«Como apanhar a arte da fuga de António Lobo Antunes...»
Sobre o tema de traduzir António Lobo Antunes, artigo de Alexandra Lucas Coelho no Jornal Público:
Alexandra Lucas Coelho
16.11.2002
Público
A um leitor, digamos, de Kansas City, o que dirá a frase: "O teu lado Campo de Ourique, o teu ladozinho Penha de França"? Este foi um dos problemas que Richard Zenith teve de resolver durante a tradução de "Manual dos Inquisidores", de António Lobo Antunes, que sairá em Janeiro nos Estados Unidos, editada pela Grove Press. A solução que Zenith encontrou - como explicará hoje, no Colóquio Internacional António Lobo Antunes, organizado pela Universidade de Évora - foi acrescentar "pequeno-burguês" à frase, visto que a simples menção dos bairros lisboetas não diria nada ao leitor americano. Outro exemplo semelhante: quando uma personagem fala da "gentinha [que compra] andares no Cacém", Zenith traduz "em subúrbios sem gosto como o Cacém".Nestes casos, defende o tradutor, para manter intacto o sentido do texto, há que "destraduzir", em vez de traduzir literalmente. Ou seja, acrescentar (mais raramente cortar, ou trocar) algo para que tudo fique na mesma. "As referências portuguesas na prosa de Lobo Antunes podem ser bloqueios na tradução", explica Zenith ao PÚBLICO. "Tomo a liberdade de ajudar, para não trair a arte romanesca, que é o mais importante." A liberdade do "destradutor" pode chegar ao ponto de substituir um nome histórico, como Zenith fez noutra passagem de "Manual dos Inquisidores", em que o almirante Américo Tomás aparece "seguido pelo seu cortejo de Diogos Cães engalanados". Na versão em inglês, o cortejo passa a ser de "marinheiros engalanados como Vasco da Gama". O tradutor admite que a opção é discutível, mas argumenta que o nome de Gama é imediatamente reconhecível para o leitor estrangeiro.Já na tradução de "Auto dos Danados", Zenith pediu autorização a Lobo Antunes para inventar um apelido, visto que em inglês não se usa "doutor" para um nome próprio, e havia o problema da personagem "senhor doutor Nuno" - na versão em inglês, a mulher e a amante chamam-lhe Nuno, os outros, "Dr. Souza". A complexidade das formas de trato em português não se esgota aqui. Zenith está convencido - e escreve-o no texto que hoje lerá no colóquio - que "o português é a língua ocidental mais subtil e com mais distinções em matéria de títulos de pessoas e formas de as tratar". Tu, você, senhor, senhora, vossa excelência resumem-se, em inglês, a "you". O que na hierarquia de classes evocada em "Manual dos Inquisidores" se torna complicado. "É o meu romance favorito", diz Zenith, "por vários motivos, um dos quais, a forma como as personagens das várias classes se tratam umas às outras. Só entre os serventes, há vários níveis de tratamento... É genial."Para além destas dificuldades pontuais, o verdadeiro desafio, sublinha Zenith, é conservar a "desordem natural de Lobo Antunes", essa "sujidade" que mistura universal e local, sublime e banal: "Toda a musicalidade, o ritmo, as vozes que se entrecruzam como uma fuga barroca é a grande riqueza de Lobo Antunes." Americano, 46 anos, Richard Zenith reside em Portugal desde 1987, quando veio para traduzir uma antologia de cantigas medievais. Publicou já duas versões de "O Livro do Desassossego", de Bernardo Soares/Fernando Pessoa, além de duas antologias (poesia e prosa) também de Pessoa, antologias da poesia de Sophia e Nuno Júdice, um volume de ensaios de Antero (na Irlanda), e tem várias traduções editadas em revistas, incluindo de Herberto Helder (rarissimamente transposto para inglês). De António Lobo Antunes, traduziu quatro romances ("A Ordem Natural das Coisas e "A Explicação dos Pássaros" são os dois que ainda não tínhamos referido) que, diz, "tiveram sempre críticas muito boas, mas não venderam muito."Marianne Eyre é mais do que apenas a tradutora de nove romances de António Lobo Antunes para sueco. "Actualmente, tenho duas amigas mulheres, amigas de coração, daquelas a quem iria a correr se lhes acontecesse alguma coisa", diz o escritor no livro de entrevistas que a Dom Quixote acaba de publicar, coincidindo com o colóquio de Évora. "Uma é Marianne, a minha tradutora sueca. Uma mulher de uma grande inteligência e de um extraordinário valor. Tem 70 anos, mas a sua energia é inigualável."Passou um ano, Marianne está com 71, e é com essa mesma energia - uma espécie de força tranquila - que tem andado por Évora, onde hoje participa na mesa-redonda sobre tradução."Estou a trabalhar no meu décimo livro de Lobo Antunes, 'Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura'. Agora vou mais devagar porque não trabalho à noite. Demoro não menos de um ano com cada livro. Peço sempre muito tempo à editora. É a condição. Tenho que reler e reler." Começou em 1983. "A editora pediu-me que lesse 'Os Cus de Judas'. Fiquei muito impressionada. Era um livro importante contra a guerra." Marianne trabalhara na Amnistia Internacional, conhecera refugiados políticos, estivera em África. "Sempre tive dentro