dizer mal de um livro, mesmo que o livro fosse desonesto, mesmo que o livro fosse mau, não falaria sobre ele. Portanto, se fosse crítico literário era uma maçada porque quase não tinha sobre que escrever.
Qual a missão da crítica?
Idealmente, a missão da crítica seria ajudar a ler. Em teoria, o crítico será um leitor mais atento do que os outros. Não tem necessariamente que emitir juízos de valor. Temos tendência a gostar só dos que são da nossa família, as ideias confundem-se com as nossas paixões. Em Portugal não sei como se passa a crítica.
Como se mantém extremamente actualizado em tudo?
Vejo o teletexto. Não sei se estou actualizado. Há jornalistas que admiro. Acaba por ser como nas outras profissões, há um pequeno número de grandes profissionais, a maior parte não o será. Mas não me parece que o nosso jornalismo seja inferior ao da maioria dos jornais estrangeiros. O que me custa é ver os nossos jornalistas tão mal pagos. Como ter o direito de exigir qualidade se se paga miseravelmente ou se paga pouco. E também os médicos são mal pagos, todos são mal pagos. Nós, portugueses, somos admiráveis, vivemos do vento.
Um fenómeno curioso mesmo em termos de compra de livros?
E sendo os livros tão caros para o poder de compra dos portugueses... Comprar um livro para muitas pessoas faz uma grande diferença. E quem lê não são as classes possidentes com muito dinheiro. Quem lê são as classes média e média-baixa, as que não têm dinheiro. Um fenómeno espantoso porque acho que se compram muitos livros em Portugal. Há mais leitores de poesia em Portugal do que em França.
Em tempo de crise, os sectores dos livros e jornais ressentem-se logo?
Obviamente. Porque não são os consumidores das revistas cor de rosa que lêem livros. Quem lê são os funcionários públicos, algumas profissões liberais, pessoas empregadas. E para lá do dinheiro que lhes custa o livro estão a tirar tempo muitas vezes ao sono e à família para lerem. Por isso acho que os portugueses mereciam melhores escritores. Chega-se a uma livraria e fica-se chocado até com os títulos. Também se deve passar em todo o mundo.
Quando sairá mais um novo livro?
Provavelmente vou deixá-lo sair primeiro noutros países.
Outra vez zangado com Portugal?
Houve um que saiu primeiro em França, outro que saiu primeiro na Alemanha para homenagear os editores ou pessoas a quem estou reconhecido e que tanto lutaram pelos meus livros. Isto não tem nada que ver com animosidade contra o meu país, pelo contrário.
Algo a ver com a sua editora no nosso país?
Uma relação com uma editora normalmente tem altos e baixos. Digamos que neste momento não estou num alto. Esta é uma época muito complicada porque as editoras atiram cá para fora o máximo de livros que puderem, é uma época em que se vende. Só que há desatenções que já não tolero ou tenho dificuldade em engolir. Não quero que me respeitem a mim, quero que respeitem a honestidade do meu trabalho. E ao mesmo tempo sou extremamente fiel, cria-se uma relação de amizade que para mim é muito importante.
«Ninguém gosta que lhe destruam os sonhos»
Acaba de ganhar outro relevante prémio, o da união Latina. O júri fundamenta: «Lobo Antunes é a voz mais expressiva da realidade profunda de Portugal.» Que sente?
Não me interessa ser a voz mais expressiva de Portugal. É preciso dessacralizar os prémios. É evidente que são agradáveis. os prémios, porém, não têm nada a ver com literatura no sentido em que não tornam os livros nem melhores nem piores.
Pretende fundamentalmente levar para os seus livros a condição humana no que tem de sórdido e de belo?
Só pretendo escrever. Por um lado, é evidente que não sou parvo, sei muito bem o que estou a tentar fazer, ou por outra, sei uma parte do que estou a tentar fazer, há outra parte que me escapa. Tem que ver com uma necessidade visceral de expressão. Aqui há uns tempos dizia para um dos meus irmãos que não me importava de estar preso se tivesse papel, uma caneta, livros para ler.
Não é muito melhor escrever em liberdade?
O próprio do homem é viver livre numa prisão. Estamos sempre condicionados e até prisioneiros de nós próprios. Na Roménia, onde fui receber outro prémio, era comovente ouvir as pessoas dizerem: «Agora somos livres». Num jantar com o primeiro-ministro, ele dizia-me: «Sabe, nós ainda somos pobres porque havia que escolher entre o desenvolvimento económico e a liberdade e o povo preferiu a liberdade.»
Desenvolvimento e liberdade são incompatíveis?
Na altura eram, porque se houvesse restrições à liberdade, ao direito à greve, poderia haver determinado tipo de desenvolvimento pela direita. Estou a falar da Roménia.
E em Portugal?
Não queria falar nisso. É evidente que o meu coração não está com este governo, mas o meu drama é que o meu coração também não está com nenhum dos partidos da oposição. Não me interessa este Partido Socialista, acho trágico este Partido Comunista. O drama para as pessoas verdadeiramente de esquerda é que são apátridas, a gente vai votar em quem?
Alguns dos seus desencantos têm a ver com uma sensação de vazio?
Sinto-me bem assim. Mas existe em mim uma grande desilusão porque ninguém gosta que lhe destruam os sonhos. Digamos que sou um órfão da esquerda. Também sou muito indisciplinado. Teria dificuldade com qualquer disciplina partidária. O problema dos partidos é que se tornam reaccionários porque têm de funcionar com o aparelho, como qualquer igreja.
É um homem sem política e sem religião?
Sou um homem religioso. Cada vez mais. Os grandes físicos do século XX eram homens profundamente crentes; chegaram a Deus através da física, da matemática.
A escrita não é uma ciência exacta...
Essa é outra coisa divertida. Falando do Prémio Nobel, que serve para exemplo: ninguém discute o Prémio Nobel da Física ou da Química, mas toda a gente acha que sabe quem deve ganhar o da Paz e o da Literatura. E a literatura tem muito que se lhe diga. Não se pode ensinar ninguém a ter talento mas há coisas que se podem ensinar. Estamos longe da idade de ouro do livro, em que havia trinta génios a escrever ao mesmo tempo, no século XIX. Não se repetiu.
O estilo literário ajuda a criar a universidade do escritor?
Não sei. Tudo tem sido para mim uma surpresa total.
É um pouco autodestrutivo?
Meu Deus, porque se tem de corrigir tanto? Há muita coisa que fica destruída do nosso trabalho, às vezes meses inteiros de trabalho são destruídos.
Destrói e deita fora ou tem muita coisa guardada?
Dantes deitava tudo fora, todas as versões. Agora, não.
As suas obras passaram a ter edição ne varietur. Não costuma reler os seus livros. Foram encontrados muitos lapsos, muitas gralhas?
É uma grande ironia porque se escrevem livros que se gostaria de ler e depois não os lemos. Estamos tão metidos neles que não se tem distância.
Nunca revisitou nenhum livro seu?
Não. Eu que tenho uma memória tão boa...
Memória de elefante...
Eu que sei de cor bocados de livros não sei uma única frase de cor de um livro que tenha escrito. Acaba-se um livro e temos de esquecer esse para fazer outro.
No livro que publicou agora, entre outras, tem uma frase insistente: «o mar à nossa esquerda». Esse mar, na Muxima, terá a simbologia de que escreve também com o coração?
Não pensei nisso. Escreve-se com a mão. Maiakovski disse: «comigo a anatomia enlouqueceu, sou todo coração.»; são liberdades a que os poetas se podem dar quando são grandes. Podem fazer-se alguns desplantes toureiros quando se escreve um romance mas pode-se pagar caro e lavar uma cornada.
Estamos numa época em que começa a apetecer revisitar os grandes clássicos?
O que é um clássico? Calvino dizia que clássico é aquele que a gente nunca diz que está a ler, dizemos que estamos a reler. Todas as semanas compro livros e as coisas mais variadas.
Considera que o livro ideal será a grande utopia de um escritor?
É aquele que a gente lê e tem a certeza que foi escrito só para nós e que os outros exemplares dizem coisas diferentes; com o qual temos uma relação pessoal, íntima. São objectos que nos pertencem, de que nos apropriamos intelectualmente, afectivamente e nos revelam a nós mesmos.
Acha que conseguiu mudar a arte do romance português?
Qualquer pessoa que escreve quer mudar a arte do romance. Há mil maneiras de o fazer. Tchekhov mudou a arte do teatro tal como O'Neill; mudaram-na de formas muito diferentes um do outro.
Depois de Lobo Antunes, há um estilo que acabará aí?
Já reparou na quantidade de pessoas que escrevem à António Lobo Antunes? Não é um fenómeno português, passa-se em França, Espanha, e é muito mau porque a pessoa para encontrar a sua voz tem de escrever contra os escritores de quem se gosta e matá-los dentro de nós. Cada experiência é única e irrepetível. Se formos fiéis a nós mesmos, ninguém pode dizer as coisas de uma forma tão clara e necessária. É o que se passa com qualquer escritor autêntico.
Quando diz «ninguém escreve como eu» tem a ver com a fidelidade a si próprio?
Mas ninguém escreve como outro bom escritor. Vamos à palavra génio. Stendhal utilizava-a para descrever a forma de uma senhora subir para uma carruagem: «Subia com génio»... A gente leva a vida a etiquetar tudo. nós portugueses não temos uma tradição romanesca, nunca a tivemos. Temos algumas ilhas isoladas.