de mim as lembranças dos amigos que sofreram durante a guerra. Visitei Tarrafal, Peniche. Toda a história do colonialismo, da escravatura estiveram presentes na minha vida." Além das viagens a países africanos, viveu um ano num bairro popular da Baía; por isso aprendeu português."Quando visitei Portugal, encontrei Lobo Antunes, trocámos cartas por causa das minhas dúvidas na tradução. Ficámos amigos. De início tive medo... não, medo não é a palavra justa... respeito. Agora é mais natural. Percebi que vejo o mundo como ele. Ele entende as pessoas muito bem, sofre com o sofrimento dos amigos. Tem... como se diz... compaixão."Livro após livro, aprendeu a conhecer melhor a sociedade portuguesa, "os estratos sociais que aqui são mais marcados do que na Suécia". E opta por não acrescentar nem cortar, quando traduz. "Não altero nada. Às vezes, uma clarificação, muito discreta. Quero uma transparência. Claro que há coisas que se perdem mas estou sempre perto do original. E nunca faço notas. Só no 'Manual dos Inquisidores' fiz um prefácio a explicar as figuras reais."Não consegue escolher um romance favorito: "Gostei imensamente de 'A Ordem Natural das Coisas', também de 'O Esplendor de Portugal'. Na 'Exortação aos Crocodilos' há evocações da infância muito comoventes... Senti a evolução na escrita sobretudo neste que estou a traduzir. É incrível, acho que vai mais longe, mais profundo. A ideia de entrar na alma de uma pessoa... não sei se alguém já o fez assim antes... e além disso uma jovem... muito bem feito por um homem."Na Suécia, indica, os livros de Lobo Antunes "não vendem muito, mas as críticas são sempre entusiásticas, e os jovens escritores gostam muito dele". Não acredita que a recepção sueca da obra tenha influência particular no Comité Nobel. Quando lhe perguntamos se crê que o Nobel para Lobo Antunes ainda é possível, responde imediatamente: "Claro! Claro que pode vir a ganhar. Acho verdadeiramente que eles não ligam à nacionalidade... não, não vejo porque não."Maralde Minnerman traduziu nada menos que 11 romances de Lobo Antunes para alemão. "É mais fácil dizer os que não traduzi: 'Os Cus de Judas' e 'Explicação dos Pássaros', que já estavam editados na Alemanha, 'Memória de Elefante', que vou traduzir, e 'Que Farei Quando Tudo Arde', o último, que estou agora a ler." Levou entre cinco a seis meses a traduzir cada livro. Fala português sem sotaque algum. Sempre viveu em Hamburgo, mas tem primos no Porto, e a memória de uma avó portuguesa, nascida nos Açores.O título da sua comunicação no colóquio, hoje, é: "O barqueiro, o lobo, a cabra e a couve". Ela diz que se sente como este barqueiro, que só pode levar uma coisa de cada vez - se leva o lobo, a cabra come a couve, se leva a couve, o lobo come a cabra... -, quando trabalha numa tradução de Lobo Antunes, e tem que transportar "conteúdo, palavras, sintaxe, ritmo, melodia textual" de uma língua para a outra.A fragmentação do texto, que vê como uma tendência cada vez mais patente em Lobo Antunes, contribui para a dificuldade. "No 'Manual dos Inquisidores' ainda é fácil ver que é uma história contada por várias pessoas. Mas em 'Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura' já não é tanto o relato, mas uma voz que inventa o relato, personagens, histórias que se fazem e desfazem, é um livro sobre a criação literária. E neste último a fragmentação é total. É como um 'puzzle', a princípio não se entende nada, e pouco a pouco as vozes tornam-se audíveis, descobre-se quem é quem."Quando lhe dizem que é difícil ler Lobo Antunes, Maralde sugere que façam um filme na cabeça. "É o que faço. Formo as imagens e ouço a banda sonora. É importante distinguir cada voz, para não perdermos o fio. É como uma fuga, na música. Há uma parte da fuga em que todas as vozes estão juntas."Quanto a problemas concretos de transposição, Maralde diz que dá "pequenas ajudas", como acrescentar "praça" quando se fala pela primeira vez nos Restauradores ou, quando o texto descreve o céu com cor de papel de embrulho, criar uma palavra em alemão que significa cinzento-papel-de-embrulho. "É que na Alemanha o papel de embrulho é amarelo e não pardo..." Na tradução de "As Naus" fez um glossário de mais de 20 páginas com as personagens todas. "Quem quiser, vê no fim."Na Alemanha, diz, "as críticas são óptimas, as vendas relativas". "Manual dos Inquisidores" vendeu bem porque o "papa" da crítica apostou nele, e uma pequena edição de parte das Crónicas "vendeu como pãezinhos". "Lobo Antunes tem os seus incondicionais, está sempre na lista dos melhores do mês, quando lança um livro, muitas vezes em primeiro lugar. E quando sai em edição de bolso, que é muito mais barato, vende bem."Ao fim de 11 livros, transpostos palavra a palavra, Maralde acredita que Lobo Antunes "continua a ser inovador, um escritor excepcional como há poucos, que continua a tentar criar o tal romance feito de silêncio, o romance novo".
Alexandra Lucas Coelho
16.11.2002
Público
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