Camilo, Eça, não?
Não sou grande fã do Camilo. Pode-se ser um grande prosador e não ser um grande romancista. Camilo era um novelista e bebeu muito nas fraldas de Filinto Elísio. E acho admirável a prosa de Eça de Queirós, a maneira como ele consegue substantivar adjectivos. Agora, tenho alguma dificuldade em dizer que é um grande romancista. Faz uma coisa muito difícil que é trabalhar com o advérbio de modo. E fá-lo maravilhosamente. Tem esses desplantes, coisas que seriam um erro num principiante. Por exemplo: «Eu possuo preciosamente um amigo», uma frase logo cheia de erros, mas só um grande escritor pode fazer isto.
Isso não existe na sua escrita?
É preciso ter uma atitude muito humilde em relação ao nosso trabalho.
Na fase inicial da sua careira literária não teve uma urgência de tudo?
Tinha quase 37 anos quando saiu o meu primeiro livro. Nunca tive vontade de publicar, tinha feito tantos romances antes, acho que as minhas filhas ainda têm um livro que demorei dez anos a escrever e nunca publiquei, não era aquilo. E ensinar as pessoas a não terem pressa e que é necessário trabalhar e retrabalhar às vezes é difícil porque há uma sede de reconhecimento. O sucesso é medido pelo número de exemplares vendidos, nem se dão conta...
De que estão na fogueira do mercado?
Mas se pensam na fogueira do mercado, para quê escrever? É preciso sacrificar muitas vezes a tentação, que é humana, não só de frases bonitas mas também de situações que vão prejudicar a eficácia do livro. Muitas vezes tem de deitar-se fora coisas que eventualmente poderão ser boas mas não servem o livro, prejudicam-lhe o galope.
A escrita é um modo de lidar com a "sobreposição de muitos lutos"?
Quando comecei a escrever ninguém me tinha morrido. Sou o filho mais velho, os meus avós tinham 40 anos, só conheci a morte a primeira vez que vi os cadáveres na Anatomia quando fui para a Faculdade de Medicina. Até aí a morte não existia.
Cada livro seu parece que deixa alguma coisa suspensa, embora esteja completo e exímio. Haverá sempre qualquer coisa não dita?
O livro é escrito por duas pessoas: por mim e pelo leitor. Acho que está lá tudo e espero que o leitor tenha essa mesma sensação. Na Feira do Livro ouvem-se coisas surpreendentes, pessoas que entenderam o livro da maneira como gostava de ser entendido. Pessoas que nos beijam quando se queria ser beijado.
Tende a isolar-se cada vez mais?
Só há grupos onde existem fraquezas individuais.
Essa não é uma atitude ostensiva?
A imprensa é que pode torná-la ostensiva, não eu. Há escritores que admiro muito e respeito, figuras de grande qualidade. E se temos alguma coisa a respeitar é a nossa cultura, não seria mau que lhe dessem mais atenção.
Tem um público mais feminino?
Penso que não.
Houve tempo em que entendia menos bem as mulheres nos seus livros...
Não creio que trate as mulheres de forma diferente dos homens. Nasci de uma mulher. Tenho três filhas. Sempre achei que a mulher é a salvação do homem. Das coisas mais admiráveis que definem a vida foram feitas por mulheres.
Não encontramos uma descrição de uma relação sexual na sua obra...
Nunca o farei. Com a maneira de me exprimir julgo que posso dizer isso de outras maneiras.
O escritor deve ser uma voz da consciência?
O seu único compromisso é fazer livros. A importância do escritor é muito relativa. Terá, quando muito, de ser um contrapoder.
Em que medida pode o escritor ser contrapoder?
Relativamente ao livro, é o de abrir portas e janelas que muitas vezes os poderes instituídos gostariam que permanecessem fechadas. Por que é que as ditaduras perseguem os artistas? Porque percebem que é daí que pode vir o perigo para elas. Por que é que a revolução russa perseguiu os pintores abstractos? Teoricamente, um quadro abstracto não significa nada.
O abstracto é como os silêncios, pode dizer muito...
A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.
Primeiro romance em 1979, Memória de Elefante. Mais 15 e dois livros de crónicas. Vale a pena escrever?
Desde que me conheço, nunca me imaginei a fazer mais nada.
É um homem solidário?
Com pessoa preocupam-me os que sofrem. Como escritor, preocupa-me escrever. A palavra compaixão tem para mim um sentido muito forte, o de paixão partilhada. Da mesma maneira que companheiro quer dizer aquele que divide o pão connosco. Não me parece que o homem seja mau nem bom. Quem sou eu para julgar?
Diário de Notícias
18.11.2003
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Adenda à entrevista
Pode ler mais neste ficheiro em pdf, e ainda ouvir aqui excerto audio disponibilizado no site da entrevistadora, Casal das Letras
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